FERREIRA, Luzilá Gonçalves. No tempo frágil das horas. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
Claudeci Ribeiro da Silva Araújo
Ilustração: Graça Craidy
No tempo frágil das horas, romance de Luzilá Gonçalves Ferreira (Garanhuns, PE, 1936), é uma leitura que começa com grandes expectativas e nasce de uma fotografia na parede de uma sala. A fotografia é de Antonia Carneiro da Cunha – a baronesa de Vera Cruz, que, no dia do seu nascimento, foi prometida pelos pais para casar-se com o tio Manoel Joaquim, bem mais velho do que a menina. A partir dessa premissa, a autora Luzilá Gonçalves escolhe novamente uma mulher para ser protagonista de seus romances, e narra a história de Antonia Carneiro, que após ficar viúva, teve de administrar os engenhos da família no início da Revolução Industrial, no Estado de Pernambuco, na região Nordeste.
Logo na abertura da obra, a escritora conta detalhes da pesquisa para escrever esse romance histórico contemporâneo: “Li e reli cartas e bilhetes ditados por teu desespero e solidão. Folheei teu inventário, que é um pouco a história de teu esplendor e decadência”. Luzilá Gonçalves também tocou objetos que pertenceram à baronesa de Vera Cruz, a exemplo do vestido de noiva vindo de Paris e um sapatinho de cetim. A partir daí, nas páginas que se seguem, o(a) leitor(a) é conduzido(a) para a leitura de um romance rico em detalhes envolvendo Literatura e História. Duas áreas que se completam e nas quais Luzilá Gonçalves Ferreira tem encontrado espaço para representar o cotidiano de mulheres, além de se destacar na luta feminista pela sua escrita literária.
A escritora Luzilá Gonçalves Ferreira tem se consolidado na Literatura Brasileira contemporânea com um trabalho engajado no romance histórico de autoria feminina, contando a história de mulheres que tiveram suas vivências silenciadas pelo cânone literário e pelo sistema patriarcal. Seus romances são voltados para histórias de mulheres de Pernambuco. A romancista é formada em Letras, doutorou-se em Études Littéraires Sciences des Textes et Document pela Université de Paris VII – Université Denis Diderot (1996) e ocupou, durante muito tempo, o cargo de professora de Letras, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Como escritora, sua produção reúne livros de contos, biografias e romances – textos que unem a história oficial à ficção literária.
Atualmente, Luzilá Gonçalves Ferreira é imortal da Academia Pernambucana de Letras (APL) e, ao falar sobre este reconhecimento, relembra: “Só consegui entrar numa segunda candidatura, mesmo quando já havia publicado vários livros. Mas me sinto bem por dividir com pessoas amantes de literatura a honra e a responsabilidade do cargo”. Seu nome representa a inclusão de mais uma mulher a ocupar o espaço dedicado, durante muito tempo, exclusivamente aos homens. A escritora passou a ocupar a cadeira 38, após a morte de Wladimir Maia Leite, no ano de 2011. A autora pernambucana também recebeu prêmios e homenagens como reconhecimento de seu trabalho na literatura.
Para contar a história da mulher da fotografia, que é igual à de tantas mulheres que cumpriram seu destino aqui na terra – de forma invisível na sociedade –, Luzilá Gonçalves Ferreira dividiu o romance No tempo frágil das horas em três partes, e cada tópico vem com uma numeração. A primeira parte do romance inicia-se com o nascimento de Antonia Carneiro da Cunha e o diálogo da sua mãe Maria Archangela com o irmão Manoel Joaquim: “És o marido que sonharia para minha Antonia. Vou preparar essa menina para ti”. Aborda um pouco da infância nos engenhos da família, do casamento ainda jovem com o tio e das viagens frequentes, tendo Paris como destino.
Na segunda parte da obra, ganha visibilidade um pouco da história de Maria Amália, sobrinha de Antonia Carneiro da Cunha. Ela, que ficou viúva muito jovem, conheceu em Paris o conde de Gaston e, com o apoio da tia, ele veio para o Brasil morar em um de seus engenhos. O que chama atenção nessa segunda parte é o comportamento de Maria Amália, que não segue as regras do patriarcado e da Igreja Católica, pois é uma personagem dona dos seus desejos e de amores livres.
Já a terceira e última parte do romance, apresenta ao leitor os conflitos vividos pela protagonista Antonia Carneiro da Cunha, além de cartas encontradas em um baú, que revelam desde a falta de amor no casamento com Manoel Joaquim, bem como a decadência financeira dos engenhos da família. Nessa parte do livro, encontramos na voz do narrador detalhes de cada passo da protagonista nos engenhos, como se percebe no seguinte trecho: “Antonia empurrou a porteira e a colina devolveu, num eco, o canto melancólico da madeira antiga”. São detalhes de um canto triste em terras de cana-de-açúcar a perder de vista, compradas por um Hollanda Cavalcanti aos Jesuítas. Na porta de uma capela, uma data lembrava o tempo da reconstrução, ano de 1726.
Notadamente, a obra escrita no contexto do Período Colonial traz reflexões sobre o casamento como o “destino” que a sociedade propôs para a mulher, transformando-o em objeto da supremacia masculina. A crítica é feita a partir da construção do perfil de Antonia Carneiro da Cunha, que foi prometida ao tio no dia do seu nascimento sem que ela tivesse direito a escolhas, o que representa outras Antônias da nossa sociedade. Mas também apresenta uma protagonista com uma postura política definida em relação à escravidão e à condição das mulheres, especialmente da casa-grande, uma baronesa como uma mulher de postura subversiva. Um importante aspecto para ser refletido na obra, pois além da exploração do(a) negro(a), a voz narrativa aborda a questão dos gêneros. Em síntese, a temática contextualiza a situação das minorias na sociedade e lhes é dada visibilidade nos discursos de Antonia Carneiro por meio da literatura, sobretudo porque, devido ao preconceito de cor, a mulher negra ainda é inferiorizada na sociedade, vivenciando situações de vulnerabilidade, sofrendo opressões do racismo por ser negra, e do machismo por ser mulher.
No âmbito da discussão, encontramos, nos fragmentos da obra, um sistema opressor para mulheres e negros do século XIX, grupos que não tinham espaço para se manifestarem na época. O espaço criado dentro do romance reflete a escravidão e a dominação do sistema patriarcal em relação ao feminino, principalmente quando remete ao comportamento e à sexualidade da mulher no casamento. Então é desse universo feminino que trata o romance de Luzilá Gonçalves Ferreira porque o livro remonta a um tempo em que as mulheres recebiam educação para cuidar da casa e dos filhos, ou seja, eram casadas com o lar. Também deviam aceitar o casamento arranjado pela família. É um livro que reflete a cuidadosa escrita de Luzilá Gonçalves Ferreira, deslocando-se pelo universo que melhor conhece – as mulheres de Pernambuco, suas vivências e descobertas.
Para saber mais
LOPES, Maria Suely de Oliveira (2013). A escrita de Luzilá Gonçalves Ferreira: um estudo de metaficção historiográfica. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
MACIEL, Anamelia Dantas (2008). Gênero e ficção na obra de Luzilá Gonçalves Ferreira: um estudo sobre A garça mal ferida. Recife: Editora Universitária.
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