SENA, Nicodemos. A espera do nunca mais: uma saga amazônica. Belém: Cejup, 1999.
Nathália Melo de Oliveira
Ilustração: Cláudio Rodrigues
A espera do nunca mais: uma saga amazônica foi escrita por Nicodemos Sena (Santarém, PR, 1958), jornalista e bacharel em Direito, nascido e criado no Pará, próximo da divisa com o Amazonas. O autor, que passou grande parte de sua infância e juventude convivendo com indígenas e caboclos, privilegia esses povos em seu romance, trazendo-os como personagens centrais da narrativa. O livro foi publicado pela primeira vez em 1999 e ganhou uma reedição em 2002, depois de receber o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 anos, da União Brasileira de Escritores. Em 2020, foi republicado em um momento muito oportuno da história do Brasil, já que, assim como na narrativa, os povos indígenas e o direito à demarcação de suas terras voltavam a ser tema de grande debate.
A edição de 2020 traz um texto escrito em uma tonalidade marrom, o que dá a impressão de que as palavras levam o leitor para o meio da terra da floresta amazônica. As mais de mil páginas de histórias trazem uma narrativa fluida, curiosa e necessária para a literatura brasileira, pois é um registro da história de povos indígenas e do povo nortista. Ademais, a narrativa coloca um holofote na revolta dos cabanos, que aconteceu no início do século XIX na província do Grão-Pará – região que hoje compreende o estado do Pará. O autoritarismo dos governantes regentes, a revolta armada e a exigência de melhores condições de vida por parte dos cabanos se assemelham muito ao cenário do país durante a ditadura militar, e Nicodemos Sena conecta as características desses dois momentos da história brasileira durante toda a narrativa.
O romance é dividido em três partes e cada uma é subdividida em capítulos curtos. Todas as partes são contadas por um narrador em terceira pessoa, que por vezes conversa com o leitor. Contudo, cada parte do livro dá enfoque para espaços e personagens diferentes.
A primeira parte destina-se a contar a história de Gedeão, Diana e sua tribo, que vivem às margens do rio Maró. Gedeão é um tapuio que tem como genitores dois indígenas que viviam na região do Nambu, na vila dos Batistas – vila ao norte do rio Maró. Quando era muito pequeno, o pai de Gedeão foi morto por Estefano Barbosa (homem que, posteriormente, tornaria-se padrinho do tapuio) e a mãe, Lazinha, foi arrancada de sua terra e abusada sexualmente, até a morte, por Estefano. A mãe de Gedeão era também mãe de Diana e Mica (estes dois eram filhos de Estefano com Lazinha). Por muito tempo, Gedeão acreditou que os pais tinham morrido de interferências da natureza em suas vidas (a mãe teria morrido no parto e o pai picado por cobra) e não por intermédio das ações de seu padrinho. Gedeão e Diana cresceram na região do rio Maró e demoraram a descobrir que eram irmãos. Antes de saberem disso, tinham uma relação de irmandade que beirava um romance. Nessa parte do livro, as histórias de como Estefano chegou na comunidade e começou as primeiras conversas com os tapuios de lá é revelada: o homem chegou em um barco oferecendo cachaça em troca da farinha produzida pelos tapuios. Com a intensa troca, a abstinência de sabedoria sobre o sistema monetário e a exploração de Estefano, a dependência alcoólica dos indígenas se estabeleceu. Estefano os controlava em um sistema de trabalho muito parecido com o da escravidão vivida pelos indígenas brasileiros na chegada dos portugueses em suas terras. Gedeão, afilhado de Estefano, é tomado como homem de confiança do branco e, por vezes, é poupado de suas grosserias e atos violentos.
A primeira parte do livro também se dedica a contar várias histórias dos povos indígenas (como a da Iara, Curupira, Tupã etc.) e a importância dos elementos da natureza para seus povos. A relevância dos registros dessas histórias é imensa, visto que elas podem se perder no tempo por serem majoritariamente orais. Além disso, é possível conhecer um pouco sobre o cotidiano, as crenças e as percepções da vida de um povo indígena. Inclusive, as situações vividas pelos indígenas mostram a periculosidade da inserção da cultura branca nessas comunidades indígenas, bem como das crenças e dos valores cristãos.
