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A hora da estrela

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1977.

Cristiane Côrtes
Ilustração: Léo Tavares

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920, mas a família veio para o Brasil logo após seu nascimento e a autora passou a primeira infância na cidade de Recife. Em 1935, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou a faculdade de Direito. Morou mais de uma década fora do país, mas, após a separação, voltou ao Rio de Janeiro, onde morreu, em 1977, em decorrência de um câncer no ovário. A vida dedicada à escrita literária se iniciou na década de 40, embora a autora tivesse escrito seu primeiro texto dez anos antes. Seu livro de estreia, Perto do coração selvagem (1943), inaugurou o pós-modernismo no Brasil com uma escrita densa e conturbada, num mundo que ainda se recuperava dos traumas vividos por duas guerras em meio século. No Brasil, as transformações no cenário social e político influenciaram consideravelmente a literatura, que se transformou acompanhando o ritmo de mudanças como o fim da era Vargas, o auge e a queda do populismo e a ditadura militar. 

A hora da estrela é um dos livros mais famosos de Clarice Lispector. A narrativa curta e densa narra a história de Macabéa, a datilógrafa alagoana, e de seu autor, Rodrigo S.M., que se encarrega de narrar toda a parca e sofrida rotina da nordestina. O autor fictício mistura-se à trama ao elaborar sua escrita na mesma medida em que escreve, por isso a metalinguagem é um dos aspectos mais marcantes no curto e denso romance. Lançado em 1977, mesmo ano da morte da autora, a obra teve uma adaptação para o cinema muito apreciada, em 1985, por Suzana Amaral.

A narrativa intimista tem início com a explicação de Rodrigo S.M. sobre o desejo de contar a história de uma nordestina avistada na rua. O relato aparentemente é sobre a triste e solitária vida de Macabéa, mas a trama revela também um narrador egocêntrico e sua dificuldade de apreender a essência da sua personagem. A obra contém duas histórias dentro de uma mesma trama. Em um primeiro plano, a vida de Macabéa, a nordestina órfã, criada pela tia autoritária que migra para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de trabalho. Apesar de ler e escrever mal, o curso de datilografia lhe rende um trabalho em um escritório de contabilidade. A vida parca se resume ao quarto que divide com outras quatro balconistas das Lojas Americanas e as idas ao cinema, para alimentar o sonho de ser atriz. 

Seus momentos de prazer são pontuais: ouvir uma estação de rádio, tomar café frio e Coca-Cola e comer cachorro-quente. Apaixonada por Olímpico, o namorado também nordestino, sofre profundamente ao descobrir que foi trocada por Glória, a colega de trabalho carioca, filha de um açougueiro. Desolada com o abandono e com toda escassez de sua vida, Macabéa procura uma cartomante, a conselho de Glória, para encontrar a felicidade. Madame Carlota coloca a protagonista diante de toda a tristeza e solidão que a cerca, mas também a faz acreditar que algo maravilhoso acontecerá e a vida da pobre nordestina terá uma virada surpreendente. Diante do deslumbramento com as novas possibilidades, Macabéa experimenta o êxtase, o ápice da epifania típica do texto clariceano, e sua abrupta interrupção causada pelo atropelamento. Diante dos faróis de um Mercedes amarelo, Macabéa encontra sua hora, morre estatelada na calçada, chamando, finalmente, a atenção dos passantes ali presentes. 

Paralela à narrativa acerca de Macabéa, encontra-se a história de Rodrigo S.M. e seu dilema diante da personagem que, segundo o próprio, nada tem a lhe oferecer. Isso o leva a produzir um discurso caótico que revela os percalços diante da impossibilidade e complexidade da representação no texto literário. O silêncio da protagonista é um aspecto da narrativa que causa um incômodo profundo no narrador e também nos leitores e leitoras. O romance, na figura do personagem-narrador, traz como cenário a tensão de uma alteridade contraditória em que o autor ficcionalizado acredita na possibilidade de salvar sua personagem do anonimato. Entretanto, o que o leitor encontra é uma história centrada neste autor e em seus dramas sobre a impossibilidade de escrever a respeito de uma experiência da qual ele pouco sabe, a vida de uma mulher e sua miserabilidade, o que acaba por revelar a miséria dele próprio: “Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geleia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu.”.

