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As mulheres de Tijucopapo

FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Marianna Scaramucci
Ilustração: Carolina Vigna

As mulheres de Tijucopapo é o romance de estreia da escritora, jornalista e tradutora Marilene Felinto (Recife, PE, 1957). Publicado pela primeira vez em 1982, no mesmo ano o livro recebeu o Prêmio da União Brasileira dos Escritores e, em 1983, o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro na categoria Autor Revelação. O romance foi traduzido para o inglês, o francês, o holandês e o catalão. A este seguirão mais dois romances que vão prosseguir o programa da escrita inaugurado com o primeiro no que diz respeito à brutalidade da linguagem, ao trabalho literário sobre o estranhamento da existência e ao emprego das vozes femininas. Felinto é também autora de várias coletâneas de contos, de obras que reúnem artigos inéditos e artigos publicados em revistas e jornais, além de crônicas.

As mulheres de Tijucopapo faz com que a mulher migrante nordestina se apodere do eu narrativo e conte, em primeira pessoa, o processo do seu próprio resgate. Em 33 breves capítulos, o leitor acompanha a viagem imaginária da jovem Rísia, alter ego da autora, que se desloca de São Paulo, cidade para onde migrou com a família quando criança, até a região mítica de Tijucopapo, em Recife. Romance de autoficção, o texto se constrói na alternância entre o monólogo interior, o discurso indireto livre, os diálogos com personagens reais ou imaginados, os flashbacks que relembram o passado da protagonista e a narrativa das várias etapas da viagem.

Ao abandonar São Paulo, Rísia relembra com desespero e raiva a própria infância de menina imigrante na periferia da metrópole: amaldiçoa um clima familiar esquálido e incapaz de amor; destrói as figuras de uma mãe submissa e de um pai violento e traiçoeiro: “Papai, seu filho-da-puta. Mamãe, sua cara de cu”; revive as humilhações que experimentou na escola, lugar onde descobriu a própria diferencialidade, por ser racializada e discriminada enquanto pobre e imigrante; condena as contradições de uma sociedade e de uma educação religiosa, mas hipócrita; reelabora a dor pela perda da melhor amiga, Nema, e por ter ferido mortalmente a Jonas, seu primeiro amor. Rísia questiona e recusa também sua própria pertença à vida mundana e intelectual de São Paulo, descrita como “a rica”, o lugar do concreto, das luzes cintilantes, das filas nos cinemas, dos carros da moda, dos universitários e dos bairros ricos que ela frequentou quando, jovem adulta, começou a estudar e a ganhar dinheiro de forma independente da família: “São Paulo é de um jeito que não é o meu. E é tremendo de choro que suporto aceitar que São Paulo tem o seu jeito”.

A ficção de Felinto surge, por um lado, de razões autobiográficas, respondendo à necessidade de uma catarse pessoal e psicológica; por outro, ela responde também à exigência de elaborar o trauma coletivo da migração, da discriminação de classe, de gênero e de raça. Afinal, para a protagonista, o sentimento de desarraigo tem a ver com múltiplas feridas: a diáspora, a racialização, a subalternização, mas também o desamor, herdado de gerações de mulheres marginalizadas, pobres, resignadas, violadas, traídas. Por isso, a viagem que Rísia empreende representa um itinerário catártico, com o objetivo de renascer como uma mulher nova, reinventando a sua genealogia materna: “Minha dor de cabeça é da vida. E começou com o nascimento de minha mãe. E se estende hoje a todas as partes minhas. Desse meu corpo que vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde nasceu mamãe.” O caminho da jovem é um caminho a pé, que dura simbolicamente nove meses, o tempo de uma nova gestação, possibilitada tanto pela viagem como pela própria escrita. Mesmo experimentando muitas vezes a tentação de desistir, Rísia avança no vasto território que separa a metrópole de São Paulo do Nordeste de suas origens, sempre afastada dos caminhos principais, num percurso não linear, inverso ao do êxodo rural: “mata adentro evitando a BR engenheira que leva e traz carros de São Paulo”. O espaço que a protagonista atravessa durante o dia é povoado de babaçu e mocambos, de camponeses e gado pastando, enquanto as noites são repletas de perigos, entre animais reais e imaginados.

Como observa João Camillo Penna em ensaio de 1995, o romance de Felinto lida essencialmente com o problema das origens, ou da falta de origens. E, de fato, esse lugar originário ao qual voltar, o espaço do Nordeste, objetivo da viagem, sobrepõe-se constantemente ao espaço da origem materna. A cidade onde Rísia nasceu é Poti: “a vila-lua onde eu nasci e onde nasciam essas mulheres doidas como tia, ou essas pobres mulheres como mamãe, que eram dadas numa noite de luar, por minha avó, uma negra pesada, e que depois seriam mulheres sem mãe nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada, mulheres tão de nada”. Felinto constrói, assim, uma tipologia feminina cujas origens são comuns e ao mesmo tempo inexistentes: “Tudo de mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem origens, minha mãe não é de verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu”. O difícil trabalho da escrita e da viagem ficcional está voltado justamente a remediar essa falta: a escrita e o mito são os meios que possibilitam reinventar uma origem, recolocar o lugar de nascimento da mãe não já em Poti, mas em Tijucopapo.

