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A descoberta do frio

CAMARGO, Oswaldo de. A descoberta do frio. São Paulo: Edições Populares, 1979.

Nathalia Augusto Pereira
Ilustração: João Pinheiro

Integrante da formação inicial dos Cadernos Negros e do Quilombhoje, Oswaldo de Camargo (Bragança Paulista, SP, 1936) parte do frio como doença para abordar o universo da grande São Paulo entre o crescimento urbano e o sofrimento de pessoas negras que, acometidas pela frialdade, vão sumindo. Seu livro A descoberta do frio, com prefácio de Clóvis de Moura e ilustrações de Luiz Boralli, foi originalmente publicado em 1979 pelas Edições Populares. Revisto, ficcionalmente ampliado e relançado pela Ateliê Editorial em 2011 e 2015, manteve o prefácio, mas com ilustrações de Genilson Soares e orelha de Eduardo de Assis Duarte. Em 2023, A descoberta do frio passou pela 3ª edição, desta vez pela Companhia das Letras. Agora ilustrado por Kika Carvalho, uma mulher negra, recebeu revisão do autor, que conservou o prefácio de Clóvis de Moura, mas não adicionou texto crítico atualizador das questões literárias negro-brasileiras. Abordando diversas concepções para a expressão “descoberta do frio”, esse livro é um encontro literário entre gerações de autores negros de um Brasil que insiste em um projeto de esquecimento.

Apesar de mais próximo do gênero novela por sua extensão, A descoberta do frio mescla variadas formas, sendo difícil encaixá-lo em definições estanques. Com muitos espaços e personagens, alguns mais, outros menos detalhados, destacam-se os mais jovens, como Zé Antunes, Batista Jordão e Laudino, e os mais velhos, como Doutor Ovídio Matos, Padre Antônio Jubileu, Bispo de Maralinga e vovô Cumbuca. Eles se reúnem em praças, bares e salões dos movimentos negros, diversos entre si, com a semelhança de se agruparem para discussão e produção de cultura, sobretudo de literatura, refletindo inclusive sobre escritores, como Castro Alves, Cruz e Souza, Luís Gama, Gervásio Morais, Lino Guedes, Machado de Assis e Solano Trindade: “nesses nomes Zé Antunes se apoiaria, a partir deles desvendaria, achava, a máscara do frio”.

Numa cidade, que poderia ser qualquer uma cujos dirigentes “não viam razão para deter o frio de que alguns negros se queixavam, vez ou outra, em páginas de jornais ou em depoimentos aos estudiosos que pesquisavam os efeitos”, uma doença aparentemente meteorológica atinge não só o corpo físico mas também afeta a alma, com sintomas de vergonha, de desejo de desaparecimento, de descrédito de si mesmo e de negação de sua negritude. O enredo desenvolve-se em torno da doença e daqueles que buscam respostas, como o poeta Zé Antunes, que aparece de repente nas entidades negras e nos bares mais frequentados por afro-brasileiros da cidade, fala abertamente do frio e é zombado por quase todos os frequentadores.

No bar Malungo, que reunia gente afro menos endinheirada, muitos começaram a se sentar perto de Zé Antunes para ouvir falar sobre o frio. Já no Toca das Ocaias, frequentado pelos que estavam em melhor situação financeira e ouviam o prestigiado Batista Jordão, a maioria não levou a sério o assunto. Mas Batista Jordão não ria, pelo contrário, incentivava Zé Antunes a falar. A história muda, ainda no primeiro capítulo, com o aparecimento do crioulinho Josué: “batendo os queixos, um ruído seco que se ouvia a distância de metros. Retalhos de flanela enrolavam-lhe as mãos, a cabeça achava-se coberta com três gorros grosseiros de lã amarela, porém o mais extraordinário: saíam-lhe dos tênis várias tiras de couro de gato, imitando canos de botas […] nos olhos, mais do que no frio, havia algo muito, muitíssimo estranho”.

No capítulo seguinte, intitulado “Estranheza I”, mesmo sabendo que vez ou outra apareciam estranhezas como essa, a cidade não se interessava em se aproximar para ver o que estava acontecendo e iria se agasalhar para dormir, pois tinha “convicção petrificada havia tempo em seus anais”. Essa passagem aproxima-se das questões do negro como objeto de pesquisas acadêmicas. O termo “anais” demonstra que os estudos estavam petrificados e que seria necessário buscar outras respostas. Mas, para tanto, era preciso provar a existência da doença, já que a dificuldade estava no desaparecimento da vítima.

