DICKE, Ricardo Guilherme. Madona dos Páramos. Rio de Janeiro: Antares; 1982.
Madalena Machado
Ilustração: Carlos Hollanda
O romance Madona dos Páramos,de Ricardo Guilherme Dicke (Chapada do Guimarães, MT, 1936 – Cuiabá, MT, 2008), vencedor do Prêmio Nacional da Fundação Cultural do Distrito Federal (1979), apresenta a trajetória de fuga de uma cadeia na capital Cuiabá (MT). Um bando de doze homens embrenhados mato adentro pretende chegar a um local que, segundo ouviram contar, era um local de delícias, um Eldorado perdido chamado Figueira-Mãe. No trajeto, os homens assaltam uma fazenda e matam os moradores, menos uma mulher, que preferem levar na fuga, chamada por todo o romance de “A moça sem nome”.
Ricardo Dicke constrói esse enredo numa linguagem extremamente bem cuidada, desde o domínio vocabular vernáculo e de outras línguas em que era fluente como inglês, alemão, espanhol, latim e francês. A vasta erudição do escritor atesta uma capacidade de produzir sentidos fazendo uso inclusive do sotaque e de costumes mato-grossenses, que chamaram a atenção do júri e levaram à sua vitória no prêmio literário conquistado. Ele expõe uma temática que parece ser regional, mas exibe uma busca universal por autoconhecimento. O estilo é bem equilibrado entre o substantivo vivo e o adjetivo pontual, parágrafos longos, sem divisão em capítulos ao formatar o pensamento dos personagens, entrelaçando as vozes dos diversos narradores que contam suas expectativas, vidas pregressas e desejo comum de chegar à Figueira-Mãe (o centro do labirinto no qual se perdem), sem maniqueísmo na definição de cada caráter personificado.
O romance Madona dos Páramos situa-se como a obra prima do escritor, tanto pela elaboração temática, ou seja, a fuga do bando rumo ao desconhecido, quanto pelos procedimentos estéticos adotados. Entre eles, distinguimos o objetivo pontual a princípio (encontro do refúgio de todos), em seguida a circulação do corpo similar ao navegar de ideias de cada personagem. Esse elemento estético extrapola o simples delineamento físico ou até mesmo a apresentação de suas histórias, agruras, o sentido da vida que se esvai para cada um. De homens fortes, destemidos, com um objetivo claro a princípio, passam a seres esqueléticos perambulando por um espaço que os desafia muito mais que a fuga da polícia, os “meganhas”, no texto.
O romance é um divisor de águas na literatura do escritor, composta por Como o silêncio (1968) − livro fora de catálogo; os romances Deus de Caim (1968), Caieira (1978), Madona dos Páramos (1982), Último Horizonte (1988), A chave do abismo (1989) (poesia), Cerimônias do esquecimento (1995), Rio abaixo dos vaqueiros (2000), O salário dos poetas (2000) e Toada do esquecido & sinfonia equestre (2006) − novela. Publicações póstumas são Cerimônias do sertão (2011) – romance −, O velho moço e outros contos (2011), Os semelhantes (2011) – novela −, A proximidade do mar e a ilha (2011) − contos. À exceção do livro de poemas, a obra dickeana publicada até o momento, em sua maioria, é composta por romances. As obras são divididas entre aquelas mais restritas a um enredo linear, construído em torno de uma movimentação física bem contornada dos personagens, e outras em que o dado objetivo é um subterfúgio para o jorro dos pensamentos de personagens atormentados pela angústia e pela incerteza do futuro, premidos no limite entre vida e morte.
Madona dos Páramos é bastante atual e até mesmo ilustrativo de uma boa parte da produção literária contemporânea cuja tendência, entre outras, é a universalização por meio de temas mitológicos de questões históricas, sociais e individuais. Dicke, ao imiscuir em sua trama a construção de um Estado situando seus personagens em confronto com o desconhecido, aprofunda suas densidades psicológicas concomitante à grandeza natural de Mato Grosso. Assim, o pensamento localizado dos personagens, que poderia ficar restrito ao regional, extrapola tal reducionismo e alcança o patamar da universalidade porque, entre outras situações narrativas, a busca pela terra prometida aparece desde a narrativa bíblica até a terra sonhada no romance Torto arado (2020), de Itamar Vieira Júnior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020. Os arquétipos universais ainda se fazem notar na literatura de Dicke ao criar seus personagens num conflito interno resultante da angústia entre vida e morte. Com isso, apura-se o fio tênue da conscientização concernente à provisoriedade em que o ser humano se encontra em todos os tempos.
A literatura de Ricardo Dicke em conjunto e Madona dos Páramos em especial espelham a maestria na escrita ao mesclar um substrato religioso ao fator histórico e pessoal dos personagens. Ele inventa uma trama que atrai não somente pela curiosidade, mas também pelo teor humano desenvolvido na narrativa. A narração cambiante entre os seres ficcionais é igualmente uma técnica apurada do escritor, que exige muito do leitor porque não há aviso prévio da troca de perspectivas. A viagem empreendida – um leitmotiv tão antigo quanto a própria literatura –, a violência no percurso e o domínio sobre a natureza e o outro se mesclam de tal forma na trajetória dos personagens que a figura central inspiradora do título do romance, “A moça sem nome”, se torna a fiel depositária do silêncio, criando, dessa maneira, o mistério (páramo) que circunda a todos. Ela é o motivo do desejo, a inalcançável Madona, passando a vingadora da morte dos familiares por seu mutismo quando está com os fugitivos dos outros e os fugitivos de si mesmos. Figura envolvente, A moça sem nome, nas mãos de Ricardo Dicke, é uma personagem como poucas na literatura tal o trabalho posto em sua criatividade. Nisso, constata-se uma de suas vertentes literárias mais acentuadas, ou seja, o escritor que põe em relevo a figura feminina e, não, como um ser frágil e desprotegido. Pelo contrário, ele evidencia o poder da mulher num ambiente masculino e hostil. Indicamo-lo como mais um aspecto de contemporaneidade na literatura mato-grossense.
Para saber mais
BARBOSA, Everton Almeida (2014). Narrador, tempo e memória em Cerimônias do Esquecimento, de Ricardo Guilherme Dicke. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
MACHADO, Madalena (2014). A literatura de Ricardo Dicke – Intervenções críticas. São Paulo: Arte & Ciência.
MACHADO, Madalena (2017). Tríade poética na obra de Ricardo Dicke. Curitiba: Appris.
MIGUEL, Gilvone Furtado (2007). O imaginário mato-grossense nos romances de Ricardo Guilherme Dicke. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
MORAES, Rodrigo Simon (2021). Em busca de quem se perdeu: contos inéditos de Ricardo Guilherme Dicke. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
Iconografia