LAUB, Michel. O segundo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Amanda Lacerda de Lacerda
Ilustração: Espírito Objeto
“Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989”. Essa data precisa sinaliza um dia decisivo para torcedores do Grêmio e do Internacional, dois times rivais sulistas que disputavam uma vaga na final do Campeonato Brasileiro daquele ano. Conhecido como o “Gre-Nal do Século”, a partida de futebol orienta uma importante decisão a ser tomada pelo narrador do romance O segundo tempo, do escritor gaúcho Michel Laub (Porto Alegre, RS, 1973). O modo categórico com que a morte do esporte mais aclamado no Brasil é proferida dá o tom para o caráter definitivo que o jogo exercerá na vida do narrador e em suas relações familiares.
A narrativa se desenrola a partir das lembranças de um homem que, quando tinha 15 anos, acompanhou o irmão mais novo, Bruno, de 11 anos, a essa emblemática partida. Ao longo do jogo, o irmão mais velho se vê obrigado a comunicar ao mais novo uma notícia grave envolvendo os pais. A dúvida sobre como fazê-lo é afetada pelo desempenho da equipe em campo e vai mudando conforme muda a sorte de seu time. A atmosfera desse segredo atua como articulador do romance, unindo as pontas entre passado e presente. O leitor é levado a fazer conjecturas sobre esse enigma e sobre a dimensão que ele ocupa, enquanto o narrador personagem, como é de seu feitio, deixa pistas, silêncios, lacunas, ditos e não ditos que capturam o público, criando uma suave e permanente tensão.
O romance se estrutura nesse espelhamento entre os detalhes do jogo de futebol decisivo e o futuro da relação dos pais. Para isso, o narrador emparelha cenas domésticas e escalação de elenco, as frustrações de seu pai e o peso da ausência de Lima – ex-centroavante do Grêmio –, o comportamento depressivo da mãe e a movimentação nas arquibancadas. A todo o tempo, a conformação familiar e a futebolística são entrelaçadas. Até mesmo os capítulos estão organizados como os tempos de uma partida de futebol: “Um” e “Dois”, com um breve intervalo ao meio, intitulado “…”.
Michel Laub é gremista e vive em São Paulo há cerca de 20 anos. É jornalista e autor de oito romances, sempre publicados pela Companhia das Letras. Diário da queda, de 2011, é seu livro mais aclamado pelo público e pela crítica. Em vídeo de divulgação da Companhia das Letras, o autor relata que a ideia para a escrita de O segundo tempo surgiu do fato de que, quando jovem, gostava muito de futebol e essa aproximação afetiva com o tema o atraía. O escritor reconhece que, no Brasil, todos conhecem futebol, ou seja, não é um “mundo novo” para as pessoas. Narrar a emoção de um gol, por exemplo, deve considerar que esse evento faz parte de uma série de experiências culturalmente partilhadas, de repertórios socialmente construídos, muitos deles permeados pelo jornalismo esportivo. Toda essa condição prévia representou para ele um desafio no uso da linguagem, criando paradoxalmente a necessidade de um afastamento, com o qual ele buscou evitar que o clichê invadisse a experiência de leitura.
O enredo do romance é comum, quase banal, perpassado pelo ambiente familiar, as divergências conjugais, a convivência entre irmãos, as idas e vindas ao estádio e a dedicação com que acompanham os jogos de seu time, mas a simplicidade do tema e da narrativa são apenas aparentes. A história narrada nesse romance é carregada de ternura e exerce profunda impressão no leitor, que acompanha um narrador encurralado pela posição que ocupa nesta ordem familiar corriqueira. Esse lugar é uma espécie de lacuna, já que, entre os pais e o irmão mais novo, o narrador é impelido a assumir a tarefa de comunicar-lhe um acontecimento fraturante dessa estrutura íntima, que envolve uma traição do pai e uma nova configuração na família. Essa lacuna é, de algum modo, a própria adolescência – compreendida como a vivência de um entre-lugar –, narrada na vida adulta e carregada de uma consciência sobre os conflitos internos que o levaram a agir de modo inesperado no desfecho, quando opta por não voltar para casa com o irmão após o jogo e, consequentemente, surpreender os pais com esta ausência. A ordenação desse sistema em que se estrutura a narrativa remete aos romances de formação, que, na contemporaneidade, têm ganhado formas próprias, carregadas de brevidade, hibridez e fragmentação.
