NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
Lucas da Silva Lopes
Ilustração: Pamela Araújo
O enredo de Lavoura Arcaica, do paulista Raduan Nassar (Pindorama, SP, 1935), assemelha-se à parábola do filho pródigo, embora o autor a restrinja ao subtexto, sem referências explícitas na superfície narrativa. Contudo, diferentemente da parábola, o desfecho aqui é trágico. André, quinto dos sete filhos da família, é um jovem taciturno e que não se ajusta à engrenagem funcional da dinâmica familiar. O personagem tampouco compactua com o sermão onipresente do patriarca que visa preservar a união familiar através da imposição do comedimento e da abdicação das paixões e dos impulsos individuais em prol da unidade coletiva da família. Como agravante, André nutre uma paixão incestuosa por sua irmã Ana. Similar ao encadeamento lógico da parábola, os trinta capítulos de extensão variada que compõem a narrativa são divididos em dois blocos, apropriadamente intitulados “A partida” e “O retorno”. O início da narrativa ocorre com André em um quarto de pensão barata surpreendido pela chegada de seu irmão Pedro, primogênito da família e encarnação da autoridade paterna, que se incumbe da missão de convencer André a regressar ao seio familiar. A partir desse encontro, o leitor será apresentado a uma série de digressões e rememorações episódicas de André, as quais, imbuídas de lirismo, expandirão os detalhes de seu desajuste na família, suas experiências na vida rural e seus anseios mais íntimos.
Em determinado ponto, André se submete à missão empreendida pelo irmão e aceita retornar à família. Contudo, diferentemente do filho pródigo da parábola bíblica, o seu retorno se dá não por arrependimento, mas por esgotamento diante da insistência e por uma indiferença apática. Da mesma forma, embora haja festa e alegria no lar familiar pela comoção e celebração do regresso do filho desgarrado, não ocorre a restituição de uma harmonia familiar originária, a qual mais e mais fica sugerida como uma pura ilusão alimentada pelo discurso moral do patriarca. A longa conversa com o pai, no capítulo vinte e cinco, será marcada pela impossibilidade de compreensão mútua. As irmãs mais velhas, Rosa, Zuleika e Huda, absortas pela alegria e conformadas aos ensinamentos do pai, inocentemente empenham-se nos preparativos festivos. Os demais irmãos, entretanto, darão mostras de que a alardeada harmonia familiar não passa de um verniz enganoso. Pedro, atormentado sobretudo pela confissão incestuosa do irmão, se manterá afastado, reflexivo e soturno. Lula, o caçula que tem em André uma referência, revelará ao irmão regressado os seus planos de também escapar para uma vida sem as amarras da rigidez moral imposta pelo pai. Ana supostamente se manterá na capela em uma tentativa de retardar o inevitável reencontro com André. Trata-se de uma caldeira de afetos represados e mal resolvidos em ebulição, prestes a explodir.
O desenlace explosivo e fatal ocorrerá no ápice da festa de celebração, quando Ana, como tantas outras vezes no passado familiar, se converterá na estrela da roda de dança coletiva, encantando todos ao redor. Dessa vez, porém, a irmã dançará adornada pelos itens que André colecionou em suas aventuras libertinas, os quais estavam guardados em uma caixa desaparecida após o seu retorno: uma gargantilha proveniente de uma prostituta, anéis, colares, pulseiras, enfim, “as quinquilharias mundanas” da caixa de André. O primogênito, diferentemente do personagem da parábola, que reclama ao pai por ciúmes da celebração devotada ao irmão, aqui, reclamará a ilusão perdida do ideal familiar. Pedro, até então ausente, sem conseguir conter a impugnação do ideal familiar que lhe fora desferida pelas confissões de André, revela ao pai o terrível segredo que o aflige: a relação incestuosa entre André e Ana. Em um golpe de fúria explosiva, o pai apanha um alfanje e se precipita sobre Ana, que dança inebriante sob a atenção de todos e será cruelmente imolada pelo furor patriarcal.
A subversão da parábola e a narrativa trágica são veiculadas por meio de um estilo lírico, de ritmo convoluto e pautado por uma acumulação de imagens. A narração é toda em primeira pessoa, realizada pelo protagonista da obra, André. Os capítulos, em geral curtos, são compostos por blocos de texto construídos por um desdobramento descritivo modulado pelo estado emocional do narrador. Os capítulos vinte e cinco e vinte e sete estão entre os únicos que apresentam diálogos elaborados de uma maneira mais convencional, ou seja, fazem uso de travessão, da alternância entre personagens e de descrições do enunciador. A linguagem da narrativa imprime uma leitura veloz, reflexo dos pensamentos desordenados e dos enredamentos complexos das evocações da memória. Flashbacks e monólogos interiores são técnicas narrativas recorrentes na obra e potencializam a representação de uma subjetividade perturbada. Em termos de intertextualidade, ressoam ao longo da narrativa passagens e parábolas bíblicas, com destaque para o subtexto da parábola do filho pródigo, e ensinamentos do alcorão. Nesse contexto, os intertextos reforçam os contornos temáticos da dualidade e as imbricações entre o sagrado e o profano, o imperativo da retidão e os apelos das paixões, o interdito e o permissível. Também é digna de nota a utilização de um vocabulário relacionado ao universo da vida rural na profusão de imagens elencadas por André, o qual se sustenta no entrecruzamento da sintaxe religiosa com as metáforas da vida campestre.
