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Mad Maria

SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Lucas da Silva Lopes
Ilustração: Indy

Márcio Souza (Manaus, AM, 1946) é um autor amazonense de relevo nacional e vasta produção literária. O autor apresenta uma produção extensa e diversificada como romancista, dramaturgo e ensaísta, além de uma produtiva carreira como cinegrafista, roteirista e crítico de cinema. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), o autor teve peças censuradas e passou períodos na prisão por sua militância política. Sua carreira artística é marcada por um forte investimento na investigação e representação da cultura, história e sociedade amazonenses. Nesse sentido, Galvez, Imperador do Acre (1976) e Mad Maria são as obras exemplares das temáticas que ocupam a produção do autor. Ao lado de Milton Hatoum, Márcio Souza está entre os autores de literatura amazonense com maior circulação no país.

Romance mais conhecido de Márcio Souza, Mad Maria é uma incursão ficcional pelos trabalhos de construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, alcunhada de ferrovia do diabo por conta da alta taxa de mortalidade dos trabalhadores empenhados em sua construção. O romance divide-se em cinco livros que totalizam vinte e dois capítulos. Tanto as subdivisões em livros quanto cada capítulo individual variam em extensão. A narração é realizada em terceira pessoa por um narrador onisciente, o qual perscruta os pensamentos dos personagens e oferece momentos episódicos de modulação de seu vocabulário ao estado de ânimo do personagem em foco.

Embora o jovem médico Richard Finnegan seja apresentado ao leitor nos primeiros parágrafos do romance e se destaque na subseção final do capítulo que fecha a narrativa, Mad Maria se constitui por uma pluralidade de protagonistas. Consuelo, o engenheiro Collier, o indígena que a certa altura será nomeado Joe Caripuna, Percival Farquhar, J. J. Seabra e o próprio Finnegan dividem os papéis principais, aos quais se juntam uma profusão de personagens secundários que reforçam uma ecologia narrativa pluralizada. Ademais, a própria estrada de ferro e o ambiente inóspito da selva tropical despontam com uma importância crucial para a narrativa, adquirindo um estatuto próximo ao de personagens. A constante alternância de foco narrativo entre os diferentes personagens em cada capítulo ou subseção reforça o protagonismo do evento histórico e espaço geográfico tematizados na obra, em detrimento de um personagem propulsor singular. Essa dispersão da figura do protagonista, a força da ambientação e a narração preponderantemente expositiva promovem uma atmosfera naturalista ao romance, que, em alguns momentos, poderá remeter o leitor ao estilo narrativo do naturalismo de Émile Zola ou Aluísio Azevedo.

No que tange ao enredo, Mad Maria apresenta um relato que inicia in medias res, ou seja, o primeiro capítulo começa já em momento avançado no processo de construção da estrada de ferro, quando todos os trâmites e burocracias relacionados ao projeto já foram encaminhados, diferentes etapas já foram concluídas, grupos de trabalhadores já foram exauridos e substituídos no trabalho e as dinâmicas do cotidiano da construção já estão estabelecidas. Da mesma forma, a conclusão da narrativa, apesar de conter informações sobre o destino histórico da estrada de ferro e sua sobrevida na história, política e cultura brasileiras, finaliza de fato em um momento de continuidade do processo de construção da ferrovia. Não se trata, portanto, de uma crônica historiográfica da construção da estrada de ferro, mas do relato ficcional de um recorte específico. Esse recorte, de duração aproximada de três meses, acompanha o desenvolvimento dos personagens principais.

O início da narrativa, ambientada em 1911, apresenta uma série de personagens ao leitor. Finnegan é um médico estadunidense jovem e idealista empenhado em manter os ideais de sua profissão em um ambiente de desafio extremo. Consuelo, uma jovem boliviana, se vê viúva como resultado de uma tragédia na cachoeira do Ribeirão e passará a viver provisoriamente na enfermaria do acampamento dos trabalhadores. O engenheiro britânico Collier, por sua vez, é o responsável pela obra e investe a sua autoridade na tentativa de recuperar o atraso no cronograma enquanto tenta lidar com os efeitos do clima. O indígena Joe Caripuna, muito antes de receber essa alcunha, esmera-se em se esconder na mata e furtar pequenos objetos dos trabalhadores enquanto sua própria sobrevivência é a fonte maior de sua preocupação. Longe dali, no Rio de Janeiro, capital federal naquele momento, o empresário estadunidense Percival Farquhar, cujo grupo empresarial é responsável pelo projeto da estrada de ferro, cobiça pela vitrine os doces da confeitaria Colombo enquanto dirige-se para mais um dia de trabalho no qual, implacável, administrará os seus empreendimentos através de um complicado emaranhado de relações escusas com políticos e personalidades influentes da capital.

Ao longo do enredo, conflitos entre diferentes grupos de trabalhadores se intensificarão em Abunã, local onde são desenvolvidas as obras no presente da narrativa. A selva tropical e as condições climáticas instáveis imporão dificuldades adicionais ao andamento da obra. Animosidades políticas se acirrarão no Rio de Janeiro, envolvendo Farquhar e seus colaboradores Mackenzie e Adams, o célebre jurista Ruy Barbosa e seu rival J. J. Seabra, o oportunista coronel Agostinho e até mesmo o presidente marechal Hermes da Fonseca. A obra é marcada por uma inventividade na relação entre o factual e o ficcional. Personalidades e eventos históricos são apresentados imiscuídos na malha da representação ficcional de maneira harmônica, sem quaisquer disjunções ao andamento narrativo.

