BISCHAIN, Sonia Regina. Nem tudo é silêncio. São Paulo: Sarau da Brasa, 2010.
Lua Gill da Cruz
Ilustração: Águeda Horn
Se a produção literária sobre a temática da ditadura no Brasil sempre existiu, inclusive durante o próprio período autoritário, ainda falta muito a ser dito. A experiência de negras/os, pobres e trabalhadores que habitam, organizam-se, resistem e pensam desde a periferia foi pouco contada. O romance de Sonia Bischain (São Paulo, SP, 1957), Nem tudo é silêncio, de 2010, desde o título busca uma linguagem atenta a esses silêncios.
A autora é, além de escritora, fotógrafa e designer. A produção artística multimídia é bem aproveitada na obra, que inclui fotografias, poesia e outras linguagens. Seu trabalho ganha espaço nos conhecidos Saraus da cidade de São Paulo, e a primeira edição de Nem tudo é silêncio (2010) foi publicada no âmbito do Coletivo Cultural Poesia na Brasa; a segunda (2017), de maneira independente. Além do romance, as publicações da autora contemplam poesia, como em Rua de trás, de 2009; fotografia, em Cultura daqui, olhares da Brasa, de 2015; e os romances Vale dos Atalhos, de 2013, e Viandante – labirintos entressonhos, de 2017, no qual retoma o período ditatorial.
Produzido no contexto das literaturas periféricas, Nem tudo é silêncio propõe um olhar atento a um Brasil invisibilizado, destacando as experiências de populações pobres e às margens da sociedade. Na obra, são as mulheres as responsáveis por “escovar a história a contrapelo” e narrar uma espécie de romance de formação do Brasil, voltando-se para as antepassadas indígenas acolhidas por escravizadas, no final do século XIX, e chegando, finalmente, na memória da ditadura militar brasileira como o momento mais agravante da violência sistêmica e permanente a que os moradores das periferias foram submetidos, especialmente as mulheres. Em uma narrativa não linear, bastante fragmentária e com variação da voz narrativa – aspectos que, por vezes, complexificam o andamento da trama –, de temporalidade estendida, condensada e oscilante entre diferentes vozes e narradoras, relacionam-se histórias particulares e individuais, situadas em diversos tempos e espaços, de mulheres e suas famílias imbricadas com os acontecimentos da história do Brasil.
O romance começa com “Tempo presente”, quando temos acesso às condições precárias em que vive uma senhora, Iara, cercada por todo tipo de embalagens, fotografias e lixo. Ao seu auxílio vai uma personagem, Ritinha, que, depois de vê-la nessas condições, passa a morar com ela. O contexto é bem localizado e é dali que parte o relato: uma favela, sobre a qual sobrevoa um helicóptero.
Logo, e recuando no tempo, na sessão intitulada “Tempos primeiros”, duas escravizadas negras, em uma fazenda no interior de Minas, Aisha e Kinah, recebem uma “bugresinha”, a quem chamam de Jacira. A personagem, que estava grávida, acaba falecendo em um parto complicado, mas dá à luz a Jaci, filha da indígena com um homem branco, que é criada pelas mulheres escravizadas. Cercadas pela violência da escravidão e desde o ambiente de uma senzala, onde vivem as três personagens, se encenam as violências formativas do Brasil: recebem relatos e contam sobre as formas de controle e de poder de senhores de escravos que mandavam castrar e cortar as línguas de escravizados, além de caçarem pessoas indígenas nas matas ao redor. Quando as duas mães de criação falecem, Jaci decide ir em direção ao Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, mas lá passa a trabalhar como empregada doméstica “de domingo a domingo”. As indicações temporais e espaciais, em geral, são narradas e percebidas a partir de eventos históricos recuperados pela autora que se tornam indícios pedagógicos do contexto e lugar de onde e quando se narra.
Ao se casar, Jaci tem de sair da casa da família e morar com o marido e com os filhos, Olavo, Sebastião e Iara, em uma favela, onde sofrem com enchentes e doenças. A oposição entre a vida dessa família e a família para a qual Jaci trabalha é relevante na construção da narrativa, quando se destacam as diferenças no acesso à saúde, nas condições de trabalho e nos meios de locomoção. Logo, o texto avança no tempo para acompanhar a história de outra mulher, Iara e seus filhos, Henrique, Lucas, Edson e Elisa.
No capítulo seguinte, intitulado “Memórias de Ritinha”, o núcleo familiar de Jaci e de sua filha, Iara, se perde e a atenção se volta para Ritinha e seu núcleo familiar, até o reencontro entre os dois núcleos familiares que vivem, inclusive, no mesmo bairro e cujas histórias se entrelaçam. A relação de Ritinha com Elisa, sua melhor amiga, é apresentada assim que a menina aparece, no trecho Infância. Das percepções e lembranças da personagem, é a violência policial aquela que abre o trecho: a chegada de dois policiais da “polícia técnica” que atiraram em um homem na sua frente. Nesse contexto de vulnerabilidade, as mães de Ritinha e de Elisa são responsáveis por campanhas de solidariedade e as meninas, assim que crescem, também passam a se envolver com o bairro, tornando-se responsáveis por ajudar em cursos de alfabetização para adultos, principalmente para migrantes nordestinos que se mudaram para São Paulo em busca de uma vida melhor.
