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Luanda Beira Bahia

AGUIAR FILHO, Adonias. Luanda Beira Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

Lilian Reichert Coelho
Ilustração: Deborah Dornellas

Na ficção de Adonias Filho (Itajuípe, BA, 1915 – Ilhéus, BA, 1990), a vida humana orienta-se para o cumprimento de um destino em espaços geralmente hostis que não constituem meros ambientes, mas seres vivos, com os quais o humano mantém conexões viscerais e ambíguas. É assim entre Alexandre e o Vale do Ouro, em Memórias de Lázaro (1952); com Cajango e a mata de Camacã, em Corpo Vivo (1962); entre Olegário, Tibite, Jairo e a construção, em O forte (1965); e também em Luanda Beira Bahia (1971), entre Caúla e a jindiba e, principalmente, entre os homens e o mar. Os seres da natureza não são apenas personificados nessas narrativas, são viventes dos quais o ser humano depende para ser quem é e cumprir sua sorte.

O mar é o elemento de convergência no romance, unindo todos os personagens, a despeito de ser uma figura de dispersão. Em outra escala, partilha centralidade com uma árvore, a jindiba (figura que remete a raiz, permanência), e com o pescador que se torna marinheiro, João Joanes, o Sardento. É ele quem alinhava involuntariamente seus infortúnios e o de outros/as, sujeito das ações que conduzem os protagonistas Caúla e Iuta à consumação irrevogável de seu destino. O oceano Atlântico é a origem da narrativa e testemunha que antecede a existência desses humanos e sobreviverá incólume à catástrofe.

Em Luanda Beira Bahia, os homens de Ilhéus, “os brancos e os negros, os de sangue português e africano”, são atraídos pelo chamado irrecusável do mar, enquanto às mulheres, de cá e de Luanda, cabe esperá-los regressar em um sofrimento que lhes consome aos poucos as forças e a vida. Assim foi com Morena, “cabocla de Olivença”, mãe de Caúla, e com Corina Mulele, angolana de Quibala, filha do marinheiro e caçador português Manuel Sete, mãe de Iuta.

O livro é estruturado em duas seções, uma com seis partes, outra composta por um breve epílogo no qual o personagem Pé-de-Vento, amigo fiel de João Joanes e de seu filho Caúla, contribui para o desfecho fatal. O narrador, não identificado, é onisciente e porta-se de modo distanciado em relação aos personagens e aos acontecimentos, mas não aos lugares, descritos de maneira poética e comovente. As forças da natureza induzem os personagens, impelindo-os à ação. Nota-se certa superficialidade na construção de suas subjetividades, sendo caracterizados de maneiras estereotipadas e depreciativas, como ocorre com a professora de Geografia de Caúla, Maria da Hora, “negra sem beleza alguma”, “o sangue africano que a fazia assim uma feiticeira”. As mulheres negras, pobres e maduras são, em geral, apresentadas em tom de menosprezo, tanto pelo narrador quanto pelas próprias filhas mestiças (Corina Mulele e Iuta). São exceções os aventureiros brancos portugueses.

A primeira parte da seção I é antecedida pelo prólogo, no qual se apresenta a jindiba, a baía do Pontal, em Ilhéus, onde “nada aconteceu durante muito tempo”, embora houvesse “um ou outro grupo de índios”, até a chegada do homem, João Joanes, o Sardento, concebido como o pai, não apenas de Caúla, mas aquele que dá origem, o português não apresentado como invasor, mas colonizador imprescindível porque movimenta a vida. Na primeira parte, após o breve prólogo – que culminará de certa forma em uma circularidade em relação ao epílogo, pela forte presença da imagem da jindiba – a narrativa inicia no Pontal, com a história de João Joanes, Morena e Caúla, até a morte da mãe, desgostosa com a partida do marido para o mar, a ausência de dez anos de notícias e a temida transformação do filho em marinheiro, auxiliado pelo amigo Pé-de-Vento e por Mestre Vitorino, dono de um barco que transporta cacau a Salvador. Na segunda parte, que transcorre em Luanda, apresenta-se a história de Manuel Sete, Corina Mulele, Vicar e Iuta, que tem em José Babino um fiel amigo e ajudante.

