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O avesso da pele

TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Nicola Biasio
Ilustração: Douglas Ferreiro

Tudo começa por um filho à procura de um pai ausente dentro da sala de uma casa vazia. Um filho que exuma os objetos do seu pai, o qual foi morto por um policial branco em Porto Alegre. E ao exumar os objetos, o filho começa também a exumar as memórias de um pai que ele aprende a conhecer só de forma póstuma. Tudo começa (ou melhor, acaba) atrás da porta daquela sala onde, dentro de um alguidar, um ocutá de Ogum espera pelo filho, para levá-lo a conhecer o abismo onde seu pai desapareceu.

Depois de O beijo na parede (Sulina, 2013) e Estela sem Deus (Zouk, 2018), Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, RJ, 1977) dá continuidade ao seu trabalho literário sobre raça, racismo, racialização, exclusão, discriminação, abandono e violência sistêmica no país (e em particular no Sul do Brasil) com O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), romance finalista do Prêmio Oceanos e ganhador do Prêmio Jabuti em 2021.

Narrado em primeira pessoa e com focalização interna nos personagens – recorrendo frequentemente à analepse e prolepse –, Pedro tenta reconstruir a história de Henrique, seu pai, e do violento assassinato dele numa operação policial.

Filho de pai desconhecido e mãe solteira que se mudou do Rio de Janeiro para Porto Alegre, Henrique é um menino negro e pobre que, entre um trabalho mal remunerado e um turno noturno, consegue se tornar professor de português em escolas periféricas, dando aulas à noite, frequentadas pelos “fracassados” da sociedade. Em Porto Alegre, Henrique sente na sua pele o que o escritor Ta-Nehisi Coates define como o “medo de perder o corpo” perante a violência racista: em uma cidade predominantemente branca, Henrique entende que o corpo negro está constantemente em risco.

Após duas namoradas brancas, a trajetória existencial de Henrique se cruza com a de Martha, também negra e com um trágico passado familiar marcado por luto, abandono, pobreza e perda. “A verdade é que vocês não se amavam o suficiente para suportarem os seus fantasmas. Vocês eram apenas duas pessoas quebradas”, lembrará Pedro sobre seus pais, os quais casaram apenas pelo fato de partilharem o único elemento que os ligava na luta cotidiana para a sobrevivência: a cor da pele. Porém, isso não será suficiente para salvar um casamento já destinado a fracassar.

A partir desse fracasso, Pedro tem que lidar com uma família que se parece com uma barca que se afunda, tendo os pais como duas boias isoladas que não conseguem representar um porto seguro para o filho. Apesar de tudo, Pedro tenta preencher as falhas da narração com base em sua perspectiva e nas histórias que ouviu de e sobre seus pais, retalhos de vidas que o filho procura juntar para reviver o passado de Henrique e Martha e para tentar, de alguma forma, justificar o vazio dentro deles e, consequentemente, dentro de si.

Uma narração construída por lacunas que simbolizam, em nível narratológico, o trauma da violenta perda do pai. A focalização interna permite a Pedro conhecer de perto a vida de Henrique, de Martha e até do agente da segurança pública que matou seu pai. Porém, como o trauma gera uma ruptura em nível de representação da realidade, suas consequências resultam na incomunicabilidade da violência vivenciada. A história contada por Pedro é uma história fragmentada, como fragmentados são os personagens que dela fazem parte, e representa um trauma não elaborado, uma ferida que ainda sangra. Contudo, o trauma não é apenas uma ferida, mas uma ferida que chora para ser sarada. É, de fato, o ato de narrar que se torna, de acordo com Pedro, o processo que pode curar aquela ferida: “Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé. Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva”. Juntar pedaços, inventar histórias, guardar na memória: eis uma possível cura.

Dentro dos atormentados assuntos familiares, O avesso da pele é um romance que reflete sobre o conceito de identidade racial numa sociedade estruturalmente violenta devido a seu passado colonial que ainda molda o país. A pele e sua cor são marcadores que dividem a população entre vidas que contam e vidas que não contam, e fatores discriminatórios para o destino dos personagens do livro de Tenório, autor que narra o Brasil de hoje através de uma visão desencantada na qual o racismo está presente de forma estruturante e estrutural nas dinâmicas sociais. O que o autor encena nesse romance é o esforço de cada um dos personagens para manter sua dignidade humana colocada frequentemente em jogo em razão da discriminação vivida por causa da cor da própria pele, a qual se vê constantemente marcada pela sociedade branca brasileira.

A importância do romance de Tenório está no fato de colocar mais perguntas do que dar respostas preestabelecidas aos conflitos vividos pelos protagonistas em relação às questões raciais e, em particular, à criticidade da segurança pública brasileira. Contando a vida de Henrique, Martha e Pedo, o romance desconstrói aquelas classificações rígidas e estereotipadas nas quais os corpos afro-brasileiros estão presos em virtude da percepção classista e racista da sociedade brasileira, e convida o leitor para pensar na construção de uma identidade negra autodefinida, e não imposta por terceiros. Qual é a relação entre raça e identidade? Pode-se “medir” o direito à vida em relação à cor da pele? O que o corpo negro nos conta a respeito do passado e do presente de um país como o Brasil? Quais “escrevivências”, para citar Conceição Evaristo, estão inscritas nesse corpo negro? Quais as estratégias adotadas para sobreviver como negro ao Brasil contemporâneo?