Apesar de empregar um estilo de escrita sem inovações significativas e de uma narrativa predominantemente linear, Mad Maria destaca-se por articular uma crítica social mordaz. Não se trata de um romance proletário, afinal, da massa anônima de trabalhadores somente o barbadiano Jonathan e o alemão Gunther despontam com algum destaque, porém, ainda restritos a um papel secundário. Entretanto, se a visão crítica não parte da assunção da perspectiva dos trabalhadores, ela se realiza na visão de conjunto e no sentido construído através do desenrolar da narrativa. A visão de conjuntura proposta pelo romance é incisiva e se insere em um panorama geopolítico mais amplo: a obra constrói uma crítica à modernidade e aos processos de modernização. A estrada de ferro Madeira-Mamoré, alardeada como um epítome da modernização, é apresentada como um fator de desumanização, precarização e exacerbação da exploração. Hordas de trabalhadores miseráveis provenientes de diferentes locais do globo, precarização extrema dos recursos de suporte ao trabalho, hierarquização de grupos raciais e sociais geradora de violência da qual os grupos indígenas são o maior alvo constituem-se em elementos que extrapolam o projeto da estrada de ferro e denotam características do projeto de modernização capitalista em um movimento que, com precisão, parte da situação local para sugerir um diagnóstico global. O eco da construção do canal do Panamá como um antecedente do projeto da estrada de ferro reforça o posicionamento do relato no contexto dos processos de dominação capitalista. A expansão capitalista estadunidense para o sul global e os países subdesenvolvidos, a qual se sustenta através de uma lógica imperativa de financeirização e de um conluio escuso com as elites políticas e econômicas locais, é o cenário desse processo. Modernidade, processos de globalização, neocolonialismo, universalização da lógica de financeirização são as premissas que sustentam o projeto. O romance é bem-sucedido ao manter esses componentes presentes como um subtexto sem os tematizar na superfície narrativa.

Coadunando com o diagnóstico global, o que é apresentado ao leitor na superfície narrativa é a dramatização dos efeitos degradantes desse arranjo contextual nas personagens. O enredo apresenta conflitos entre grupos de trabalhadores, maus-tratos e violência como base das relações sociais e práticas políticas e empresariais ilícitas como elementos que vão se deteriorando conforme a narrativa avança. Fica patente que a degradação, muito mais do que simples resultado do ambiente inóspito, o qual certamente é um agravante, é de fato advinda da exploração extenuante e das péssimas condições de estrutura e suporte para a efetiva concretização do projeto. Embora o romance apresente momentos luminosos de solidariedade, como a relação entre Thomas e Harold, a amizade entre Consuelo e Joe Caripuna, a crescente aproximação entre Finnegan e Collier, o sentido mais amplo da narrativa é sombrio. O caso paradigmático é o esfacelamento do idealismo do médico Finnegan que termina a narrativa transformado em um assassino desenganado de seus ideais.

É importante ressaltar que o romance Mad Maria ficou nacionalmente conhecido sobretudo após o lançamento da adaptação em minissérie realizada pela Rede Globo em 2005. Adaptada por Benedito Ruy Barbosa e com direção de Ricardo Waddington, a minissérie de 35 episódios foi um sucesso de audiência e popularizou a história do livro. A adaptação televisiva ajudou a consolidar nacionalmente a obra de Márcio Souza como um dos grandes expoentes da literatura amazônica. Atualmente, a obra continua relevante, sobretudo diante do advento de preocupações climáticas, o desmatamento da Amazônia e a necessidade premente de políticas de proteção ao meio ambiente. Ademais, em termos históricos, a obra mantém a sua importância como parte do repertório de produções sobre a estrada de ferro Madeira-Mamoré e, em termos geopolíticos, contribui para a crítica à sobrevida de discursos desenvolvimentistas modernizantes. Finalmente, no contexto acadêmico, a ascensão e expansão recente dos estudos ecocríticos tende a reforçar o interesse de críticos literários e culturais em obras e autores com temática amazônica, o que potencializa a relevância atual da obra.

Para saber mais

OLIVEIRA, Maria Rita Berto de; SANTOS, Deivis Nascimento do; BARBOSA, Xênia de Castro (2020). Modernidade e violência em Mad Maria, de Márcio Souza. Tenso Diagonal, Montevidéu, n. 10, p. 253-268. Disponível em: https://www.tensodiagonal.org/index.php/tensodiagonal/article/view/287. Acesso em: 27 nov. 2022.

CARVALHO, João Carlos de (2001). Amazônia revisitada: de Carvajal a Márcio Souza. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto.

GOMES, Márcia Letícia (2012). A ficção descolonizadora em Márcio Souza: uma análise de Mad Maria sob uma perspectiva pós-colonial. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho.

LIMA, Simone de Souza (2001). A literatura da Amazônia em foco: ficção e história na obra de Márcio Souza. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

SANTOS, Marcilene Queiroz Cabral (2022). “Quase tudo neste livro podia ter acontecido como vai descrito”: literatura, história e representações do feminino em Mad Maria, de Márcio Souza. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade do Estado do Amazonas, Manaus.

Iconografia

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Como citar:

LOPES, Lucas da Silva.
Mad Maria.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

990.

Acessado em:

19 maio. 2025.