ASSIS BRASIL, Luiz Antônio. Cães da Província. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
Maya Falks
Ilustração: Marlova Aseff
Vencedor do Prêmio Literário Nacional de 1988, o livro “Cães da Província”, do gaúcho Luiz Antônio Assis Brasil (Porto Alegre, RS, 1945), nasceu como trabalho de doutoramento do autor pela PUC/RS. Assis Brasil, hoje reconhecido por uma das mais longevas e procuradas oficinas de escrita criativa do país, escolheu, para a obtenção do título, trabalhar uma narrativa não-ficcional, ao eleger como protagonista o polêmico e cultuado dramaturgo também gaúcho, Qorpo-Santo. Para tal objetivo, no qual atingiu grau máximo diante da banca de doutorado, Assis Brasil explorou diversas nuances narrativas, desenvolvendo não somente o protagonista, mas outros núcleos dramáticos com igual eficácia, para inserir o leitor no tempo e espaço em que a história ganha corpo.
Dentro dessa esfera de trabalho acadêmico, o autor não peca na restrição do público para atender às demandas da banca examinadora, pelo contrário, entrega um romance acessível e intrigante. Até a escolha de seu foco narrativo almejava ampliar a visão do leitor, levando-o a compreender os movimentos que marcaram o destino do personagem mesmo com situação de extrema importância acontecendo como trama paralela.
Nascido sob a alcunha de Joaquim de Campos Leão, o protagonista da obra não recebe de Assis Brasil uma biografia; pelo contrário, o autor nos leva para o ano em que o dramaturgo, escritor e professor enfrenta um vexatório processo de interdição pelo que a psiquiatria da época nominava de “monomania”. Acometido por delírios recorrentes, Qorpo-Santo, figura folclórica da cultura gaúcha como precursor do chamado “teatro do absurdo”, era tido como louco, mas posteriormente foi reconhecido como gênio.
Assis Brasil não se detém, entretanto, na fascinante figura de seu protagonista, o inserindo, em um primeiro momento, quase como um coadjuvante; sua primeira aparição na obra é como amigo e conselheiro do comerciante Eusébio Gomes Cavalcante depois de uma minuciosa descrição da fatia do território porto-alegrense onde a trama se desenrola. Nesse momento, conhecemos o eixo central de Porto Alegre, com a presença da igreja, do Palácio do Governo, do teatro e da praça, que possibilita a localização da história na Porto Alegre do século XXI.
Eusébio é casado com Lucrécia, uma órfã fruto de uma mistura de raças, com mãe índia e pai castelhano, e essa situação é vista como uma justificativa para que Eusébio esteja constantemente em estado de alerta e paranoia sobre uma possível traição da mulher, como se ela fosse geneticamente condenada a não ser uma “mulher direita”. A relação de Eusébio com Lucrécia é um retrato bastante fiel dos preconceitos da época, e à expectativa de uma mulher que atenda aos princípios do que seria uma mãe e esposa ideal para os homens nobres, de boa reputação.
Por sinal, a reputação também é um valor inestimável, muito mais importante do que a verdade, por exemplo. Todo o pânico de Eusébio sobre uma possível traição da esposa não se refere ao fim de uma relação afetiva, mas à sua ruína como comerciante e, antes mesmo de qualquer certeza, Eusébio fantasia seu retorno a Portugal, fugindo de credores, como um homem completamente arruinado. Uma de suas cenas mais emblemáticas no livro é, inclusive, quando desperta de uma noite de bebedeira em que se considerava completamente desgraçado pela suposta traição e descobre que nada mudou em seu comércio, segue próspero e bem-visto entre os seus.
Qorpo-Santo não dá a mínima para a reputação, sendo ele mesmo separado da esposa Inácia e desinteressado pela paternidade das três meninas que teve em seu casamento. A relação do casal é um caso à parte; há ódio, farpas e amor. Tanto Qorpo-Santo se divide entre a ira e a paixão quanto Inácia, responsável pelo processo de interdição, que eventualmente revela suas reais intenções: pretendia, ao tomar posse dos bens do marido, mantê-lo preso a ela. Ele, livre e inteligente demais para que conseguisse se manter junto a ela de outras formas.
Toda a narrativa acontece ao mesmo tempo em que os crimes da Rua do Arvoredo são esclarecidos. Não somente a história do dramaturgo é real, mas também os crimes cometidos pelo açougueiro José Ramos e sua esposa Catharina Palse. Hoje tratada quase como uma lenda urbana, a história dos canibais da Rua do Arvoredo já inspirou diversas obras literárias e dramatúrgicas, repercutindo até hoje a história dos assassinos que vendiam a carne das suas vítimas em forma de linguiça no principal açougue de Porto Alegre.
A história dos assassinos da capital gaúcha ganha contornos folclóricos na medida em que, como Assis Brasil esclarece em “Cães da Província”, a venda da carne humana no açougue foi veementemente negada pelos criminosos, mas a história foi tão comentada à época que segue viva como parte da história até hoje.
