RIBEIRO, Bruno. Porco de raça. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2021.
Caroline Barbosa
Ilustração: Théo Crisóstomo
Porco de raça (2021), quarto livro de Bruno Ribeiro (Pouso Alegre, MG, 1989), dá continuidade ao tom visceral que o escritor utiliza em suas obras, permeadas por abordagens críticas da sociedade em que vivemos. Narrado em primeira pessoa por um professor paraibano sem nome, essa trama não linear flerta com o horror e o absurdo para tratar de temas como desigualdade social, racismo, negritude, capitalismo e espetacularização da dor.
A obra é dividida em quatro partes: “Invicto no fracasso”, “Como sangrar um porco”, “Tioglicolato de amônio” e “Descarrego no umbral”. Elas são catalogadas como partes do porco: sobrecoxa, costela, barriga e coxão. Essas divisões podem fazer referência às situações narrativas que expõem o personagem principal a um desmembramento metafórico. As ilustrações de Wagner Willian atravessam a trama e se relacionam com o teor cinematográfico e com o ritmo acelerado do texto, por meio de traços que se assemelham aos respingos violentos das inúmeras peripécias vividas pelo personagem.
A narrativa começa capturando a fuga do professor após uma confusão com um cafetão. O ritmo narrativo emula a velocidade com que as ações são descritas, levando o leitor a seguir os passos do personagem até a casa do irmão, sua tentativa de voltar à cidade natal e seu sequestro por uma seita religiosa, da qual consegue escapar.
No entanto, o personagem principal se vê sem saída quando é sequestrado pela segunda vez, desta vez por uma organização que se apropria dos corpos de pessoas excluídas da sociedade para obrigá-las a lutar em um ringue clandestino localizado em Buenos Aires. Nesse cenário, os homens precisam arriscar suas vidas usando máscaras de animais para o prazer de pessoas.
Pela primeira vez na obra, o personagem é nomeado, mas de forma animalesca e contra sua vontade. Ele se torna o Porco Sucio. A escolha desse apelido não é aleatória na narrativa, pois cria um contraponto com sua vida anterior: um desempregado, um pária social, tratado apenas como “Paraibão”. Contraditória e ironicamente, é quando gritam seu novo apelido no ringue que ele se sente importante e finalmente notado: “Finalmente, tenho um nome. Finalmente, sou relevante. Eles gritam por mim. Por mim. Alguém”.
Ele sempre se viu como o completo oposto do que sua família almejava. Seus pais e seu irmão se associaram ao que a sociedade esperava deles: sujeitos negros que lutaram para se inserir na classe média e, diante disso, tentavam se aproximar o máximo possível dos padrões da branquitude. No entanto, o personagem sempre resistiu a isso, por ser “um jovem negro que sabia e se assumia como negro”. Porém, quando é levado para o ringue, começa a perceber a multidão aplaudindo e clamando seu nome, e acaba cedendo a outro lugar reservado pela sociedade aos afro-brasileiros: o do espetáculo bestial.
Tematizando questões que estão na pauta das discussões sociais na esfera pública contemporânea, a narrativa apresenta a complexidade da subjetividade dos sujeitos negros, sem, no entanto, essencializá-la. Enquanto o personagem principal acredita estar certo durante a maior parte da narrativa, na terceira parte são reveladas suas hipocrisias. Nesse momento, a narrativa explora outras facetas de sua identidade, destacando seu relacionamento com sua ex-mulher, Wênia, de quem se aproveita financeiramente; sua condição de desempregado, que desafia seus limites morais ao aceitar ajuda do irmão corrupto, e, principalmente, sua pouca maleabilidade para compreender que o que ele percebia como condescendência dos pais aos valores da branquitude era, na verdade, a estratégia encontrada por eles para driblar os obstáculos no acesso a boas escolas e à ascensão social.
Como alegoria do presente, a narrativa se destaca por abordar um cenário político caótico em que mundo real e devaneio se confundem. Por meio das vivências do narrador em primeira pessoa, não é possível discernir o que de fato aconteceu com ele e o que é fruto de sua imaginação, fundada em uma série de traumas causados pela desumanização desse sujeito negro. Além disso, a obra convoca o leitor a pensar sobre a capitalização da dor e a dinâmica de reality show que fazem parte da cultura contemporânea.
Bruno Ribeiro elabora uma narrativa distópica que se assemelha a clássicos como 1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, flertando também com certa forma do absurdo presente em A metamorfose, de Franz Kafka. Assim, Porco de raça é um livro que se insere na contemporaneidade de modo singular por apresentar a discussão racial e social brasileira dentro desse gênero textual. À vista disso, é curioso observar que embora se afaste de autores como Jeferson Tenório e Geovani Martins, que abordam a temática da negritude e sua subjetividade de forma mais realista, Ribeiro aproxima-se deles por questionar o absurdo das situações reais, provocando a reflexão sobre a maneira como as situações de racismo e violência contra sujeitos negros são veiculadas de modo espetacularizado em jornais, sites de entretenimento e grupos formados nas redes sociais: “E quem há de dizer que, neste ringue ou fora dele, há diferença? Quem há de dizer que minha vida não era a mesma coisa que estou vivendo aqui?”.
Assim, por meio da ficção especulativa, Ribeiro constrói um romance que se assemelha a filmes como Corra (2017) e Nós (2019), ao utilizar o horror como denúncia social e questionar os limites entre factualidade e ficção. Surge, assim, uma narrativa com abundância de verbos de ação e cenas de violência, que se utiliza desses recursos para modular um personagem extremamente humano, com erros e acertos, atravessado pelos traumas do racismo e da exclusão social.
Para saber mais
CORRA (2017). Direção: Jordan Peele. Los Angeles: Monkeypaw Productions.
HUXLEY, Aldous (2014). Admirável mundo novo. São Paulo: Biblioteca Azul.
KAFKA, Franz (1997). A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras.
MARTINS, Bella Beatriz; RAMOS, Wellington Furtado (2023). Uma máquina para porcos: entre figuras animalescas, horror e violência nas narrativas contemporâneas Amnesia e Porco de Raça. Palimpsesto – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, v. 22, n. 42, p. 92-113. Disponível em: https://doi.org/10.12957/palimpsesto.2023.76076. Acesso em: 20 jan. 2024.
NÓS (2019). Direção: Jordan Peele. Los Angeles: Monkeypaw Productions.
ORWELL, George (2009). 1984. São Paulo: Companhia das Letras.
Iconografia