A relação de Rodrigo com Macabéa é a do criador e de sua criatura, seu objeto de estudo, de escape, um motivo para produzir uma obra com um viés social, uma narrativa que provoca o mesmo desconforto que retrata: “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, revelar-lhe a vida”. O narrador avisa que a história é acompanhada do início ao fim por uma leve dor de dentes, “coisa de dentina exposta”, o que evidencia o conflito já anunciado entre a experiência da pobreza e a pobreza ficcionalizada. 

Rodrigo confessa certo distanciamento de seu objeto e as estratégias usadas para apreendê-lo: “esta história será o resultado de uma visão gradual”; “o que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo”.  A visão gradual e o pudor estão colocados num jogo em que, sob o pretexto de falar sobre outro sujeito, se evidencia o conflito do intelectual que se pergunta se a pobreza pode ser representada. Clarice Lispector revela sua grandeza ao criar um autor personagem e seu discurso metalinguístico no qual é possível desnudar as implicações que o próprio fazer literário revela. A escolha por um homem pertencente a uma elite cultural não foi por acaso, como o narrador anuncia logo nas primeiras páginas: “Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”. A narrativa metalinguística centrada no personagem Rodrigo revela a autoridade atribuída ao gênero masculino no espaço literário. A “necessidade” de ter um homem como narrador desvela uma tradição em que a mulher não tem espaço. 

Outro momento importante para comprovar a hipótese de que a escolha de um narrador do sexo masculino vem jogar luz nos bastidores do romance tradicional e desnudar o lugar de poder da fala, é a descrição das personagens: “A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois, não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade”. Rodrigo não se detém nos demais personagens, nem nesta apresentação nem em outro momento da narrativa. Isso porque “o assunto do romance é a própria execução do romance” (Gotlib, 2001), que traz, ironicamente, um homem como narrador pelos motivos já explicados pelo próprio. 

A escrita de Clarice Lispector se encontra na modernidade em que o caos acaba sendo uma das formas de linguagem, já que a experiência é decadente. Para Nunes (1989), a poética da autora de Coração selvagem vai da palavra ao silêncio e do silêncio à palavra, num teor densamente metafórico, uma nova forma de narrar que traduz o drama humano e reflete a incapacidade de usar as palavras para contar a experiência.

Em A hora da estrela, a opção de dialogar com o universo social e regional, tão explorado no romance de 1930 e no trabalho de Guimarães Rosa, mas numa outra perspectiva, é uma das evidências da grandiosidade de Lispector. Levar a nordestina para a cidade do Rio de Janeiro e expor toda a clausura e solidão dos sujeitos nas grandes capitais é um desdobramento dos sertões no Sudeste. O silêncio ensurdecedor de Macabéa tem a força de paralisar S.M. e mostrar para o leitor o incômodo e sofrido lugar da subalternidade. Ter na literatura a condição de elaborar esteticamente uma realidade oprimida é pensar num devir melhor, numa situação em que seja possível vislumbrar saídas para a opressão. A leitura de A hora da estrela vale a pena exatamente por colocar o leitor em contato com Clarice Lispector e toda a sua tempestiva potência.  

Para saber mais

GOTLIB, Nádia Battella (2001). Macabéa e as mil pontas de uma estrela. In: MOTA, Lourenço Dantas; JUNIOR, Benjamin Abdala (Org.). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Senac.

NUNES, Benedito (1989). O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática.

ABEL, Carlos Alberto (2011). A proletária Macabéa. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 4, p. 1-5. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8846. Acesso em: 25 mar. 2023.

CÔRTES, Cristiane de Araújo (2009). As pontas de uma estrela: poéticas do silêncio em Macabéa e Ponciá. 2016. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/LETR-ATBPKJ/1/tese_cristiane_felipe_ribeiro_de_araujo_c_rtes.pdf. Acesso em: 25 mar. 2023.

LOPES, Luiz Carlos Gonçalves (2013). Formas da alegria: resíduos do trágico em Clarice Lispector. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SÁ, Lúcia (2011). A hora da estrela e o mal-estar das elites. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 23, p. 49-65. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8990. Acesso em: 25 mar. 2023.

INSTITUTO MOREIRA SALES [s.d.]. Notas de A hora da estrela. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/acervo/notas-de-a-hora-da-estrela/. Acesso em: 25 mar. 2023.

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Como citar:

CÔRTES, Cristiane.
A hora da estrela.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

09 maio. 2024.

Disponível em:

846.

Acessado em:

19 maio. 2025.