PIÑON, Nélida. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.
M. Carmen Villarino Pardo
Ilustração: Graça Craidy
Em agosto de 1984, foi publicado o romance A república dos sonhos. Era o décimo livro da autora Nélida Piñon (Rio de Janeiro, RJ, 1937 – Lisboa, PT, 2022), cuja estreia no campo literário brasileiro se produziu em 1961 com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo. Entre um e outro, publicou Madeira feita cruz (1962, romance), Tempo das frutas (1966, contos), Fundador (1969, romance), A casa da paixão (1972, novela), Sala de armas (1973, contos), Tebas do meu coração (1974, romance), A força do destino (1978, romance) e O calor das coisas (1980, contos). Esses títulos configuram uma parte de sua extensa obra, que abrange, até o fim de sua trajetória, novos romances: A doce canção de Caetana, 1987; Vozes do deserto, 2004; Um dia chegarei a Sagres – o último publicado em vida, 2021. Há também outros livros de contos: O Cortejo do Divino e outros Contos Escolhidos, 2000; A camisa do marido, 2014; de memórias Coração Andarilho, 2009; de “fragmentos”/ensaio(s): O pão de cada dia, 1997; Até amanhã outra vez, 1999; Aprendiz de Homero, 2008; Livro das Horas, 2012; Filhos da América, 2016; Uma furtiva lágrima, 2019; de discursos: O presumível coração da América, 2002; e infanto-juvenil: A roda do vento, 1996.
A escritora carioca, com fortes vínculos familiares e afetivos com a Galiza, era formada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ. Foi eleita para a cadeira número 30 da Academia Brasileira de Letras em 1989, de que tomou posse em 1990, tornando-se sua primeira Presidente no ano do centenário da ABL (1996-1997). O pioneirismo da autora também se evidencia em numerosos e prestigiados prêmios e distinções, vários deles fora do Brasil (Premio de Literatura Latinoamericana y del Caribe Juan Rulfo 1995; Premio Ibero-Americano de Narrativa Jorge Isaacs 2001; Premio Príncipe de Asturias das Letras 2005; primeira mulher Doutora Honoris Causa pela Universidade de Santiago de Compostela 1998, entre outros). Sua projeção internacional – fundamentalmente ligada à agente literária catalã Carmen Balcells – deve-se à tradução de várias de suas obras para diversas línguas e a uma presença habitual em numerosos encontros e eventos (dentro e) fora do Brasil – em diversas feiras internacionais do livro, de modo individual ou como membro da comitiva brasileira –, com especial destaque no mundo hispanofalante.
Em sua dilatada trajetória literária, o romance A república dos sonhos ocupa um lugar destacado. Trata-se de uma volumosa obra de 761 páginas, resultante de várias versões prévias. Foi publicada pela editora carioca Francisco Alves – responsável também pelo texto das orelhas – com uma capa discreta e sóbria, de cor ocre, o que o diferencia de seus livros anteriores, nos quais havia elementos de publicidade destacados para os leitores e um apelo visual para os possíveis consumidores. É uma nova casa editorial em sua trajetória, pois ela já havia publicado, no Brasil, pela Edições GRD, José Álvaro Editor, Sabiá, José Olympio, Record e Nova Fronteira.
A publicação de A república dos sonhos, na altura da 8ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, já vinha sendo anunciada previamente pela autora e se dá em um ano de especial relevância para a história política e social brasileira devido à campanha para as Diretas Já! (1984) e à esperança pelo fim da ditadura. É o mesmo ano, também, da publicação dos romances Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e A condolência, de Márcio Souza, nos quais a história brasileira é também matéria ficcional.
Fascinada pela ideia de poder entender uma época através do gênero do romance e de uma narrativa de fôlego, Piñon tenta mostrar, nesta obra de teor histórico, um painel da sociedade brasileira dos oitenta anos anteriores à sua publicação, a partir de uma família de emigrantes galegos cujo patriarca – Madruga (um nome, como o de outras personagens do livro, carregado de simbolismo) – se instala com seu amigo Venâncio no Rio de Janeiro da segunda década do século XX.
Ao iniciar o romance com o anúncio de que Eulália, a matriarca da família, começa a morrer em uma terça-feira, o leitor entra em uma estrutura circular que, ao longo de uma semana de tempo cronológico, vai permitir viagens no tempo e no espaço por várias décadas da vida brasileira e mesmo séculos da história galega e espanhola, com o risco de, por vezes, tropeçar em alguma repetição. A micro-história dessa família (e os conflitos pessoais que cada um de seus membros vive) entrelaça-se com uma perspectiva da macro-história, quer do presente, quer do passado desses espaços sociais (brasileiros, galegos e espanhóis). É uma história que atravessa com pinceladas a guerra civil espanhola, o período de Getúlio Vargas, a criação de Brasília, a ditadura de 1964 e o AI-5, mas que também mergulha em histórias antigas – em algum caso, com processos de mitificação – de dominações sobre o povo galego, sobre os ciganos na Espanha ou sobre os escravos de origem africana no Brasil. É uma narrativa que aborda paixões de diversa natureza, vencedores e vencidos, buscadores de oportunidades e fracassados, nesse amplo painel de histórias que é, fundamentalmente, uma “república dos sonhos” no (para o) Brasil, com personagens em uma narrativa que se torna o retrato de uma sociedade complexa em que habitam.