Na terceira parte, Caúla está em Salvador, onde se depara com pessoas que conheceram seu pai e lhe relatam sua desgraça pelo envolvimento compulsório numa trama violenta de contrabando de diamantes, perseguições e assassinatos. É nessa parte, no miolo do livro, que Adonias Filho inclui uma crítica social a partir da temática da exploração mineral, dos arranjos complexos de contravenções e também do transporte das amêndoas de cacau de Ilhéus para o exterior. Isso é muito diferente do modo como apresenta as violências do sul da Bahia nos romances anteriores, mais próximos da chamada literatura do cacau. Nesse aspecto, Luanda Beira Bahia destoa de outros romances de Adonias Filho, promovendo uma guinada, ainda que não radical, na posição político-ideológica do escritor, que se recusava a tratar de temáticas sociais, tendo defendido (na ficção e em textos críticos) o argumento de que a literatura deveria almejar os valores universais (Souza de Oliveira, 2020).

A conversão para um discurso social demonstra-se pelo reconhecimento da importância das relações entre o Brasil e a África, ocorrendo a partir da viagem de Adonias Filho ao continente africano como delegado ao II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa em Moçambique, em 1967 (Rehem, 2020; Mattos, 2016).

É comum localizar, na crítica, o anúncio de que Luanda Beira Bahia pode ter sido uma das primeiras produções ficcionais brasileiras a abordar explicitamente as relações históricas e culturais entre Brasil e África, convocando seu passado comum de colonização por Portugal e suas similitudes no que diz respeito a questões étnico-raciais, devido ao tráfico de pessoas. A escravidão não é ponderada por Adonias Filho, que descreve apenas simetrias entre as cidades de Salvador e Luanda. A África é apresentada por um viés exótico e oblíquo, não condizente com a realidade (Souza de Oliveira, 2020), vista por um olhar estrangeiro desejoso da identificação de homologias. Isso conduz a outro aspecto que a crítica tem apontado com recorrência em Luanda Beira Bahia, atinente ao reforço ideológico do ponto de vista da colonização europeia, portuguesa, no caso do Brasil, de Angola e Moçambique, e também do mito da democracia racial. Diferentemente da “caboclada de cabelos pretos e lisos”, João Joanes tinha o sangue português marítimo e aventureiro, como Manuel Sete, que é mais eficiente do que os guerreiros africanos no extermínio de um leão aterrorizante. De fato, os personagens masculinos portugueses ou descendentes, brancos, são sempre superiores aos negros, africanos e às mulheres, seja em força física ou inteligência, esperteza. Corina Mulele, “mestiça, morena bem queimada”, desprezava a própria mãe, africana, idolatrando o pai, que sequer conhecera, e Iuta segue seus passos.

Algumas críticas também denunciam a omissão de referências às lutas pela independência, que estavam no auge nas décadas de 1960 e 1970. Marcos Aurélio dos Santos Souza (2010) expõe entendimento diverso e perspicaz, evidenciando as rasuras, tanto na “perspectiva histórica eurocêntrica quanto [n]o ideal da mestiçagem”, realizadas por Adonias Filho em Luanda Beira Bahia e também por outros escritores baianos e grapiúnas, como Jorge Amado e Sosígenes Costa.

É na terceira parte do livro que algumas revelações são feitas sobre o contrabando, as peripécias e a traição sofrida por João Joanes. Quem conta é Conceição do Carmo, primeiro amor de Caúla, inimiga da avó, Mãe Filomena, que supostamente ajudara João Joanes a salvar-se da enrascada com a polícia e os traficantes, mas “é uma peça na engrenagem toda”, conforme delata Conceição sobre as relações escusas da avó, dona de um restaurante no cais, insuspeita “senhora do Mercado”.

