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A voz submersa

MIGUEL, Salim. A voz submersa. São Paulo: Global, 1984.MIGUEL, Salim. A voz submersa. São Paulo: Global, 1984.

Amanda Lacerda de Lacerda
Ilustração: Thelma Scherer

O assassinato do estudante Edson Luís, evento emblemático que marca os primórdios dos chamados “anos de chumbo” da ditadura, é o mote para o enredo do romance A voz submersa, do escritor catarinense Salim Miguel (Kfarssouron, Líbano, 1924 – Brasília, DF, 2016). Em março de 1968, durante uma manifestação estudantil, a polícia militar invadiu o restaurante Calabouço, no centro do Rio de Janeiro, agrediu os jovens e, entre as agressões, ocorreu o assassinato de Edson, que teve seu corpo levado por uma multidão até a escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no bairro da Cinelândia. A esse acontecimento sucedeu-se uma série de manifestações que culminaram em medidas cada vez mais repressivas, até que, em dezembro do mesmo ano, foi promulgado o atroz Ato Institucional n. 5 (AI-5).

As imagens do corpo, da multidão e do cortejo até a Cinelândia, na perspectiva do olhar de uma mulher atônita, são narradas em um poema que compõe uma espécie de prólogo. A primeira parte do romance, e a mais extensa, intitula-se “Tumentendes”: trata-se do fluxo de consciência de Dulce, que, consternada por ter presenciado a passeata, liga para a mãe e mescla acontecimentos, sonhos, memórias e imaginação, expõe inquietações por meio de uma simultaneidade entre presente e passado. As cenas amalgamadas relatam pesadelos recorrentes, eventos da infância, sugestões de traição do marido, a desaprovação constante de suas cunhadas, o trabalhoso cuidado dos filhos, o trânsito entre Rio de Janeiro e Florianópolis — sua cidade natal — e as considerações do analista.

Essas imagens suscitam em Dulce, a protagonista, uma perplexidade que revolverá condições recônditas sobre sua própria existência, como que a romper uma repressão interna na tentativa de ouvir uma voz subterrânea: “Há uma voz submersa dentro de mim mamãe, será que tumentendes, e o que digo a nível de consciência não corresponde ao que sinto e quero explicar”. Com essa consideração, que indica o título da obra, o leitor encontra-se quase ao final da primeira parte da narrativa, já consciente da complexa fusão entre real e imaginário. A morte do estudante é o único evento concreto que permeia o enredo. Predomina, no desenvolvimento, um longo devaneio de Dulce sobre a realidade na tentativa de fazer emergir sua voz.

Num movimento especular, é a imagem da violenta repressão política promovida pela ditadura que atinge a subjetividade da protagonista de modo a fazê-la expor as contradições internas que carrega. Nesse processo, sua voz delineia a classe média em ascensão no final dos anos 1960, permeada por uma vida mesquinha e pobre de espírito. Dulce tem um comportamento compulsivo, menciona frequentemente as sessões com o analista e a sua condição depressiva, incompreendida, o que constrói o drama de sua solidão. A ganância do marido também ganha destaque. Sylvio se deleita com o jogo perigoso da bolsa de valores e participa de negociações ilegais, admitindo o enriquecimento ilícito como fruto do mérito, da esperteza do indivíduo que se vale do contexto de exceção ditatorial.

Um sentimento de urgência envolve a personagem e o leitor o experimenta por meio da ausência de pontuação entre as ideias, que se intercalam e sobrepõem de maneira contínua. Há poucas ocorrências de vírgula, parênteses e travessão delimitando parágrafos ou digressões, e as interrogações são percebidas pela fluência da leitura, recursos que reforçam a torrente com que o pensamento de Dulce se (des)encadeia. A voz da mãe é apenas sugerida pelos questionamentos da protagonista, e o neologismo “tumentendes”, construído com uma estratégia de notada valorização da oralidade, é repetido pela personagem como um vocativo para chamar sua atenção, já que parece dispersa na escuta da filha. Especialmente pela presença desses mecanismos, não é um romance de leitura fácil. É necessário transpor os desafios da linguagem para mergulhar na condição de Dulce e nas suas apreensões.