A periferia, a todo momento colocada no centro da cena, não é apenas um lugar onde famílias são a todo momento violentadas, com cotidianos marcados pelo racismo, pela exploração, pelas dificuldades de locomoção, pelo tráfico de drogas, pela violência policial, pelo perigo no acesso ao aborto, pelo feminicídio, pela violência médica, por crimes. Esse é também, e principalmente, um espaço em que se demonstram as estratégias de luta e de resistência, antes, durante e depois da ditadura.
A narrativa também acompanha o crescimento e desenvolvimento da personagem principal, Ritinha, que conhece o irmão de Elisa, Henrique, militante e atuante no combate à ditadura, nos capítulos seguintes. Ambos atuam na periferia, nas lutas travadas com os trabalhadores e junto a grupos da esquerda católica. A mobilização do casal, entretanto, é interrompida pelos “Tempos de medo” quando, depois de anunciar uma abertura “lenta, gradual e segura”, o governo militar segue desaparecendo pessoas, caso de Henrique e de tantos outros. Com o desaparecimento do rapaz, a obra conta os processos iniciais da justiça de transição e das políticas de reparação brasileiras. O desaparecido é “beneficiado” pela Lei de Anistia (1979), podendo supostamente voltar ao Brasil e, depois, pela Lei de Desaparecidos (1995), quando a narração acusa a falta de políticas que esclareçam as circunstâncias da morte, a falta de acesso aos arquivos do Exército e da restituição do corpo para que se possa velar o desaparecido.
O olhar sobre a ditadura não se resume apenas à história de Henrique, mas busca construir uma perspectiva ampla sobre como o autoritarismo violentou as populações mais pobres no seu cotidiano, deixando marcas nas formas como definiu termos como “comunista” ou “criminoso” ou, ainda, como se organizou em termos de política de Estado. Diante da lógica desenvolvimentista do Estado na construção da ponte Rio-Niterói, por exemplo, a narradora contrapõe os assassinatos dos corpos de operários mortos na construção com aqueles mortos executados na favela pela repressão. Ali, são os mesmos corpos que são mortos nas mãos do Estado, sem diferenciação entre “bandidos” e “terroristas”. O texto questiona as definições do período observando como a categoria de “vítima” também depende de um certo contexto e reconhecimento político e social.
Assim como no restante do livro, a violência a que é submetida a família tampouco se reduz ao autoritarismo do passado. Descobrimos, ao longo da narrativa, que Iara ainda perderia os outros filhos. Elisa morre no contexto de violência de gênero – aspecto que se repete na história de outras mulheres coadjuvantes na narrativa – marital, Lucas e Edson desaparecem, um morto por traficantes pela dívida de drogas do irmão e o outro sem que se tenha qualquer notícia. A busca pelo último filho supostamente vivo atravessará o futuro de Iara, no presente da narração, que passará os seus últimos dias procurando nas ruas pelo rosto do jovem.
É ao final do livro que se descobre, então, que a senhora do início da narrativa é Iara, cuidada pela nora, Ritinha. Com uma focalização narrativa que mescla presente e futuro, a trama é marcada pela perspectiva de um trauma contínuo, atemporal, vivido por meio da perda dos filhos de Iara. A “loucura” que acomete a personagem devido a tantas violências – desaparecimento forçado, violência de gênero, envolvimento com o tráfico de drogas, a própria situação de rua – é a de uma mãe em luto.
Da perspectiva de corpos e vivências excluídos e violentados e a partir de um espaço deslocado dos centros que, em geral, têm suas narrativas contadas, Bischain retrata futuros impedidos e saqueados pela pobreza e pelas forças do Estado. Aqui, não há reparação, não há justiça e não há reconciliação. A violência perpetrada, antes e depois, e intensificada durante o regime militar, atinge pobres, periféricos, indígenas, negros e negras que, mesmo assim, encontram espaços de resistência e de resposta. O livro se ocupa de uma perspectiva fundamental, por muito silenciada na literatura. Atenta aos corpos e vivências periféricas, questiona as violências e exclusões que se mantêm, seja no espaço da representação, seja no campo literário.
Para saber mais
BISCHAIN, Sonia Regina (2020). A periferia vista pelas margens: vozes da periferia e a ditadura. In: OLIVEIRA, Rejane Pivetta de; THOMAZ, Paulo César (Orgs.). Literatura e ditadura. Porto Alegre: Zouk. p. 217-228.
CRUZ, Lua Gill da. (2021). Pretéritos futuros: ditadura militar na literatura do século XXI. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642099. Acesso em: 2 fev. 2023.
FREDERICO, Graziele Meire (2017). Ausências e silenciamentos: a ética nas narrativas recentes sobre a ditadura brasileira. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/24186. Acesso em: 2 fev. 2023.
LIMA, Andressa Estrela (2020). Mulheres como sujeitos: nem tudo é silêncio. Revista Água Viva, v. 5, n. 3. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/aguaviva/article/view/27023. Acesso em: 2 fev. 2023.