O menino Josué some, após ser levado a uma consulta médica por Laudino para saberem o nome para esse frio. Laudino havia dito ao doutor que lera um livro de um famoso médico sobre as doenças de negro no Brasil já examinadas: “lá se fala em ainhum, suifa, subiá, dracúnculo, um batalhão de moléstias. Mas isso aqui doutor – e Laudino, mão sobre os gorros de Josué, proferiu, decisivo –, isso aqui é o frio! […] eu juro; eu ouvi uma ventania medonha zunindo na alma dele!” E Laudino então se desespera, pedindo um nome para essa doença que afetava os negros, ao que o médico lhe questiona como sabia ser coisa de negros. Laudino conclui, em “Estranheza II”, que “a medicina quase nada tinha a ver com as mazelas que aos bandos, feito abelhas, haviam ancorado sobre a vida do menino Josué”.

Já pela metade do enredo, surge o termo “melanoscrios”, grafado em itálico e com nota explicativa ao final do livro, aparentemente, fora do enredo. A nota diz tratar-se de um equívoco do inventor da palavra: “Melanos significa tão somente preto, escuro, sem conotação alguma racial. Em consequência, o frio acaba sendo preto, enquanto no texto se afirma o tempo todo que é branco”. Considerando o racismo como um problema criado pelos brancos, o livro deixa para o leitor a tarefa de refletir, já que se trata de um elemento extraliterário em que o autor critica um de seus personagens. E Zé Antunes vai em busca de respostas em outras esferas, pois “era certo: Josué desaparecera. Para sempre desaparecera”.

Durante o enredo, desenvolve-se a ideia de que o principal não é desvendar e nomear o mistério por trás da doença, mas perceber como as personagens afrodescendentes intelectuais, poetas, jornalistas, pesquisadoras se articulam em torno da descoberta. Eram diversas associações, grupos e clubes negros, cada um com suas ideias, suas políticas e suas filosofias. Além do Malungo e do Toca das Ocaias, havia o Vigilantes Escolhidos, o Evoluídos, e o grupo de maior respeitabilidade, o Movimento Participação Negra, apelidado pelos outros de Grupo dos Pretos Velhos, devido ao número de frequentadores negros passando dos 60 anos e do qual fazia parte vovô Cumbuca.

O encontro literário entre gerações pode então ser ilustrado pelo capítulo já próximo do final do livro, “Sim, houve muitas geadas”, no qual discursa vovô Cumbuca, que, como outras personagens mais velhas, é o elo entre a experiência da tradição e a vivência do atual. Provocado pelos mais jovens a buscar na memória respostas sobre o frio, sonolento e com olhar perdido, vovô Cumbuca diz ter vivido muito e que agora se reúne com o movimento apenas para comer bolachas e tomar chá, mas, em seguida, ironiza os fatos desenrolados até ali, dizendo que a geada já existe há muito mais tempo, inclusive citando Luís Gama e Machado de Assis.

A dialética entre passado, presente e futuro diz respeito também ao autor e seu posicionamento diante da produção literária negra ao longo da história brasileira: Oswaldo de Camargo é dos intelectuais negros atuantes desde a década de 1970 até os dias atuais, com produção ficcional e não ficcional, literária e crítica. O autor situa as questões centrais da produção literária de autoria negra através de metáforas – como a pergunta “é possível acreditar em um bispo de uma palavra só?” – e aborda as questões que permeiam a crítica literária de autoria negra: o panfletário, a eloquência, o dissonante, a sintetização e a repetição; bem como a qualidade e a representatividade literária. Como exemplos da abordagem metaliterária do livro, temos a citação de um poeta parnasiano que “rompeu com os cânones da Escola” para “testemunhar simplesmente o frio” e com isso “morreu na miséria, pois seus “versos se comportaram mal; e palavras de cunho quimbundo, alforriados, começaram a visitar, com extraordinária frequência, os seus textos”; além do caso de Batista Jordão, “poeta negro desencontrado”, magoado pela falta de diálogo com a crítica: “não lhe doeu a dureza, doeu-lhe o menosprezo, ferindo a vaidade […] se dissesse as mesmas coisas, elucidando com exemplos, citações de poemas, apontando versos”.

Na nota sobre a edição de 2011, o autor explica que, quando da primeira edição, houve a intenção de experimentar técnicas, e a edição mais recente pode ser considerada um livro novo a estabelecer com a crítica um diálogo mais profundo, de avaliação de uma corrente. Sem seguir a tradicional composição folhetinesca para romance ou novela, A descoberta do frio divide-se em 17 capítulos, uns mais curtos, como por exemplo, “Estranheza I” e “Estranheza II”; e outros mais longos e com muitas subdivisões, como “O clube dos escravos”. A história fecha com o último capítulo, “Feira do Desdém”, no qual o encerramento, além de curto, repleto de interrogações e reticências, marca a estratégia de ainda deixar pontas soltas em A descoberta do frio. Embora revisto e ampliado, Oswaldo de Camargo manteve o formato e o enredo do texto original, cuja forma marca a intencionalidade estética de descobrir dilemas, revelando e expondo a produção literária de autoria negra e refletindo sobre ela, o que ainda está em aberto para a produção literária contemporânea.