Na segunda parte, intitulada “Arremates”, se tem contato com outras vozes: as cunhadas, os filhos, o marido, o pai falecido. Demonstra-se uma tentativa de dar sentido aos fragmentos narrados por Dulce ao telefone, mas, desde os subtítulos, nota-se que as vozes de narrador e personagem se misturam, como em “A família dele” (que narra a personalidade dos familiares de Sylvio) e “Na Ilha — O-bom-do-papai” (em que as memórias de infância remetem à cidade natal e à relação com o pai). Em “Um passeio”, o narrador nos mostra a protagonista saindo de casa de modo desorientado. Nessa ambulação, passa pela praia, volta ao centro para avistar vitrines, entra em uma sessão de cinema e, por fim, em uma livraria. Percorre esses espaços de modo desconexo em busca de algo inominado. A referência ao estudante morto é progressivamente construída por meio de aparições pretensamente aleatórias como cena que desestrutura a protagonista. As ações corriqueiras e desagregadas se unem a essa imagem que incomoda, como no trecho: “Mais adiante: o corpo do estudante é colocado nas escadarias da Câmara. Frases antes: os cavalos sobre o pai que a protege. Larga o livro num canto como se lhe queimasse as mãos”. A força do acontecimento invade a história do livro recém-aberto enquanto evoca simultaneamente a figura do estudante e do pai falecido. Na continuidade do trecho, mesmo assustada, Dulce volta ao livro, como se não pudesse deixar de lê-lo.

“A fuga (in)desejada” é a terceira e última parte do romance. É um breve capítulo em que o narrador revela sua voz e dirige-se à Dulce, demonstrando um envolvimento afetivo com a personagem. Nessa breve interlocução, entra em destaque o vínculo materno como relação umbilical, além da comezinha rotina doméstica, presente na descrição de ações que a protagonista realiza maquinalmente, como circular por cada cômodo da casa, proferir ordens às empregadas ou desligar a televisão após o final da novela. O vazio de Dulce parece algo impossível de ser preenchido. O capítulo também recupera a referência temporal-histórica: “tenho de deixar-te nesse março de 1968, neste março do assassinato do estudante, neste março de crises, neste março que antecede o AI-5”. Nesse desfecho, reafirma-se o amálgama entre repressão social e repressão psíquica, o contexto de exceção e violência promovido pela ditadura divide espaço com a batalha interna de Dulce em busca de uma explicação para o caos que é sua própria vida.

Salim Miguel, mudou-se para o Brasil com a família aos três anos e passou a infância e a adolescência em Biguaçu, na região metropolitana de Florianópolis, espaço recorrente em suas narrativas. Foi um dos fundadores do Grupo Sul, publicação dos anos 1950 considerada o primeiro veículo de comunicação moderno dedicado à cultura de Santa Catarina. Construiu uma carreira consagrada como jornalista, além de uma proeminente produção literária, que inclui: Velhice e outros contos, Eu e as corruíras e Nur na escuridão, entre outras obras. A voz submersa, que teve sua primeira publicação em 1984, marca seu retorno à escrita de romances, o último — Rede — tinha sido publicado em 1955, cerca de trinta anos antes.

O autor, aos 44 anos, já vivia a maturidade quando Edson Luís foi assassinado e o AI-5 promulgado. Mais de uma década foi necessária para digerir o acontecimento e seus desdobramentos e, enfim, deixando ao largo o jornalismo, representá-lo por meio da literatura. Esse tem sido o caminho de diversos autores contemporâneos: a combinação de literatura e história, a mescla inerente entre memória e invenção configuram-se como potentes recursos de representação da ditadura e de suas reverberações na atualidade. No campo político, os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade exerceram importante papel ao desnudar a carência — ou a deliberada negação ao acesso — de documentos que possam esclarecer os crimes de Estado do período e proporcionar às vítimas a justiça devida. Tudo isso demonstra como esse momento da história brasileira segue sendo uma ferida aberta a requerer cuidados. O estado decadente da classe média que assistiu passiva à consolidação e às atrocidades da ditadura é, no romance, personificado em Dulce. As vozes, ainda que múltiplas, são incapazes de decifrar sua desordem interior. A visada crítica, aliada ao refinamento estético da elaboração literária, garante à obra o potencial de fomentar o necessário debate público sobre a ditadura e o esfacelamento social por ela promovido.

Para saber mais

OLIVEIRA, Iara (2004). Ditadura e romance: vozes submersas de uma história sem fim. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/87734. Acesso em: 29 jan. 2023.

OLIVEIRA, Patrícia Rossi de (2001). Confissões e confusões na esteira da memória: A voz submersa, de Salim Miguel. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.

Iconografia

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Como citar:

LACERDA, Amanda Lacerda de.
A voz submersa.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

22 maio. 2024.

Disponível em:

803.

Acessado em:

19 maio. 2025.