A quarta parte transcorre em Luanda, com Iuta, José Babino e o detalhado relato de Corina Mulele à filha, saudosa do pai, “brasileiro muito branco de sardas na cara”, chamado Vicar. A cena das lembranças de Corina, muito fraca, doente, transcorre na porta da barraca de frutas de Iuta. Corina resume o que sofrera Vicar no Brasil e conta como se safara da morte encomendada pelos contrabandistas com a ajuda de Gando, um marinheiro “mestiço”, “ilhéu da ilha de São Tomé”. Nesse ponto, o(a) leitor(a) tem certeza de que João Joanes e Vicar são a mesma pessoa e pressente a tragédia. Antes disso, retardando as ações, Gando e Vicar seguem para Beira, em Moçambique, para perto da reserva de Gorongoça, a fim de encontrar Xantu da Cabinda, quimbanda de quem “Gente de toda parte vem buscar conselho e proteção”. É nessa quarta parte também, em um tempo posterior, que Iuta conhece Nuziá, toureiro africano famoso, por quem se apaixona.

Na quinta parte, Caúla decide partir para a África. O navio desvia de Luanda, rumando para Beira, onde Caúla conhece a órfã corajosa Maria-do-Mar. Assim como João Joanes, por acaso Caúla chega a Moçambique. Na sexta parte, aporta em Luanda, onde conhece Iuta. Por ciúmes da moça, que rompera o noivado, o toureiro Nizuá luta com José Babino, que a protege. Ambos morrem numa cena violenta e Iuta fica só no mundo e traumatizada. Vende a barraca e decide deixar Luanda com Caúla rumo a Ilhéus. Na travessia, Iuta revela que está grávida. Ao chegarem, surpreendem-se ao perceberem João Joanes/Vicar na casa de Caúla.

Na segunda seção, de não mais de duas páginas, Pé-de-Vento conduz o desfecho da tragédia, que decide ocultar das pessoas presentes ao triplo enterro. Derruba a jindiba, para que sirva de caixão, enquanto devaneia sobre a possibilidade de torná-la canoa e, desse modo, “fariam novamente a viagem por Luanda, Beira e Bahia”.

Alguns contornos da inevitabilidade do destino que marcam a prosa de Adonias Filho manifestam-se na realidade social da Ilhéus de hoje: disputas por terra e pelo cacau, violências e desigualdades diversas, discriminação contra indígenas, querelas sobre o porto. O Pontal ainda tem colônias e associações de pescadores, mas faz falta a cultura dos saveiros a enfeitar sua baía.

Para saber mais

MATOS, Cyro de (2016). Os mares trágicos de Adonias Filho: Luanda Beira Bahia. Revista Brasileira, fase VIII, ano V. Disponível em: https://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/revistabrasileira89.pdf. Acesso em: 28 fev. 2023.

REHEM, Reheniglei (2020). Luanda Beira Bahia: espírito do lugar, memória e ficção. Guriatã – Revista da Academia de Letras de Itabuna, n. 3, p. 24-31.

SOUZA DE OLIVEIRA, Rosa Alda (2020). Itinerâncias no romance de língua portuguesa (A geração da utopia, O esplendor de Portugal e Luanda, Beira, Bahia): trespasses pós-coloniais, impasses coloniais. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Universidade de Brasília, Brasília.

SOUZA, Marcos Aurélio dos Santos (2010). Renegado começo: discurso fundacional e mestiçagem – Narrativas de Jorge Amado, Sosígenes Costa e Adonias Filho. Tese (Doutorado em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura) – Universidade Federal da Bahia, Salvador.

Iconografia

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Como citar:

COELHO, Lilian Reichert.
Luanda Beira Bahia.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

22 maio. 2024.

Disponível em:

984.

Acessado em:

19 maio. 2025.