DOURADO, Autran. O risco do bordado. Rio de Janeiro: Expressão e Cultural, 1970.
Marcus Rodolfo Bringel de Oliveira
Ilustração: Júlia Mazzoni
O trabalho com a memória é a matéria-prima da maior parte das obras de Autran Dourado (Patos de Minas, MG, 1926 – Rio de Janeiro, RJ, 2012), em que as vicissitudes desse elemento são a força motriz da composição de sua narrativa. Em O risco do bordado, o poder da memória de transformar futuros e construir destinos e a fragilidade e incerteza dela, ao deturpar o fato em lembrança fugaz e plurívoca, constituem a narrativa sobre a infância e a adolescência de João da Fonseca Nogueira, que evoca personagens essenciais de sua vida, como a família e outros citadinos.
Arquitetada a partir de diferentes episódios ambientados na fictícia cidade de Duas Pontes, cenário sempre revisitado na produção literária de Dourado, a obra lançada em 1970 resiste, inicialmente, a definições simplórias sobre seu gênero narrativo. Composta por sete partes – sendo uma delas, a última, desdobrada em mais quatro –, as narrativas apresentam espaço, tempo e personagens em comum; entretanto, têm uma invulgar independência temática, ao mesmo tempo que a atmosfera mineira e católica dessas histórias ressalta sua filiação a um mesmo mundo autoral.
Definido por Alfredo Bosi como “episódios rejuntáveis”, O risco do bordado traz, por meio da perspectiva de João, cuja infância e férias na adolescência se passam em Duas Pontes, eventos marcantes de seu percurso formativo ao entrar em contato com questões primordiais como a sexualidade, o amor, a amizade, a morte e a loucura. Esse processo não é produzido apenas pelas impressões do narrador-adulto em sua volta à cidade, mas também pelas lentes do menino-narrador e pelas memórias compartilhadas por outros personagens de sua trajetória. Esse ponto de vista do narrador autodiegético é influenciado pela ansiedade das descobertas da criança mescladas às dúvidas do adulto que, buscando ordenar os fatos e as sensações do passado, levam a um rememorar que muitas vezes assume uma atmosfera onírica ou quimérica, em que as impressões se constroem, se descontroem e se reconstroem de modo constante no potente jogo narrativo de Dourado.
Na primeira história, “Viagem à Casa da Ponte”, a amizade com Zito permitirá a João entrar no prostíbulo da cidade e conhecer as mulheres que lá vivem, levando sapatos para que as moças experimentem. O local ocupa um papel quase mítico para os garotos da cidade, e as prostitutas têm seus nomes repetidos numa sofreguidão de cantilena pelos jovens púberes. A antecipação da visita e a idealização do menino são o mote principal dessa narrativa, em que a projeção do novo mundo imaginado do bordel suplanta a própria realidade, culminando em emoções moduladas pelo sonho do menino, retomadas pelo adulto-narrador.
A segunda história, “Nas vascas da morte”, volta-se para o contato com a morte e as impressões do jovem João diante do momento em que está em vias de falecer o irmão de sua avó há muito apartado da sua família. A solenidade da ocasião, os receios do adolescente e a necessidade de se fazer presente devido à proximidade da casa do tio-avô e do internato em que estuda são alguns dos dilemas enfrentados e rememorados pelo narrador numa narrativa repleta de imagens entre lúgubres e sinestésicas que metaforizam o desconforto do rapaz diante de uma situação limítrofe e aguda.
A narrativa a seguir, “Valente Valentina”, recoloca o narrador na descoberta de seu primeiro amor ao conhecer a trapezista de um circo mambembe que chega a Duas Pontes e João, em plena adolescência, apaixonando-se pela jovem. Habituado ao tradicionalismo interiorano que se mistura ao posicionamento machista de sua criação, o narrador se espanta com a liberdade e com a desenvoltura da jovem, cujo real nome é Sueli, órfã e sem familiares. Ao tentar beijá-la, ela o repele; só quando vai embora da cidade com o circo, ela finalmente o beija no rosto e se despede.
A quarta história dessa coletânea, intitulada “A volta do filho pródigo”, retoma os referenciais bíblicos ao evocar parábolas cristãs, invertendo, entretanto, seus valores. Na narrativa de Dourado, a volta do filho é responsável pelo sofrimento da família. Zózimo, tio de João, reaparece em casa após longas viagens, brandindo sua loucura principalmente contra os pais e o irmão, e despejando sua amargura e sua angústia sobre toda a família. Após certo período, Zózimo, porém, muda completamente seu estado, tornando-se afável e amigável, momento em que a família festeja, finalmente, a sua “volta”. Essa situação repete-se por anos de forma cíclica até que Zózimo retorna, alegre e saudoso dos parentes, dando-lhes esperanças sobre a mudança de seu estado, mas ele se suicida durante a sua estadia.