Foi nesse contexto de comoção popular sobre a série de homicídios e de uma sociedade totalmente galgada nas aparências que o livre demais e criativo demais Qorpo-Santo foi levado a juízo para decidir sobre sua capacidade de gerir os próprios bens. Nesse processo, entram em cena dois peritos psiquiatras com visões completamente diferentes da loucura.
Dr. Landell, adepto da medicina técnica e ultrapassada, classifica Qorpo-Santo através de critérios pré-estabelecidos e que não contemplam a individualidade do paciente, enquanto o Dr. Joaquim Pedro não consegue se convencer que o dramaturgo seja de fato louco, considerando-o excessivamente inteligente e absolutamente genial depois de ler algumas de suas peças, as mesmas que viriam a ser encenadas somente em meados do século seguinte, tamanha incompatibilidade com a sociedade da época.
Os debates entre os dois psiquiatras mostram a dinâmica do estigma que sofrem muitos artistas até hoje. Não são necessariamente os delírios de Qorpo-Santo – que protagonizam cenas memoráveis do livro na presença imaginária de Napoleão III – mas, sim, sua incapacidade de levar uma vida regrada como um “homem de bem”. A loucura do escritor é muito mais o desejo de viver de sua arte e sua pouca importância às normas sociais do que efetivamente alguma doença diagnosticável.
Para escancarar o nível de hipocrisia que cerca o desejo de encarceramento de Qorpo-Santo, está justamente seu único amigo – ou nem tão amigo assim – Eusébio. É ao dramaturgo que o comerciante apela quando descobre que a esposa fugiu com o amante; certamente não tanto por amizade, mas porque o amigo seria o único que não o julgaria por ter sido traído e abandonado pela esposa. Qorpo-Santo, sedento pela próxima criação, manipula os fatos para que Lucrécia se torne oficialmente vítima dos canibais, resolvendo qualquer questionamento da sociedade para o sumiço da mulher de Eusébio, enquanto este não se incomodou com a gravidade da ideia para se passar por viúvo e manter intacta sua imagem de bom cidadão.
Entretanto, enquanto a força policial, a justiça e a sociedade exigem a interdição do louco que quer viver de sua arte; entre quatro paredes, Eusébio, já afastado do amigo para não se incomodar, mantém a retornada esposa em cárcere privado até que a viuvez se concretize com o lenço que o comerciante envolve o pescoço de sua amada.
Assis Brasil usa da figura mítica de Qorpo-Santo para expor uma sociedade que atribui pesos estranhos ao “crime” de cada um, na qual ser um artista criativo é digno de repúdio, ódio, isolamento, enquanto poucas coisas são questionadas quando ocorridas entre as quatro paredes de famílias respeitáveis. E atinge seu objetivo quando Eusébio demonstra mais desprezo diante da janela de Qorpo-Santo na Santa Casa do que por si mesmo quando enterra o corpo de Lucrécia no mesmo caixão onde antes havia enterrado um corpo desconhecido a simular a viuvez para que ninguém soubesse que a esposa o deixara.
O título do livro, inclusive, faz parte de uma das falas de Qorpo-Santo durante a primeira etapa de seu julgamento. “Cães da Província” é como chama os célebres integrantes de uma sociedade de aparências, todos adestrados, domesticados para com os homens de poder e ferozes contra os destoantes. Excêntrico por natureza, mesmo alvo do processo de interdição, Qorpo-Santo mantém seu comportamento estranho – como acessar sua casa pela janela do segundo andar depois de uma tentativa de arrombamento. Ele sabe que suas manias e processo criativo serão julgados da pior maneira possível, mas também sabe que mudar seu comportamento às vésperas do julgamento não faria qualquer diferença: ele já estava condenado desde o início.
Durante toda a narrativa, Assis Brasil usa uma linguagem repleta de sarcasmo que insere o leitor na própria realidade de Qorpo-Santo, além de uma estrutura gramatical que remete ao século XIX sem, no entanto, dificultar a leitura. As escolhas do autor convergem com toda a atmosfera do romance, com a personalidade não só de Qorpo-Santo, mas do duvidável agente de justiça Dario Calado, que se envolve dos casos conforme seus interesses pelas mulheres envolvidas (primeiro Catharina, depois Inácia), e do neurótico Eusébio.
Com narrativa fluída e uma dinâmica ágil, “Cães da Província” é uma obra atemporal, retratando não apenas a Porto Alegre de 1860, mas a própria sociedade do século XXI.
Para saber mais
LIMA, Elizabeth Maria Freire de Araújo (2010). A produção e a recepção dos escritos de Qorpo-Santo: apontando transformações nas relações entre arte e loucura. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, n. 33, v. 14, p. 437-447. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-32832010000200016. Acesso em: 12 jan. 2023.
HAMERSKI, Cristina Fuentes (2010). Os crimes da rua do arvoredo. Versões e subversões em cães da província e canibais: paixão e morte na rua do arvoredo. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.
ARIAS, Maria Helena de Moura (2009). O homem que enganou a província ou as peripécias de Qorpo-Santo: uma leitura de Cães da província, de Luis Antonio de Assis Brasil. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis.
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