SCLIAR, Moacyr. O exército de um homem só. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973
Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Ilustração: Guilherme Franzoni
O exército de um homem só, romance de Moacyr Scliar (Porto Alegre, RS, 1937 – Porto Alegre, RS, 2011) publicado em 1973, surge em um Brasil marcado pela repressão e censura da ditadura militar. Ao longo de suas 176 páginas, a obra combina crítica social, humor irônico e uma profunda reflexão sobre os limites da utopia e da resistência individual. Ambientada no Brasil, a narrativa explora temas como idealismo, loucura, desilusão e os conflitos entre sonhos revolucionários e a realidade opressora de uma sociedade autoritária. Com forte dose de surrealismo e ironia, Scliar constrói a figura do protagonista Mayer Guinzburg, que recebe a alcunha de Capitão Birobidjan, cuja luta solitária por ideais socialistas se torna uma poderosa alegoria da resistência humana diante da adversidade.
A trajetória do autor Moacyr Scliar é essencial para compreender a obra. Filho de imigrantes judeus da Bessarábia, Scliar nasceu em Porto Alegre e construiu uma carreira literária integrada à cultura judaica e marcada pelo uso do fantástico. Médico de formação, ele utilizou sua vivência para abordar questões como identidade, exclusão social e o papel da comunidade. Seus romances são conhecidos por sua criatividade e sensibilidade, entre eles, A guerra no Bom Fim (1972), O centauro no jardim (1980) e A mulher que escreveu a Bíblia (1998). Em O exército de um homem só, ele une compaixão e ironia para refletir sobre os dilemas da sociedade brasileira e de suas instituições.
A narrativa de O exército de um homem só segue a vida de Mayer Guinzburg, um judeu imigrante que chega ao Brasil em 1917, escapando da Revolução Bolchevique. Desde a infância, ele demonstra espírito rebelde, ao rejeitar as tradições familiares e abraçar ideais socialistas e utópicos. Enquanto seus pais desejam que ele se torne rabino, Mayer adere fervorosamente ao marxismo, sonhando com uma sociedade socialista no Brasil. Seu objetivo é fundar Nova Birobidjan, uma colônia agrícola baseada no socialismo e inspirada na região autônoma judaica criada na Rússia na década de 1930. Ao longo do romance, sua dedicação a esses ideais entra em conflito com a dura realidade social e política que encontra.
Mayer representa o arquétipo do idealista solitário, alguém disposto a sacrificar tudo em nome de um projeto utópico. Desde o início, ele manifesta sua contradição interna: ao mesmo tempo que busca uma revolução coletiva, é incapaz de mobilizar apoio significativo, resultando na solidão que dá título à obra. Assim, Mayer é retratado como um homem fora de seu tempo, alheio às demandas práticas do mundo e incapaz de comprometer seus ideais.
A trajetória de Mayer é marcada por sucessivos fracassos. A primeira tentativa de realizar sua utopia ocorre em Porto Alegre, onde ele tenta organizar uma colônia socialista com um grupo de amigos. O projeto, porém, rapidamente desmorona diante das limitações práticas e do desinteresse dos envolvidos. Apesar disso, Mayer não desiste. Ele passa a vida trabalhando como funcionário de uma loja de armarinhos e, posteriormente, se torna proprietário do estabelecimento, mas nunca abdica de seu sonho.
Já adulto, casado e com filhos, Mayer decide abandonar sua família para tentar, mais uma vez, fundar Nova Birobidjan, instalando-se no pobre Beco do Salso. Ali, ele constrói um universo alternativo, convivendo com animais que, em sua imaginação, tornam-se seus companheiros de luta, como a Companheira Cabra e o Companheiro Porco. Essa fantasia, no entanto, é brutalmente interrompida pelos vizinhos, que destroem sua tentativa de criar a colônia. A cena simboliza a resistência da sociedade às ideias de Mayer e ao que ele representa.
Um dos elementos mais marcantes do romance é a maneira como Scliar utiliza o humor e a ironia para explorar a alienação de Mayer. Ele é um homem que vive em um universo paralelo, onde seus ideais utópicos ganham vida através de interações surreais com animais e homenzinhos imaginários que o aplaudem. Essa alienação funciona como uma metáfora poderosa da recusa de Mayer em aceitar a realidade opressora que o cerca.
No entanto, essa desconexão também é a origem de sua fragilidade. Ao se isolar em um mundo de fantasia, Mayer perde a capacidade de construir alianças reais e de enfrentar os desafios concretos que seus sonhos exigem. Ele se torna um personagem tragicômico, ao mesmo tempo inspirador e patético. O leitor simpatiza com suas intenções, mas também reconhece a futilidade de suas ações em um contexto tão adverso.