Em “Assunto de família”, a história seguinte, mais uma vez a loucura surge como uma temática sensível às personagens da obra, dessa vez na voz narrativa de vovô Tomé, que conta a história de seu pai, Zé Mariano, bisavô de João. O velho fazendeiro, ao final de seus anos, adoentado, decide abandonar a vida junto à esposa para ir morar com o filho de um relacionamento anterior numa casa simplória. Embora apresente evidente melhora de saúde, ele torna-se cada vez mais avesso à higiene. Essa situação chega ao limite quando seu filho Tomé decide, drasticamente, jogá-lo no rio. Sentindo-se traído, o homem foge do convívio familiar e esconde-se numa maloca até ser encontrado morto.
Na penúltima história, “O salto do touro”, o despertar sexual de João confunde-se com um incesto platônico ao descobrir na retraída e casta tia, Margarida, uma bela mulher. No jogo de silêncios com a jovem tia, embora mais idosa na aparência, o narrador se surpreende com as idiossincrasias dela, fechada em um mundo próprio, lendo os mesmos livros, evitando amizades e contatos sociais de quaisquer tipos. A tensão se estabelece entre os dois depois de um insuspeito tocar de corpos e alcança seu ápice ao avistar Margarida nua, de madrugada, situação que leva à expiação da mulher em praça pública durante a procissão da Semana Santa.
A sétima e última narrativa dessa obra é “As roupas do homem”, na qual, a partir de diferentes pontos de vista, o narrador reúne visões sobre o bandido Xambá que durante anos aterrorizou a cidade de Duas Pontes e seus arredores. Reunindo a perspectiva do médico da cidade, do delegado, do seu tio Alfredo – que disputou a mesma mulher com o bandoleiro – e ainda a sua visão de criança, são construídas imagens fragmentadas, atravessadas pelos sentimentos e pela incerteza da memória que trazem, apesar de sua incompletude, riqueza e humanidade à personagem.
Ganhador do prêmio Pen-Club do Brasil no ano de seu lançamento, O risco do bordado é exemplo da técnica narrativa de Autran Dourado, com sua alternância labiríntica de vozes, em que o discurso indireto livre e o fluxo de consciência dominam a cena de forma que se articula, segundo Ivo Barbieri, “a sondagem psicológica com a percepção estruturadora do tempo e do espaço”. Orquestradoras de diversas simbologias dentro do livro, as impressões íntimas filtradas pela voz narrativa principal de João são mediadas por sinestesias e imagens comuns a toda a coletânea, as quais reiteram o papel da memória como agenciadora de lapsos e de ausências na construção da obra. Tal aspecto é comum a outros momentos de sua produção, como em A barca dos homens (1964), eivado de estilhaçadas perspectivas que constituem o cerne da matéria narrativa, além de Ópera dos mortos (1967), que também se passa em Duas Pontes, obra modulada por uma atmosfera barroca, e Os sinos da agonia (1974), outra construção em blocos recriando o mito clássico de Fedra e Hipólito.
Além das referências mitológicas e religiosas, somadas ao preciosismo linguístico na construção das impressões e imagéticas literárias, a obra de Autran Dourado e, mais particularmente, O risco do bordado, são representativos do labor técnico no manejo de vozes e técnicas narrativas, imprimindo um arranjo próprio em que se equilibram temáticas sensíveis e um aprofundamento psicológico que, apesar de sua complexidade, não decai em hermetismo, muitas vezes comum a essa linha ficcional.
Para saber mais
LEONEL, João; TONIOLO, Ricardo Cesar (2020). As voltas do filho pródigo, de Autran Dourado, e a parábola bíblica. Cerrados, Brasília, n. 53, p. 250-283. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/issue/download/1944/530. Acesso em: 24 nov. 2022.
SACRAMENTO, Adriana Rodrigues (2003). A “magia” da palavra e da memória em O risco do bordado, de Autran Dourado: o poder de constituir o mundo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 21, p. 143-158. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8936/7968. Acesso em: 12 ago. 2022.
SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da (2012). Representações da loucura em Autran Dourado. Fórum Identidades, n. 11, p. 120-139. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/forumidentidades/article/view/1831/1617. Acesso em: 24 nov. 2022.
SILVA, Robson André da (2016). A narrativa dramática de Autran Dourado: hermenêutica, arte e jogo como escrita da morte em O risco do bordado. Tese (Doutorado em Literatura) — Universidade de Brasília, Brasília.
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