O distanciamento temporal desse narrador que rememora atua como uma possibilidade de reavaliação do passado e promove uma investigação serena sobre o comportamento de seus pais e suas razões e sobre como a experiência da separação, assim como o Gre-Nal do Século, redefinem os laços familiares e marcam sua vida adulta. “Você ainda não entendeu por que o futebol é importante nesta história? Só um jogo como o Gre-Nal do Século seria capaz de deixar Bruno assim. Só um jogo desses me poria diante da reação dele à perda”. Essa interlocução entre narrador e leitor evidencia a importância que a partida desempenha em sua decisão e como se deu esse processo subjetivamente. O jogo transforma-se num momento significativo de observação do comportamento do irmão mais novo – um torcedor diligente –, como se o narrador pudesse antever a sua capacidade diante do abalo que a notícia a ser dada vai provocar. Ao assistir o irmão lidar com o fato de que o Grêmio perde a partida por 2 a 1, após um gol de virada do Internacional, ambos seguem juntos pela cidade em festa – mas não para eles – e o narrador pode, finalmente, pôr em prática o que lhe parece mais razoável para manter a lealdade fraternal e poupar o irmão, dentro do possível.
O Gre-Nal do Século é um referencial histórico que dialoga com o que podemos chamar de referencial memorialístico, centrado na experiência do narrador com o irmão mais novo. Bruno pouco fala ao longo da narrativa, é descrito como um gremista assíduo, que gosta de ouvir programas de rádio e ouvir os comentaristas de futebol. Para o narrador, Bruno e o pai, o esporte exerce papéis distintos. Na juventude, ele é parte importante da vida entre irmãos, o que não se mantém ao longo da vida adulta, conforme vemos na seguinte ponderação: “Normalmente o futebol sai da vida de alguém aos poucos, à medida que os compromissos da vida adulta se tornam maiores e mais complexos, num processo lento e quase imperceptível semelhante ao que nos torna estranhos ao que foi vivo e cintilante no passado […]”. Nesse trecho podemos perceber o desencanto do narrador ao descrever como a passagem do tempo retira o brilho do que antes era carregado de afetos. Na sequência do texto, enfatiza que, para ele, ao contrário, o futebol perde espaço em sua vida de forma abrupta e definitiva após o Gre-Nal do Século, como a reforçar o papel determinante e mediador que a partida desempenhou em um momento traumático de sua trajetória.
O segundo tempo, que dá título ao livro, carrega uma ambiguidade: remete de modo concreto à estrutura da partida, dividida em dois momentos, mas também – de modo metafórico – ao exercício rememorativo do narrador que, adulto, está situado em um segundo momento e, portanto, pode registrar sua experiência a partir desta nova visão e, por meio dela, empreender uma revisão de seu passado. O tempo presente e difuso da memória e o tempo limitado dos noventa minutos de uma partida coexistem na conformação do romance. A caracterização do tempo e do narrador por vezes se mescla, como no trecho a seguir: “Nenhuma rua de Porto Alegre é tão melancólica como essa. Caminhar por ali é respirar a passagem do tempo, o desgaste e a inércia dos velhos e das crianças, um esgotamento que estava diante de mim à medida que eu tentava dizer para Bruno, tudo vai ser diferente amanhã”. Aqui observamos uma impassibilidade quando o narrador descreve sua consciência, no passado e no presente, sobre a passagem do tempo e sua inevitabilidade, revivendo a inquietação que o afligia.
Alcântara Machado, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues, Sérgio Sant’Anna, entre outros escritores brasileiros, já demonstraram que a relação entre futebol e literatura é profícua na representação de ideias, imagens, personagens, tempos e espaços, reafirmando ou recriando perspectivas sobre um esporte que, inegavelmente, tem profunda marca no sentido de nacionalidade brasileira. O romance de Laub oferece ao leitor uma visão contemporânea sobre essa questão, imbricando a experiência, a memória, a adolescência e as relações familiares. Nesse sentido, ocupa um papel renovador na abordagem do tema, demonstrando que, diferentemente do tom categórico da frase que abre o livro, para a literatura o futebol segue vivo, inquietante e participativo na formação do imaginário nacional.
Para saber mais
AUAD, Pedro Henrique Trindade Kalil (2017). Futebol, família, nação e memória: O segundo tempo, de Michel Laub. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v. 26, n. 3, p. 15-31. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18698. Acesso em: 29 jan. 2023.
VEJMELKA, Marcel (2021). As múltiplas temporalidades do jogo: “O segundo tempo” de Michel Laub. FuLiA, Belo Horizonte, v. 6, n. 3, p. 8-27, set.-dez. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/article/view/36826. Acesso em: 29 jan. 2023.
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