Durante uma boa extensão da leitura da primeira parte, é praticamente impossível estabelecer exatamente o tempo da narrativa – exceto pela diferença entre o dia e a noite. Essa escolha do autor leva o leitor a acreditar que a história se passa no início do século XVI, pela semelhança entre a chegada e as interações do homem branco com os tapuios e a chegada das primeiras navegações portuguesas em terras brasileiras. Contudo, no final dessa parte, um aparelho de rádio é trazido para a comunidade indígena e é possível entender que a história se passa durante a Ditadura Militar no Brasil. A presença de Eduardo, estudante que fugia da repressão do regime militar, confirma o tempo em que a história se dá. Além disso, para explicar como chegou até a comunidade indígena que vivia às margens do Maró, Eduardo teve de explicar aos tapuios um pouco sobre como o regime funcionava, como a violência era a arma utilizada para disseminar pensamentos contrários ao governo e quais eram as problemáticas do sistema trabalhista do momento.
A segunda parte inicia com a chegada de Dora, filha de Estefano, em Belém. A moça está nos primeiros anos do curso superior e conhece o estudante de Direito, Julião. Ele é um caboclo da ilha de Marajó que vive na casa dos Alarico e trabalha no armazém do sr. Alarico. Quando ainda estava na escola, Julião já se interessava por política e filosofia, participava de um grêmio estudantil e de um grupo secreto que discutia ações e organizava protestos pela democracia. Por trabalhar no armazém de seu anfitrião, as relações trabalhistas entre Julião e o sr. Alarico são tão injustas quanto a dos tapuios e Estefano – narradas na primeira parte do livro. A intensa atividade do grêmio e do grupo de que Julião participava estendeu-se para a universidade e acabou chamando a atenção de Dora, que também começou a fazer parte da organização.
A segunda parte do livro dedica-se quase que exclusivamente a contar sobre as vivências de Julião, tendo como cenário a ditadura militar, o uso da violência e a resistência nortista. Desse modo, Nicodemos Sena tira a atenção histórica do centro-sul do país durante os anos de repressão e mostra seu percurso e desdobramentos no Norte do país.
A terceira e última parte do livro entrelaça os espaços e personagens das partes anteriores. Dora, já professora, vai até a Vila dos Batistas – onde Gedeão e seus amigos moram agora – para ensinar os indígenas a ler e a escrever, além de formar resistência contra as ações violentas de seu próprio pai. Dora está casada com Julião, que agora é um advogado burguês, e vai até a comunidade a pedido de padre Alfredo. Durante essa terceira seção, há uma ameaça de que Estefano invada as terras da Vila dos Batistas e mate e/ou force os indígenas a voltar para as margens do rio Maró para trabalhar na construção e no funcionamento da usina que ele instalara na região. Essa parte da narrativa remonta a discussões já mencionadas nas partes anteriores como: o uso de armas, a violência, a interferência dos brancos em comunidades indígenas, as histórias indígenas e o saudosismo à revolta da Cabanagem.
Por fim, há um glossário com termos indígenas e locais que estão presentes ao longo do texto, além de alguns artigos sobre a história do livro.
Para saber mais
SOUZA, Luiz Eduardo Correia de (2022). A subversão cabocla no romance A espera do Nunca mais: uma saga amazônica, de Nicodemos Sena. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho. Disponível em: https://ri.unir.br/jspui/bitstream/123456789/3845/1/Disserta%c3%a7%c3%a3o.pdf. Acesso em: 8 fev. 2023.
ORTIZ, Iza Reis Gomes; ALBUQUERQUE, Gabriel Arcano Santos de (2016). Sistemas e subsistemas interdisciplinares na obra A espera do nunca mais: uma saga amazônica, do escritor Nicodemos Sena: uma proposta de análise. Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade – Igarapé, Porto Velho, v. 1, n. 2, p. 150-164. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/2220/1826. Acesso em: 8 fev. 2023.
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