O uso do realismo fantástico por Scliar aprofunda essa dualidade. A interação de Mayer com os animais personificados e sua visão de homenzinhos que o apoiam são elementos que conferem à narrativa uma qualidade onírica e absurda. Esses recursos permitem que o autor explore temas como solidão, resistência e a linha tênue entre idealismo e loucura de maneira simbólica, mas acessível.
Embora a trama de O exército de um homem só se passe em um contexto histórico anterior à ditadura militar no Brasil, é impossível ignorar as conexões entre a narrativa e o período em que foi escrito. Publicado durante o auge da repressão, o romance utiliza metáforas e alegorias para driblar a censura e transmitir uma crítica incisiva ao autoritarismo. Mayer, com sua insistência em lutar sozinho contra forças esmagadoras, pode ser considerado uma representação dos dissidentes políticos da época, que frequentemente eram rotulados como “loucos” ou “subversivos” pelo regime militar. Sua alienação reflete o isolamento daqueles que se recusavam a aceitar a ordem estabelecida e que pagavam um alto preço por sua resistência.
O título da obra expressa precisamente essa crítica. O exército de um homem só é uma contradição em si, pois sugere a impossibilidade de se enfrentar sozinho as forças que demandam esforços coletivos. A luta de Mayer denuncia não apenas os limites do idealismo radical, mas também a incapacidade de transformação social em um contexto de repressão extrema.
Além disso, o romance aborda questões como exclusão e desigualdade social. Ao ambientar parte da história no humilde Beco do Salso, Scliar retrata a pobreza e o abandono que caracterizavam as periferias urbanas do Brasil. A interação de Mayer com os moradores do beco revela tanto sua compaixão quanto sua incapacidade de compreender as necessidades reais daquela comunidade. Essa desconexão reflete a dificuldade de muitos intelectuais e ativistas em traduzir suas ideias para a prática.
A escrita de Scliar é marcada pela fluidez, pelo humor e pela capacidade de equilibrar o absurdo com a profundidade emocional. Seu uso de ironia permite que ele critique tanto o regime militar quanto os próprios ideais de Mayer, sem cair no didatismo. A compaixão com que ele trata seus personagens torna a narrativa acessível e envolvente, mesmo quando aborda temas complexos e dolorosos.
Por meio de sua escrita envolvente e de seus personagens inesquecíveis, Moacyr Scliar criou uma narrativa que transcende seu contexto histórico. Ainda que claramente influenciado pela repressão da ditadura, o livro aborda questões universais, como o conflito entre idealismo e realidade, a solidão do indivíduo em busca de mudança e a fragilidade das utopias. Essas questões continuam relevantes, tornando a obra uma celebração da força do espírito humano, mesmo diante das adversidades mais esmagadoras.
Em tempos de polarização política e ascensão de regimes autoritários, a luta de Mayer ressoa como reflexão sobre resistência individual contra sistemas opressores. A crítica de Scliar às utopias políticas e à busca por um mundo mais justo continua atual, especialmente considerando as tensões entre idealismo e realidade nos movimentos sociais contemporâneos.
O exército de um homem só é uma obra multifacetada que articula crítica social, realismo fantástico e uma reflexão sobre a condição humana. A trajetória de Mayer Guinzburg, um homem que luta solitariamente por seus ideais, simboliza as tensões entre sonho e realidade, individualismo e coletivismo. Scliar constrói uma narrativa rica em simbolismo, em que o humor e a ironia equilibram a tragédia de um personagem que, apesar de seus fracassos, mantém sua dignidade e crença em um mundo melhor. A obra permanece atual ao abordar resistência, utopia e os desafios de transformar a sociedade, oferecendo uma poderosa alegoria sobre a força e os limites do idealismo em tempos de opressão.
Para saber mais
ARAÚJO, Edna Rodrigues (2015). A comicidade maneirista em O exército de um homem só, de Moacyr Scliar. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia. Disponível em: https://tede2.pucgoias.edu.br/handle/tede/3230. Acesso em: 23 fev. 2025.
RODRIGUES, Gláucia Elisa Zinani (2019). A representação do imigrante judeu na literatura do Rio Grande do Sul: Cágada e O exército de um homem só. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo. Disponível em: http://tede.upf.br:8080/jspui/handle/tede/2492. Acesso em: 23 fev. 2025.
SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da (2006). À sombra de um riso amargo: a utopia vencida em O exército de um homem só, de Moacyr Scliar. Terra Roxa e Outras Terras, v. 7, p. 9-25, mar. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/24773. Acesso em: 23 fev. 2025.
SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da (2002). Fronteiras: correspondências entre espaços físicos e psicológicos limiares em O exército de um homem só, de Moacyr Scliar, e Armadilha para Lamartine, de Carlos & Carlos Sussekind. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 18, p. 3-38. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8919. Acesso em: 23 fev. 2025.
SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da (2001). Vozes da loucura, ecos na literatura: o espaço de louco em O exército de um homem só, de Moacyr Scliar, e Armadilha para Lamartine, de Carlos e Carlos Sussekind. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.
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