PEREIRA, Verenilde. Um rio sem fim. Brasília: Thesaurus, 1998.
Leda Cláudia da Silva
Ilustração: Dona Dora
A escritora Verenilde Pereira (Manaus, AM, 1956), apesar de escassamente conhecida da crítica literária há até pouco tempo, desempenha um papel importante no movimento literário afro-indígena, sendo considerada sua pioneira. Filha de mãe negra e de pai indígena do povo Sateré Mawé, indigenista, mestre e doutora em jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB), Pereira reconhece a escrita como um ato político e a literatura como um instrumento de preservação das memórias. A escritora, que mora na capital federal desde 1986, atuou como repórter em vários jornais do Norte e como professora em um seringal, no Amazonas, e em faculdades de jornalismo. É autora de ensaios, artigos acadêmicos e resenhas, além de ter publicado o livro Não da maneira como aconteceu (Thesaurus, 2002). Como contadora de histórias, as maiores referências da autora circulam entre a tradição oral e a escrita, e vão das vozes ancestrais de sua mãe e suas avós até o legado de escritores latino-americanos, como Jorge Luis Borges.
Em Um rio sem fim, fruto da dissertação de mestrado da autora na Faculdade de Comunicação da UnB, Pereira apresenta uma narrativa labiríntica e multifacetada que combina elementos de romance, reportagem e estudo antropológico. A história se passa em meados dos anos 1980, em uma missão salesiana no norte do Amazonas, na qual um bispo italiano, Dom Matias Lana, impõe a visão de mundo do colonizador sobre a comunidade indígena ao introduzir a civilização e a modernidade por meio do catolicismo: “Sacramentos, era esse o seu maior fetiche”. A narrativa se concentra na vida das meninas indígenas internas da missão, que são submetidas a uma educação rigorosa e autoritária que busca impor conceitos como pudor, fidelidade e matrimônio. O romance demonstra que os religiosos se sentiam generosos ao executarem a missão civilizatória, impondo língua, religião, costumes, roupas, horários rígidos de rotina (acordar, comer, dormir), ditados pelo sino da igreja.
A narrativa é disruptiva e polifônica, entrelaçando diversas vozes e olhares, o que proporciona uma visão múltipla dos conflitos e das vivências das personagens, enriquecendo a compreensão da trama. No entanto, há uma personagem que se caracteriza como uma jornalista ou pesquisadora que, tempos depois do início da missão salesiana, investiga como o processo se deu e entrevista pessoas, coleta informações. Essa personagem, que guarda traços de semelhança com a autora da obra, conduz uma parte da narrativa em trechos narrados em primeira pessoa. Em outros trechos, tem-se a narração em terceira pessoa em uma perspectiva onisciente, detalhando pensamentos e sentimentos de outras personagens. Além disso, há momentos em que a “Narradora fatal dessa história” (jornalista, pesquisadora) divide espaço com outras personagens, como Maria Assunção, que assume também a contação da história em primeira pessoa, no trecho em que conta o episódio da gata à qual nomeou com o seu próprio nome.
Estruturalmente, a obra possui pouco mais de cem páginas, divididas em partes que apresentam ou retomam acontecimentos distintos a todo momento. O trabalho com a linguagem se destaca a partir de trechos repletos de plasticidade imagética e outros com repetição de palavras e de expressões que geram um efeito poético e de proximidade com a linguagem oral.
Os acontecimentos são contados de forma espiralar, não linear, com flashbacks e saltos temporais que refletem a memória e a experiência dos personagens. As mulheres são as protagonistas da obra e suas vozes e perspectivas são centrais na narrativa. A autora apresenta um conjunto de personagens femininas batizadas com o nome cristão de Maria, das quais quatro são centrais na narrativa: Maria Assunção, Rosa Maria, Maria Rita e Maria Índia: “três índias e uma cabocla”. Das quatro, as duas primeiras se destacam na obra. Nesse processo de colonização, o batismo cristão menospreza o nome dos povos originários e contribui com o assujeitamento desses indivíduos.
Em relação às diversas Marias que surgem, a autora aponta para a tentativa de despersonalização dessas figuras femininas: “em 1985 foram batizados 760 índios de um até seis anos e 372 após esta idade. (…) Das crianças batizadas, 308 receberam o nome de Maria. Observe: Maria Etelvina, Maria Eugênia, Maria Bernadete, Maria da Esperança, Maria…”. Assim, Um rio sem fim acompanha, particularmente, Maria Assunção (cabocla) e Rosa Maria (indígena) da infância até a vida adulta, passando por um povoado no Rio Negro (atravessado pela linha imaginária do Equador) e por Manaus, para onde são encaminhadas crianças para trabalharem na casa de famílias apoiadoras das missões religiosas.
Por meio dessas personagens, a autora explora também a educação e a socialização das crianças indígenas no Brasil, revelando um quadro de opressão e violência. Pereira descreve como as crianças eram punidas e humilhadas pelos missionários por não conseguirem se adaptar às normas impostas por eles. Isso inclui a proibição de falar em sua língua materna e a de usar roupas e sapatos inadequados. A narrativa é um testemunho da forma como as crianças indígenas foram desumanizadas e despojadas de sua identidade cultural, e como elas lutaram para sobreviver em um ambiente hostil e opressor.
