SILVEIRA, Maria José. A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas. Rio de Janeiro: Globo, 2002.
Maria do Rosário Alves Pereira
Ilustração: Laura Fraiz
Publicado pela primeira vez em 2002 e com uma segunda edição em 2019, acrescida de um capítulo, A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas é o romance de estreia da escritora Maria José Silveira (Jaraguá, GO, 1947), o qual angariou o prêmio Revelação da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA). A obra apresenta uma genealogia de mulheres desde os anos de 1500 até a contemporaneidade (anos 2000). Trata-se de um painel multifacetado dessas mulheres, em que as protagonistas ora são indígenas, ora caboclas, e ora transitam entre as classes sociais. Trata-se de um romance importante na literatura brasileira, tanto por ser de autoria feminina quanto por conferir às mulheres o protagonismo, em um cenário literário que privilegia narrativas que se desenrolam sob o enfoque masculino, mostrando, portanto, o mundo a partir de uma única ótica e vivência. Aqui, de modo contrário, desenrolam-se narrativas que dão mostras do quanto são múltiplas as experiências das mulheres.
Dividido em cinco partes, o romance apresenta mulheres de personalidade forte em meio a um país em formação, constituído por múltiplas identidades e às voltas com suas contradições. A história da mulher brasileira também vai se delineando: suas diversas formas de luta pela sobrevivência, mas, sobretudo, por sua autonomia.
No que se refere à construção da narrativa, destaca-se a forma como se entremeiam as diferentes histórias, uma servindo de gancho para a outra, já que a narrativa enfoca o passar das gerações e a própria ancestralidade a reverberar na vida de cada personagem. Há, então, uma ideia de continuidade, mas também de rupturas entre a história de cada uma dessas personagens e, como cenário, a história brasileira. Destaque-se a presença de uma narradora a costurar as histórias da “família”. A ausência de pistas mais substanciais sobre quem é essa narradora permite a leitura de que o romance conta, em verdade, a história das mulheres da grande família brasileira e o modo como ela se constituiu.
O romance histórico, conforme já destacado por George Lukács, tem a capacidade de revelar forças sociais que se digladiam. É assim que o leitor vai compreendendo como se dava a vida das mulheres em meio a diferentes situações, nas quais ficam patentes os interesses do sistema, em suas facetas política, econômica e social. Fundamental aqui, no entanto, é perceber que não se trata de mais um romance sobre a história brasileira, mas, sim, de um romance que enfoca a perspectiva feminina: quem são e como viveram essas mulheres anônimas, rechaçadas, escravizadas, ou mesmo aquelas consideradas libertas, detentoras de certos direitos, o que nem sempre assegurava bem-estar e felicidade?
O livro se inicia com a chegada dos portugueses à Bahia, em 1500. Tendo como ponto de partida a colonização, a autora parece indicar, sub-repticiamente, que muitos dos males que ainda hoje enfrentamos são fruto de um sistema exploratório cujas marcas sobrevivem mesmo com o passar do tempo. Inaiá, Tebereté e Sahy: indígenas que veem suas vidas modificadas pelo influxo civilizador. Sahy, fruto de um relacionamento com o colonizador, cujo nome significa “a água dos olhos, a lágrima”, perde-se na mata e se torna escravizada, pois os indígenas eram usados como mão de obra. A cada vez que se relacionava com o Castelhano, a menina engravidava de um filho morto, como a reiterar todos os vestígios de morte deixados pela própria colonização. No entanto, um bebê vinga: Filipa. E é ela, que conhecia as histórias de seu povo somente por meio dos relatos de sua mãe, que põe em xeque o processo de catequização dos indígenas e da violência da colonização, como retratado em relação a outras personagens, como Maria Cafuza, por exemplo.
Os anos se passam e outras mulheres desfilam pelos engenhos, casam-se com cristãos-novos e portugueses, em meio a disputas por terras envolvendo holandeses. Também a resistência dos negros escravizados ganha cena e muitos conflitos destacam-se, como a Guerra em Pernambuco, em 1654, até chegar às revoltas do começo do século XX e à Ditadura Militar brasileira, a partir dos anos 1960.
Ao transitarem por cidades e povoados, as personagens fazem uma travessia geográfica em direção ao Sudeste, como a mostrar o processo de povoamento do Brasil com seus fluxos migratórios. Os tropeiros e a criação de gado vão ganhando cena em direção ao Rio das Velhas e às Minas Gerais, passando pelos bandeirantes e pela busca por ouro; depois, a chegada da Corte ao Brasil torna o Rio de Janeiro uma capital “bela e febril”. Seja aonde for, em cada um desses cenários, é a voz feminina que se faz ouvir, por meio de personagens invisibilizadas e desconhecidas que despontam, como a questionar a centralidade de narrativas tradicionais, em que tais vozes não ecoam, como se as mulheres não tivessem participado da história.