A problemática racial já tinha sido abordada por Tenório nos romances anteriores, bem como o recurso a jovens protagonistas que têm que lidar com o tema do abandono familiar. Porém, o que destaca O avesso da pele na sua produção literária – e, ainda mais, no panorama da literatura brasileira de autoria negra – é justamente um elemento que já está presente no título da obra: “o avesso”. No romance, “o avesso” representa ao mesmo tempo a exposição da vulnerabilidade e dos afetos da comunidade afro-brasileira. Destacar a ligação entre vulnerabilidade afrodescendente e afetos é o mérito e a grande sensibilidade do livro de Tenório. De fato, O avesso da pele tematiza muito bem a distinção entre vulnerabilidade – uma condição partilhada em que a existência humana é continuamente exposta às contingências materiais da vida e à possibilidade de morrer – e precariedade – pelo contrário, uma condição politicamente induzida pelo estado que perpetua a condição vulnerável de homens e mulheres negras por meio da distribuição desigual da riqueza e do poder dentro da sociedade.

Deste modo, o romance relata não apenas a exposição física à perversidade da violência contemporânea sofrida pela comunidade afro-brasileira, mas também a perversidade do racismo cotidiano que, segundo Pedro, “te impede de visitar os próprios infernos”. Porém, numa situação de vida precária, o romance demonstra que a vulnerabilidade tem um potencial vital, uma vez que não representa apenas a possibilidade de ser ferido (ou até morto), mas sinaliza também o lugar onde é possível se curar da ferida recebida. É mesmo essa a revelação que Henrique compartilha com o filho: “É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. […] Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos”. “O avesso” simboliza, dessa forma, a exposição da vulnerabilidade afro-brasileira além da cor da pele, apontando para os afetos como centro vital para que seja possível manter íntegra a própria dignidade perante uma sociedade que induz a comunidade afro-brasileira a uma situação de vida precária. Em O avesso da pele, focar a atenção na ligação entre vulnerabilidade e afetos significa refletir, ao mesmo tempo, sobre o passado, o presente e o futuro da comunidade afrodescendente no Brasil.

No romance de Tenório há, por fim, um recurso metatextual que marca a narração e sua interpretação. Para abrir uma brecha na atenção da turma dos “fracassados” durante as aulas à noite, Henrique recorre ao romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, e conta, de forma muito vívida, a história do criminoso Raskólnikov. Fascinados pela valência simbólica do livro, os alunos começam a respeitar o professor. A literatura torna-se então parte integral da reflexão do romance, à qual é atribuído um valor salvífico tanto para os alunos quanto para Henrique. É mesmo pensando nesse sucesso, um dos momentos mais felizes da vida profissional de Henrique, que ele é assassinado pelos agentes da segurança pública à procura de um homem negro que tinha matado um colega deles.

A “barca”, ao mesmo tempo o título da quarta parte do romance e o nome dado pelos policiais à viatura para efetuar operações, leva Henrique para aquele abismo que Pedro começa a percorrer da primeira à última página do romance. A circularidade conferida à narrativa solidifica o processo de luto de Pedro, que, além da situação ficcional do livro, continua a ser dramaticamente transportado para a crua realidade contemporânea não apenas do Brasil, mas também fora do país. A partir daquelas vozes e histórias relegadas aos não-lugares sociais hegemônicos, no seu romance Jeferson Tenório relata vidas de corpos que importam.

Para saber mais

ABRANTES, Francisca Luana Rolim; LINS, Risonelha de Sousa (2021). Corpo negro, corpo em risco: uma leitura das complexas relações raciais em “O avesso da pele, de Jeferson Tenório”. Id on Line – Revista Multidisciplinar e de Psicologia, v. 14, n. 54, p. 478-488. Disponível em:  https://idonline.emnuvens.com.br/id/article/view/2991. Acesso em: 14 fev. 2023.

BARRETO, Carla Carolina (2022). Racismo e violência policial em “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório. Revista Mosaico, v. 14, n. 22, p. 61-78. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/85590. Acesso em: 14 fev. 2023.

OLIVEIRA, Ariosvalber de Souza (2022). Racismo estrutural e resistência negra: uma leitura do romance “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório. In: NETO AZEVEDO, Joachin Melo (Org.). História, literatura e sociedade: políticas, reflexões e memórias em pesquisa. Guarujá: Científica Digital. p. 147-168.

SILVA, Alen das Neves (2021). Recolher-se: o encontro com a essência estruturante em O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/ literafro/resenhas/ficcao/1358-jeferson-tenorio-o-avesso-da-pele. Acesso em: 14 fev. 2023.

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Como citar:

BIASIO, Nicola.
O avesso da pele.

Praça Clóvis: 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

16 maio. 2024.

Disponível em:

931.

Acessado em:

19 maio. 2025.