A personagem Maria Assunção Augusta não tinha pai nem mãe, sobreviveu pela bondade e “generosidade” das freiras. Era selvagem. Não temia o vento. Ela representa a resistência cultural diante do processo de catequização imposto pelos missionários comandados pelo bispo Dom Matias. Esse processo caracteriza-se pela violência simbólica e física, com a imposição da fé cristã sobre as tradições e crenças indígenas e caboclas da região amazônica. Personagem complexa, marcada por sua identidade híbrida de cabocla, ao longo da narrativa, ela se revolta contra essa opressão, recusando-se a aceitar passivamente a destruição de sua cultura e identidade. Por meio dessa personagem, o romance expõe criticamente o processo de catequização como um mecanismo de dominação, ao mesmo tempo que confere protagonismo a uma figura feminina que resiste à imposição externa e busca afirmar sua autonomia. Foi contando histórias desde criança que Maria Assunção conseguiu preservar-se e seguir sua luta, sendo esse um traço biográfico da escritora que pode ser associado a suas personagens femininas.
Rosa Maria, “índia mijona” e estranha, era neta de Laura Dimas. Em Manaus, ainda criança, na casa de Judite — criança branca da qual ajudava a cuidar —, Rosa Maria era espancada pela mulher negra e gorda: “Defenda-te de mim, Rosa Maria, índia lerda, índia da fala atrapalhada. Mas que, mesmo assim, vejam só… teve a felicidade de nascer com a pele mais branca do que eu! Maria Rosa, índia branca desgraçada!”. Já adulta, Rosa Maria casou-se com Ismael e transformou-se em uma pessoa que o bispo reprovaria, segundo irmã Isabel — ajudante fiel de Dom Matias —, pois entrou em decadência, e era vista pedindo dinheiro e cigarro aos turistas na porta do museu. Teve um colapso psíquico e passou a morar nas ruas. Em um de seus delírios, imaginou que era uma enguia.
Enquanto Maria Assunção é uma personagem que desafia os padrões impostos pelos missionários e representa uma forma de resistência e de afirmação da indígena, cabocla; Rosa Maria é uma representação de nação aniquilada e humilhada, simbolizando a forma como as mulheres e os povos indígenas foram tratados como objetos e explorados pela sociedade colonial.
Entre as personagens, há outra que também se destaca, a indígena idosa Laura Dimas, avó de Rosa Maria, que representa um conflito identitário intenso, resultado do choque entre a cultura indígena e a sociedade não indígena. Ela é descrita como um “simulacro de índia civilizada e pecadora” porque, ao longo da narrativa, sua trajetória revela as contradições entre tradição e modernidade, entre os valores de seu povo e as imposições da sociedade ocidental: “O moço contrariava os que transformavam Laura Dimas num empecilho — apesar de anônimo e disperso — para a nação brasileira”. Ela encarna a complexidade das identidades indígenas em contextos colonizados, expondo a opressão sofrida por seu povo.
Ainda no que se refere à complexidade com que as personagens são construídas, tem-se o casal Antônio Sávio e Mariana Aparecida (ele, índio, e ela, mestiça) que, mesmo não figurando entre os principais na trama, protagoniza cenas variadas que vão de críticas diretas à subalternidade colonizadora (“Eu só odeio tua humilhação”, dizia a esposa para o marido), à resistência por meio do erotismo e da comicidade. Até o bispo Dom Matias Lana é descrito na infância como um jovem gentil e sonhador que queria ser poeta, mas que foi impelido para o sacerdócio. E ainda há o pajé Lauriano Navarro, que encena, logo no início da trama, um episódio impactante em que livros de autoria dos missionários são queimados na fogueira porque, segundo o líder indígena, só traziam mentiras sobre ele e seu povo.
Embora quase no início da obra já se tenha conhecimento do que aconteceu entre Maria Assunção e o bispo, quando esta retorna de Manaus para a aldeia tempos depois, a fim de contar para o religioso o que aconteceu com Maria Rosa, as últimas páginas do livro culminam em um final aberto. Não há um desfecho definido dando conta dos rumos que a vida de cada personagem pode ter seguido. A autora convida o leitor a criar caminhos diversos para que o rio sem fim continue fluindo, escapando da violência e fortalecendo formas de resistência.
Diante de uma obra com tantas qualidades como esta, é inevitável o questionamento quanto ao atraso de 25 anos no reconhecimento da autora e da obra. Uma explicação possível talvez seja o fato de que, apenas mais recentemente, tem aumentado o interesse e a valorização da literatura indígena, negra e afro-indígena no Brasil, a partir de uma perspectiva decolonial, culminando no devido reconhecimento de autores desses grupos, como a escritora Verenilde Pereira, mulher afro-indígena.
Para saber mais
MEDEIROS, Jotabê (2023). As curvas de um rio sem fim. Amazônia latitude: ciência e jornalismo pela floresta, 10 ago. Disponível em: https://www.amazonialatitude.com/2023/08/10/as-curvas-de-um-rio-sem-fim/. Acesso em: 28 fev. 2025.
OLIVEIRA, Priscila Lira de (2025). Fios verdes-sangue: o pensamento da floresta na literatura amazonense. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/94523. Acesso em: 28 fev. 2025.
SIMON, Rodrigo (2022). Quem é Verenilde Pereira, pioneira da literatura afroindígena no Brasil. Folha de S. Paulo, 20 maio 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/amp/ilustrissima/2022/05/quem-e-verenilde-pereira-pioneira-da-literatura-afroindigena-no-brasil.shtml. Acesso em: 28 fev. 2025.
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