Tijucopapo é o destino da viagem de Rísia, lugar ao mesmo tempo concreto e imaginado, real e mítico, uma “paisagem revolucionária de mulheres guerreiras”. É o lugar da lendária revolta de 1646, quando, na altura das invasões holandesas, diz-se que foram as mulheres a derrotar os agressores. Miticamente, portanto, em Tijucopapo pode nascer uma nova genealogia — nordestina — de mulheres guerreiras. Finalmente a protagonista poderá se identificar com uma nova linhagem feminina, a estirpe de amazonas “que não eram minha mãe”, “mulheres na defesa da causa justa”, capazes de desencadear a revolução feminina que irá resgatar Rísia, junto com a própria mãe, da violência sofrida por gerações de mulheres.

A passagem ulterior que a protagonista poderá cumprir é uma revolução que não seja só individual ou familiar, mas coletiva. Ao longo da viagem, Rísia tem se reapoderado tanto de uma série de topoi próprios do Nordeste como de uma nova capacidade de amar, dois elementos que se condensam na figura do cangaceiro Lampião. Será com ele que a jovem poderá planejar a derradeira etapa da sua “revolução”: voltar a São Paulo, para “fazer a revolução que derrube […] os culpados por todo o desamor que eu sofri e por toda a pobreza em que vivi”. Um ato revolucionário que é ao mesmo tempo uma vingança pessoal e coletiva, capaz de fazer justiça para todas as vítimas de um Brasil estruturalmente iníquo.

Estilisticamente, Felinto, que é leitora de Clarice Lispector, compõe um romance de cunho autorreflexivo, capaz de mostrar explicitamente o processo da sua própria criação. A autora explicita a procura por uma palavra e por uma língua que possibilitem o conto de si própria. A linguagem deve ser reinventada, porque a violência, a pobreza, o preconceito linguístico e o trauma da migração levaram simbolicamente a pequena e a jovem Rísia à gaguez: “Em São Paulo eu quase perdi a fala”. Não por acaso o eu narrativo declara tencionar escrever uma carta — e não um livro — e deseja escrever numa língua estrangeira, explicitando, dessa forma, a busca por um possível código expressivo novo. A escrita que nasce desse processo é violenta e hierática, o seu ritmo é apertado e dramático, gerando um efeito de oralidade magnético e de perturbante força poética.

Hoje à sua quinta edição, a primeira publicação do romance foi encorajada por Marilena Chaui, que assinou também o prefácio. O livro voltou a ser publicado em 1992 por Beatriz Bracher, na nascente Editora 34, enquanto em 2004 a editora Record publicou uma terceira edição. Em 2019, é lançada uma edição da autora, feita, como explica Felinto na nota introdutiva, “com recursos próprios e na solidão de quem nunca pertenceu (e sempre se rebelou) aos esquemas oficiais do ‘mercado editorial’”. A última edição, de 2021, pela Ubu, conta com prefácio de Beatriz Bracher e posfácio de Leila Lehnen, com o ensaio de João Camillo Penna intitulado “Marilene Felinto e a diferença” e com as contribuições críticas de Ana Cristina Cesar e Viviana Bosi, para além do prefácio e do texto de orelha presentes na primeira edição e assinados respectivamente por Marilena Chaui e José Miguel Wisnik. Esses e outros trabalhos críticos mostram seu valor e sua atualidade no quadro do campo literário brasileiro, mas também seu lugar “fora dos esquemas”, pois, ao entrelaçar temáticas como migração, discriminação de raça, classe e gênero — a partir de uma perspectiva feminina, nordestina e migrante —, o romance coloca em questão o conceito unívoco de identidade brasileira. Ainda mais, a diferencialidade do texto, bem individuada por Penna, questiona o próprio conceito de literatura brasileira como sistema. A crítica concorda em dizer que o romance não perdeu minimamente sua atualidade, pelo contrário: os profundos traumas que denuncia são os que ainda marcam o Brasil atual, e a obra contribui desconstruindo de modo implacável os estereótipos que ainda imperam nas narrativas dominantes.

Para saber mais

CHAUI, Marilena (1982). Prefácio. In: FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 31, p. 87-110. Acesso em: 8 maio 2023.

LEHNEN, Leila (2021). O mapa de uma utopia. In: FELINTO, Marilene. As Mulheres de Tijucopapo. São Paulo: Ubu. p. 178-187.

NASCIMENTO, Isabela Cristina do (2020). Outras Macabéas: mulheres nordestinas e deslocamento em dois romances de Marilene Felinto. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.

PENNA, João Camillo (1995). Marilene Felinto e a diferença. Revista de Crítica Literária Latinoamericana, n. 41, p. 213-253. Acesso em: 8 maio 2023.

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Como citar:

SCARAMUCCI, Marianna.
As mulheres de Tijucopapo.

Praça Clóvis: 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

09 maio. 2024.

Disponível em:

812.

Acessado em:

19 maio. 2025.