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A asa esquerda do anjo

LUFT, Lya. A asa esquerda do anjo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

Allysson Augusto Silva Casais
Ilustração: Mariângela Albuquerque

Um olhar para a produção literária contemporânea no Brasil evidencia de imediato o aumento no número de obras escritas por mulheres. Ao analisar esse dado, Eurídice Figueiredo (2020), em seu livro Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritores brasileiras, registra as várias tendências dessa literatura, “que vão do romance histórico (Maria José Silveira, Eliana Alves Cruz) às narrativas de filiação (Adriana Armony, Noemi Jaffe), da prosa intimista, às vezes poética (Aline Bei), aos romances de um realismo bruto (Cinthia Kriemler).” Observando os nomes citados pela pesquisadora, o de Lya Luft (Santa Cruz do Sul, RS, 1938 – Porto Alegre, RS, 2021) poderia facilmente ser incluído na listagem ao lado de escritoras que se dedicam à prosa intimista. Os romances da escritora gaúcha são permeados por personagens femininas e frequentemente exploram os traumas vividos por mulheres. A asa esquerda do anjo talvez seja o exemplo máximo disso.

Publicado originalmente em 1981, o segundo romance de Luft narra a história de Guísela. Descendente de imigrantes alemães que moram na região Sul do país, a personagem sofre com seu deslocamento dentro da família. A rigidez imposta pela avó paterna, Frau Wolf, é motivo de penúria desde a infância. No núcleo da trama, está o parto de Guísela: cada um dos seis capítulos abre-se com detalhes do evento, antes de adentrar as memórias da narradora sobre sua família. O parto, contudo, não é o de uma criança, mas o de uma criatura grotesca que ocupa o corpo da protagonista. Reprimida desde cedo pelas expectativas misóginas de seus familiares, Guísela nunca chega a vivenciar um ato sexual. Sob os olhos da avó e de outros parentes, o corpo de Guísela é constantemente vigiado. Determina-se onde e como ela deve se sentar (sempre “em cima de uma almofadinha”) e espera-se que ela esteja sempre limpa. A preocupação central da família é com uma suposta pureza do corpo feminino, que precisa ser constantemente preservado.

Na narrativa, a noção de pureza está nitidamente interligada à de virgindade. Ao final do livro, Guísela, que sempre padecera com as expectativas de seus familiares, orgulha-se de nunca ter tido uma relação sexual. A gestação, portanto, tem um alto grau metafórico no romance. O monstro que ocupa o corpo da personagem e que precisa ser expelido pode ser interpretado como as repressões sofridas por ela ao longo da vida. A estrutura da obra contribui para esse entendimento. Além de o leitor acompanhar os eventos do parto no início de cada capítulo, Guísela também narra as dificuldades da convivência familiar. Assim, a narrativa estabelece uma relação direta entre as imposições sofridas pela narradora e o verme que a inflige.

“Terei coragem”, Guísela pergunta-se pouco antes do início do parto, “de, num ritual último, abrir a boca como nunca abri as pernas e parir minha purificação?” Se as pernas da personagem permaneceram fechadas ao longo dos anos para preservar seu sexo, a salvação parece estar na expulsão do verme pela via oral. A purificação maior só é possível se Guísela também abrir aquilo que sempre manteve fechado por imposição familiar: a sua boca. No livro A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft, Maria Osana de Medeiros Costa (1996) resume bem a simbologia desse ato, afirmando que o “parto realiza-se pela boca, numa metáfora de que só dando à luz a linguagem [Guísela] pode se libertar. O parto é uma explosão de vida e de linguagem, pois só a palavra é capaz de expressar o reprimido e purificá-la.”

A salvação está na linguagem. Dar palavras às violências vividas ao longo da vida significa enfrentar os traumas do passado. Contudo, no romance, esses traumas não são somente de Guísela, mas de gerações de mulheres da família Wolf. Guísela, que é a neta e a última sobrevivente da linhagem familiar, usa a linguagem para expelir o monstro representante não só de seu tormento particular mas também o de sua mãe, de sua avó, de sua prima e de suas tias.