Estendendo o raciocínio para fora da ficção de Oswaldo, se literatura se faz com vistas ao diálogo, com os autores negros, nossa tradição pouco dialogou. Como o racismo se dá pelo impedimento, mas também pela segregação velada que, de tanto esconder, faz sumir, nessa novela, a descoberta é também do “velho, branco, rijo” racismo epistêmico e literário, do qual padece o negro intelectual inaudito, ignorado, tolhido, esquecido, silenciado ou desacreditado. Mas, apesar da produção de esquecimentos, avultam no Brasil encontros entre os escritores que já descobriram o racismo outras tantas vezes e os agentes do cenário literário atual. Recentemente, Eliana Alves Cruz remontou a história da fundação do Brasil, expondo o racismo estrutural, descortinando famílias tradicionais que escravizaram, torturaram, retiraram direitos, usurparam e seguiram na manutenção e centralização dos poderes. O destaque à autora nesta resenha ocorre porque a Fundação Cultural Palmares foi a instituição a promover seu romance Água de barrela por meio de concurso literário. Infelizmente, poucos anos depois, produzindo apagamentos da produção cultural afro-brasileira e encobrindo o racismo, esteve Sérgio Camargo, filho de Oswaldo de Camargo.

Em A descoberta do frio, ao encontrar uma pessoa que sofre de frialdade, convém dar-lhe cobertas, mas seria necessário cobrir-lhe tanto até que desaparecesse, tamanha tremedeira. A solução para a doença precisaria, portanto, ser tomada ao contrário. Não se trata de simplesmente “descobrir” um nome para a doença e “cobrir” o doente, mas mostrar o que se encontrou, tirando aquilo que o encobre, na base da fala (e do grito). Descobrir com sentido de encontrar remete ao encontro literário como aquilombamento de autores negros, diversos entre si, mas semelhantes no propósito de expor (outra das acepções) de variadas formas, a ideia de que se não há frio sem aquele que o provoca, ao descobri-lo, os racistas também são descobertos. A descoberta do frio envolve, portanto, descobrir como ato de encontrar e desmascarar aqueles por trás dos que encobrem crueldades na dissimulação institucional da frieza.

Essas acepções para a palavra “descobrir” demonstram a tamanha profundidade de uma obra vista por alguns superficialmente como novela. A distinção entre novela e romance, no caso da autoria negra, não deve gerar maiores preocupações, considerando que a produção ficcional negra da década de 1970 ocorreu preponderantemente em formato de novela, por ser publicável em termos de viabilização comercial. Ou seja, esse é um livro que merece ser reconhecido entre os clássicos da nossa literatura, devido a sua qualidade e profundidade diante das condições da época. E, mais ainda, as edições desse livro merecem ser vistas de forma crítica quanto às suas mudanças no decorrer do tempo.

Como dito na narrativa, embora para alguns a autoria negra pareça ser “antiguidades poéticas românticas”, com texto “metido a inovador”, “panfletário”, “enxuto”, “prenhe de húmus negros” ou “carregado de estética branca”, é no diálogo com o já dito que o projeto literário do qual faz parte Oswaldo de Camargo segue descobrindo o frio e criando antídotos. Impedir que o frio continue a calar os negros atende ao chamado da contracapa, lema do antigo grupo de vovô Cumbuca, de Oswaldo de Camargo, de Eliana Alves Cruz e de muitos outros intelectuais negros brasileiros: “Irmãos! Apoiai-vos nos muros do Ocidente, pintai-os com a tinta preta de vossa pele!”

Para saber mais

PEREIRA, Nathália Augusto (2021). Para que nunca se esqueçam: leituras compartilhadas de O crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/18474. Acesso em: 26 fev. 2023.

SILVA, Auliam (2014). Trafegando na contracorrente: a descoberta do frio como contraliteratura. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC, 14., 29 jun. a 3 jul. 2015, Belém/PA. Anais […] Belém: Abralic. Disponível em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2014_1434477270.pdf. Acesso em: 26 fev. 2023.

VAZ, Zélia Maria N. Neves (2022). A descoberta do frio: a prosa afro-brasileira de Oswaldo de Camargo. Belo Horizonte: Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/28-critica-de-autores-masculinos/359-a-descoberta-do-frio-a-prosa-afro-brasileira-de-oswaldo-de-camargo-critica. Acesso em: 26 fev. 2023.

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Como citar:

PEREIRA, Nathalia Augusto.
A descoberta do frio.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

04 mar. 2024.

Disponível em:

600.

Acessado em:

19 maio. 2025.