E como são essas protagonistas? Mulheres humanizadas, nem sempre boas, como a pérfida Clara Joaquina; outras, marcadas pela morte, como Damiana, que acaba sendo enclausurada à força pelo marido em um convento, tratada como louca – quantas terão tido esse mesmo destino? Silveira coloca em xeque, ainda, o esquecimento histórico e coletivo, “Essa geração de brasileiros, nem bem dois séculos tinham se passado e já havia por completo se esquecido de quem descendia. […] O que todos pensavam na época [século XVIII] é que o mundo era assim: o branco no mando, o escravo no trabalho, o índio e o bicho no mato”. Em pleno século XXI, com florestas e matas devastadas e povos indígenas à beira do colapso, nota-se que a situação não se faz tão diferente.
O final do século XIX e as primeiras décadas do XX dão continuidade a essa sequência singular de protagonistas: tem-se Açucena, dona de uma sexualidade mais livre e que viu chegar a abolição; tem-se Diana e a chegada da fotografia; tudo isso ligado a uma vida social movimentada nos cafés, mas também em associações que iam se constituindo em busca da defesa de direitos, como o Clube Abolicionista de Mulheres. A reurbanização do Rio de Janeiro e suas implicações políticas e higienistas, a imigração italiana, amores que sobrevivem (ou persistem) em meio aos conflitos políticos: todos esses elementos marcam a trajetória de vidas atravessadas pela história. É possível que o ponto máximo quanto a esse aspecto seja a personagem Lígia, participante da luta armada contra a Ditadura Militar, desaparecida política, torturada, assassinada, como tantos jovens o foram. Seu “amor clandestino”, amor-resistência, gera Maria Flor, para quem “nenhuma [teoria] era capaz de dar realmente conta das características predatórias e perversas da classe dominante brasileira”.
Por suas lembranças fragmentadas e seus traumas, o leitor se pergunta: que é feito dessa geração de filhos dos desaparecidos políticos? Que marcas, que lacunas fazem parte de sua existência? Amanda e Benjamim, os gêmeos de Maria Flor, vivem às voltas com as balas perdidas que a polícia desfere, com o poder do tráfico e das milícias, mas também com as decisões que precisam tomar, como uma gravidez precoce, a descoberta da homossexualidade e o que isso representa em uma sociedade extremamente homofóbica. E o filho de Amanda – de um indígena ou de um negro? –, prestes a nascer, parece simbolizar nossa própria nação, também ela filha de muitas culturas, de muitas histórias, de muitas vivências enfim.
É assim que A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas nos apresenta muitas mulheres diferentes: algumas mais excêntricas, outras, mais sérias; algumas conscientes de sua beleza e do fascínio que exerciam sobre os homens, outras nem tanto; algumas, ludibriadas por maridos e família; outras, verdadeiras parceiras e empreendedoras junto a eles; algumas, bem adaptadas ao status quo; outras, mais perspicazes, desafiavam o sistema. E muitas pagaram o preço por isso. Maria José Silveira constrói assim um romance nada ingênuo, ao contrário, bem delineado, nessa parceria tão frutífera como é a parceria entre história e ficção.
Para saber mais
OLIVEIRA, Patrícia (2019). Entre mulheres, uma história: um olhar literário à colonização brasileira em A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel.
PLÁCIDO, Elane; RODRIGUES, Roniê (2018). Representações da loucura feminina em A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. Opiniães, n. 12, p. 261-274. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/view/143355. Acesso em: 1 mar. 2023.
SANTOS, Layse Dayana Lima (2021). Histórias de mães, memórias de filhas: um estudo das intersecções e confluências entre ficção, história e memória em A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís.
SANTOS, Layse Dayana Lima (2022). As vozes do tempo: um estudo sobre as narradoras e a organização temporal em A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE LITERATURA, ENUNCIAÇÃO E CULTURA, 1., 6 a 7 dez. 2021, [S.l.]. Anais […] São Luís: Edufma, 2022. p. 69-82. Disponível em: https://www.edufma.ufma.br/wp-content/uploads/woocommerce_uploads/2022/03/ANAIS-I-SILECult.pdf. Acesso em: 1º mar. 2023.
TALHARI, Patrícia Bertachini (2005). A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas: o passado revisitado sob a ótica feminista. Revista de Letras, Curitiba, n. 7, p. 1-11. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/rl/article/view/2239/1400. Acesso em: 1 mar. 2023.
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