A asa esquerda do anjo apresenta uma gama de personagens femininas. Além de Guísela, há a mãe, Maria da Graça, a única não descendente de alemães na família. Apesar de um casamento aparentemente feliz, a vida da mãe da protagonista é marcada por sacrifícios impostos pelo papel de esposa. O abandono da terra natal, a imposição da língua e dos costumes alemães, a expectativa de preparar pratos culinários que lhe provocam repulsa são os problemas que assolam Maria da Graça – além do velado racismo que sofre da família do esposo pelo fato de não ter ascendência alemã.

As tias paternas são duas: Helga e Marta. A primeira é doente e frágil, passando grande parte da narrativa isolada no quarto. Uma das cenas mais impactantes no livro é justamente o estupro de Helga pelo marido, Ernst. A asa esquerda do anjo não é a primeira obra em que Lya Luft trata da violência sexual dentro do casamento. Em seu primeiro romance, As parceiras, de 1980, a avó da protagonista é estuprada repetidamente pelo esposo. Casada aos 14 anos, Catarina Van Sassen passa a vida sendo violentada pelo marido que tinha “suas virilhas em fogo” e acaba suicidando-se. A história de Catarina, a matriarca, vira tabu para os Van Sassen e seu trauma atravessa diferentes gerações. Em A asa esquerda do anjo, Guísela presencia o estupro de Helga ao entrar no quarto para dar o remédio a sua tia. A cena repulsiva e violenta leva Guísela a se fechar. Ela decide transformar-se “numa velha ereta e seca”, tal como a avó, pois esse era o único refúgio possível da violência representada por Ernst.

Já tia Marta é descrita como uma mulher resignada aos papéis de esposa e de mãe. Nesse sentido, ela é similar à Maria da Graça, só que mais claramente infeliz. Casada duas vezes, Marta teve quatro filhos na primeira união; na segunda, foi traída pelo marido, Stefan, com a própria sobrinha, Anemarie. Sua reação ao caso é elogiada na narrativa por ela simplesmente voltar à rotina de cuidar dos filhos e cozinhar para a família – a possibilidade de dar voz às suas mágoas lhe é negada. “O que havia nela de pacato e doméstico”, Guísela narra, “ajudava-a a resistir”. Sua única salvação aparenta ser o ciclo de amizade que nutre com outras mulheres.

Anemarie, por sua vez, é a neta amada de Frau Wolf. Se Guísela sempre sofreu com as expectativas da família, sentindo-se insuficiente sob o olhar da avó, Anemarie aparenta encarnar perfeitamente os valores dos Wolf. Assim, a fuga com Stefan representa o início da ruína da família. Ainda mais, Anemarie, a neta perfeita, é a que rejeita com maior ferocidade as expectativas colocadas sobre as mulheres da família ao fugir para viver um amor proibido. E ela é severamente punida por isso. Dez anos após partir com Stefan, Anemarie retorna à casa para morrer de um câncer no útero. Frau Wolf, todavia, recusa-se a ver a neta, aparecendo somente em seu velório. O cuspe da matriarca perante o caixão de Anemarie solidifica a rejeição sofrida pela neta que ousou escandalizar a sociedade e viver com o homem amado.