Autor de uma obra concisa, composta dos romances Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978) e do volume de contos Menina a caminho (1997), Raduan Nassar combina romance psicológico, lirismo e drama familiar em sua produção. Em Lavoura arcaica, o tom intimista e o mergulho nos meandros da memória e da experiência evocam o romance psicológico brasileiro do qual Clarice Lispector desponta como o nome de maior destaque. O drama familiar, de ambientação interiorana e rural, estruturado no embate entre a tradição e a subversão, evocam uma linhagem literária que passa pelo escritor estadunidense William Faulkner e pelo autor mineiro Lúcio Cardoso. O ambiente asfixiante e de esfacelamento da família remete tanto a O som e a fúria (1929) – cuja importância do tempo, da autoridade patriarcal, do amor incestuoso e do estilo convoluto, sobretudo do personagem Quentin Compson, se fazem presentes em Lavoura Arcaica – como também remete ao romance Crônica da casa assassinada (1959) – com seus interditos familiares e conflitos entre uma subjetividade destoante e a estrutura opressiva familiar.
Para além do drama familiar, a temática da narrativa ecoa a atmosfera de repressão proveniente da ditadura civil-militar, o patriarcalismo estrutural da sociedade brasileira, com origem na constituição colonial e escravocrata do país, o machismo predominante nas relações familiares e o processo de urbanização com a crescente oposição entre campo e centros urbanos. Ademais, a experiência imigrante é um subtexto marcante da trama, tendo em vista que o pano de fundo do enredo é a experiência da imigração árabe. Nesse sentido, Raduan Nassar está entre os primeiros autores brasileiros a enfocar a experiência de imigração árabe no país. Finalmente, a obra se constitui em fonte de interesse para investigações sobre a memória e a elaboração de lembranças traumáticas ou reprimidas. A lista de linhas temáticas presentes no romance, para além da trama condutora, portanto, é múltipla e abarca diferentes campos de interesse, o que amplia o público que poderá se beneficiar da leitura da obra.
Raduan Nassar foi o ganhador do prêmio Camões no ano de 2016, sua obra foi traduzida para diversos idiomas e adaptada para versões cinematográficas celebradas pela crítica. A adaptação cinematográfica de Lavoura Arcaica, lançada em 2001 e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, consta na lista dos 100 melhores filmes brasileiros realizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE), divulgada em 2016, e foi elogiada pela lendária revista francesa Cahiers du Cinéma. Antes da difusão potencializada pela adaptação, entretanto, a obra já havia acumulado importantes prêmios no país. Em 1976, recebeu o prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro na categoria de Autor Revelação e uma menção honrosa do prêmio APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte, também na categoria de Autor Revelação. Desde o lançamento, portanto, a obra foi amplamente reconhecida como uma contribuição singular para a literatura brasileira.
Na atualidade, o romance continua relevante, sobretudo por comportar possibilidades de leitura que contribuem para os debates mais prementes do presente. Assim, a crescente importância dos estudos sobre imigração e experiência do imigrante, a leitura da obra a partir da perspectiva feminina, destacando o papel, a construção e a complexidade das personagens femininas, assim como o exame mais detido e aprofundado do patriarcalismo e do machismo que estão na base da tragédia familiar retratada são linhas de investigação relevantes para as discussões atuais e que ressoam fortemente na obra. A leitura de Lavoura Arcaica, quer seja como objeto de estudos comparados, como elemento de caracterização da literatura do período, por interesse específico em suas temáticas ou com o objetivo de conhecer a obra de Raduan Nassar, mantém sua relevância para o presente por ser uma obra com apelo tanto ao estudioso quanto ao público leitor de modo amplo.
Para saber mais
ABBOUD, Marcella (2017). Lavoura Arcaica e os símbolos do Mal: uma leitura crítica da violência contra a mulher. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
ALMEIDA, Fabiana Abi Rached de (2022). Arte:uma Lavoura Arcaica. Curitiba: Appris.
CHIARELLI, Stefania (2011). Silêncio e voz em Lavoura Arcaica. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 1, p. 11-14. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8841. Acesso em: 29 nov. 2022.
RODRIGUES, André Luis (2006). Ritos da paixão em Lavoura Arcaica. São Paulo: Edusp.
SOUZA JÚNIOR, Carlos Roberto Bernardes de (2017). Espacialidades de Tensão: L(ug)ar, vínculos e irreverências na Lavoura Arcaica. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
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