O cruzamento de perspectivas – que afetam personagens, tempo, espaço e focalização – vê-se favorecido pela estrutura tipo mosaico do romance. A obra está dividida em trinta e sete capítulos – em geral, por volta de vinte páginas, com algumas exceções –, separados unicamente por espaços em branco e sem uma identificação em forma de título ou número.
Há uma alternância de três vozes narradoras que participam de um jogo mais amplo com função também metaliterária. De modo que, de certa forma, podemos dizer que se trata de um texto de espelhos no qual a própria narrativa aparece exposta, por meio da multiplicação dos pontos de vista: um diário dentro do corpo da narrativa; caixas em que Eulália guarda zelosamente “histórias de vida” dos filhos e filhas; telegramas do avô Madruga à neta Breta – em Paris – onde se fala de anos difíceis de censura e silêncios; bilhetes da filha Esperança que conserva seu irmão Miguel e, após um tempo, entrega à filha daquela (Breta); e perspectivas de personagens, como Breta, atenta “à comédia humana”, passando para o papel suas vivências e da família, sabedora de não poder contar uma história plena. Na última frase da obra, ela promete escrever um livro: “Apenas sei que amanhã começarei a escrever a história de Madruga”. E aí o ponto final de uma narrativa consciente de si própria, cujo final mostra o momento do nascimento de uma escritora encarregada de costurar os fios dessa(s) história(s).
De fato, a memória – em várias de suas vertentes – é um dos ingredientes fundamentais para agrupar os diversos movimentos e encaixes de personagens, espaço, tempo, narradores e estrutura.
Nesse sentido, é um livro no qual, para além de estarem presentes – como pano de fundo ou mesmo como personagens – o Brasil, a Galiza e a Espanha, conhecemos histórias dos antepassados de Madruga e de seus descendentes, em uma crônica que podemos qualificar de familiar ou de saga, em que as personagens femininas Eulália, Esperança e Breta têm especial relevância. Elas são exemplos de três gerações de mulheres em que Eulália – vinda da longínqua Galiza e com a empregada Odete como confidente – representa os valores de uma cultura conservadora que aceita os valores patriarcais da sociedade, em parte representada por Madruga. Já sua filha Esperança simboliza a rebeldia de uma geração que vive tempos de mudanças políticas e sociais e que desafia a ordem representada pelos pais. E Breta é a jovem ativista que vivencia as incipientes conquistas sociais das mulheres e que quebra silêncios seculares ao se tornar escritora – conquistas lentas que falam de histórias de mulheres no plano ficcional e, em parte também, no plano social de um Brasil em transformação, até ao ponto de ser possível uma leitura em código feminista de A república dos sonhos.
Nesse amplo painel de materiais repertoriais utilizados na obra, os imigrantes (fundamentalmente galegos) aparecem como uma lanterna de que se serve a autora para olhar ficcionalmente para seu país, o Brasil, assunto central do romance. O Brasil, como a Galiza, são materiais muito presentes em várias obras da autora, assim como em seus diversos depoimentos e discursos ao longo de sua trajetória.
Apesar do volume, a intensa campanha de promoção editorial, o assunto e a posição já consolidada da autora no sistema literário brasileiro, naquela altura, levaram A república dos sonhos a conseguir boa recepção e, logo, a ter uma segunda edição. Em 1985, recebeu os prêmios de Melhor livro de ficção do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e do PEN Clube Brasil. Fora do país, A república dos sonhos também é sua obra de maior repercussão, com traduções para o castelhano, francês e inglês.
Convém destacar, ainda, o lançamento de uma edição comemorativa dos 30 anos de publicação da obra, em 2014, pela editora Record, com um ensaio do escritor Alberto Mussa, e um conjunto de imagens sobre a trajetória da própria obra, incluídos manuscritos de algumas das várias versões da primeira edição, uma relação de objetos que acompanharam a autora em seu retiro em Congonhas do Campo para redigir uma parte importante da obra e um pequeno guia-mapa – em modo de resumo gráfico – das personagens e dos aspectos destacados da trama.
Para saber mais
MONIZ, Naomi Hoki (1993). As viagens de Nélida, a escritora. Campinas: Editora da Unicamp.
VILLARINO PARDO, M. Carmen (2000). Aproximação à obra de Nélida Piñon. A república dos sonhos: a trajetória de Nélida Piñon na segunda metade do século XX. Santiago de Compostela: Servicio de Publicacións da Universidade de Santiago de Compostela.
VILLARINO PARDO, M. Carmen (2009). Nélida Piñon no campo literário brasileiro em 1969. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 34, p. 147-155. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9639/8511. Acesso em: 23 jan. 2023.
VILLARINO PARDO, M. Carmen (2020). Repertorio, autor, lector y mercado editorial en el Brasil de 1970-1980: principales dinámicas. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, n. 271, p. 477-494. Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/ Iberoamericana/article/view/7927/8046. Acesso em: 11 jan. 2023.
ZOLIN, Lúcia Osana (2003). Desconstruindo a opressão. A imagem feminina em A República dos Sonhos de Nélida Piñon. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá.
Iconografia