É também com a personagem de Anemarie que a narrativa explora outra temática comum nos primeiros romances de Luft: o homoerotismo. Ao longo de A asa esquerda do anjo, Guísela nutre uma paixão por sua prima. Sob o olhar da narradora, as cenas de Anemarie tocando o violoncelo ganham uma sensualidade não expressada em outros momentos do romance. A já mencionada Catarina, personagem do romance As parceiras, por sua vez, tem um momento íntimo com sua enfermeira. Descoberta, a jovem é demitida e pouco depois se suicida. Anelise, narradora e neta de Catarina, define a negação dessa intimidade como uma “tragédia sutil”, que impediu a salvação de sua avó. A própria Anelise se apaixona por sua amiga de infância, Adélia, seu primeiro amor, “numa idade em que as almas interessam muito mais do que os corpos”. A temática do homoerotismo também está presente no terceiro romance de Luft, Reunião de família (1982), com momentos íntimos entre a narradora e uma amiga. Desse modo, as mulheres na literatura de Luft são reprimidas de inúmeras maneiras, inclusive na possibilidade de explorar seus desejos.

Frau Wolf é o pilar da família. Imigrante alemã, a personagem se esforça para manter suas tradições e construir uma família indestrutível. Tirânica e autoritária, a matriarca é apresentada por Guísela como uma mulher seca e odiosa. As exigências para falar somente alemão, para aprender a bordar, tocar piano e cozinhar, entre tantas outras coisas, fazem com que a narradora sempre se sinta como uma incapaz sob os olhos da avó. O desgosto de Guísela por Frau Wolf é também devido ao modo como a matriarca trata Maria da Graça. Como brasileira numa família de ascendência alemã, a mãe da protagonista é vista como inferior. A mágoa de Frau Wolf por seu querido filho não ter se casado com uma mulher descendente de alemães fica clara na narrativa. Assim, a noção de pureza no romance estende-se também para o sangue. O deslocamento de Guísela na família também está relacionado com o fato de ela ser encarada como a neta com sangue impuro. Desse modo, Luft não hesita em tocar na ferida do fascismo ainda evidente na região Sul do Brasil.

Ao longo da narrativa, todavia, compreende-se que a frieza de Frau Wolf é seu refúgio. Assim como sua prole, a personagem também sofre com as imposições sociais devido a seu sexo. Isso fica aparente com as poucas informações reveladas sobre o casamento de Frau Wolf. Após o nascimento da filha caçula, Marta, Frau Wolf expulsou o marido do quarto. Assim, os dois passaram “os últimos cinco anos da vida dele sem trocar uma palavra”. Nada mais é dito sobre a união, porém, com o desfile de mulheres desafortunadas da família Wolf, é fácil imaginar que a matriarca é mais uma delas.

Os romances de Lya Luft estão voltados para a exploração do íntimo de suas narradoras. Todavia, como evidenciado por A asa esquerda do anjo, olhar para o particular não significa ignorar o social. Através de suas personagens femininas, Luft explora os efeitos perversos do patriarcado. Em sua obra, gerações de mulheres são marcadas por traumas ligados à experiência de ser mulher em uma sociedade como a brasileira. Porém, resistir ainda é possível. Frau Wolf expulsa o marido do quarto, tia Marta fortalece suas relações de amizade com outras mulheres e Anemarie escolhe viver seu amor. Apesar de suas tragédias, todas travam uma luta por suas existências com as ferramentas que lhes são disponíveis. Para Guísela, a resistência só é possível na linguagem.

Referências

COSTA, Maria Osana de Medeiros (1996). A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. São Paulo: Annablume.

FIGUEIREDO, Eurídice (2020). Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritores brasileiras. Porto Alegre: Zouk, 2020.

LUFT, Lya (1980). As parceiras. Rio de Janeiro: Record.

LUFT, Lya (1982). Reunião de família. Rio de Janeiro: Record.

Para saber mais

CARRIJO, Silvana Augusta Barbosa (2013). Trama tão mesma e tão vária: gêneros, memória e imaginário na prosa literária de Lya Luft. Curitiba: Prismas.

MELO, Cimara Valim de (2005). Lya Luft: percursos entre intimismo e modernidade. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

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Como citar:

CASAIS, Allysson Augusto Silva.
A asa esquerda do anjo.

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Brasília. 

04 mar. 2024.

Disponível em:

580.

Acessado em:

19 maio. 2025.