PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. São Paulo: Alfaguara, 2015.
Maria Eduarda Brum Silva Gomes
Ilustração: Léo Tavares
A adaptação fílmica do romance Ainda estou aqui (2015), dirigida por Walter Salles e protagonizada por Fernanda Torres, içou o cinema brasileiro aos espaços de premiação mais importantes do planeta. O amplo reconhecimento da crítica deve-se à composição magistral do filme, às atuações notáveis dos atores e à direção sensível de Salles. A recepção tão positiva rendeu ao filme o prêmio Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025.
Por consequência, o longa-metragem ampliou o debate em torno do livro que o originou, cujo sucesso editorial atingiu níveis expressivos. Para além do enorme fôlego de vendas e das traduções encomendadas para outros países, o romance levou o debate de seu tema até as mais importantes instituições judiciárias. Tamanha repercussão fez com que o Supremo Tribunal Federal decidisse, em fevereiro de 2025, reanalisar o caso do assassinato do deputado Rubens Paiva (1929-1971), reabrindo o debate sobre a Lei da Anistia (1979). O livro, portanto, não restringiu o debate às questões de literatura, mas o ampliou, em muitas instâncias. Em um movimento importante, a obra ajudou a recompor a memória do Brasil. Assim como o autor, que costura a trama ao longo do livro, os brasileiros foram levados a interpelar a história recente do país. Nesse esforço, percebem-se os pontos em branco, de esquecimento ou negação. Resta, da leitura, sua importância ímpar.
Seu autor, Marcelo Rubens Paiva (São Paulo, SP, 1959), é dramaturgo, colunista e escritor de obras de ficção e não ficção. De sua obra, destaca-se seu primeiro livro, Feliz ano velho (1982), que, logo na estreia, consagrou-o como um autor de sucesso. O livro foi adaptado para o teatro e para o cinema, marcando a juventude dos anos 1980. No campo da ficção, destacam-se também Blecaute (1986), Malu de bicicleta (2003) e Do começo ao fim (2022) como obras de expressiva repercussão.
Ainda estou aqui, publicado em 2015, um ano após a publicação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, utiliza, para compor um relato biográfico, os dados do empenho investigativo que levou ao interrogatório os agentes, as vítimas e as testemunhas da Ditadura (1964-1985). Entre os crimes reconstituídos, estava o assassinato do deputado Rubens Paiva, pai de Marcelo. No livro, as informações do relatório e do arquivo público se somam às memórias do autor. Mescladas, erguem o projeto. É o segundo empenho do escritor, que, em Feliz ano velho, já havia investigado a própria história e a de sua família, mas, aos vinte anos, enfocando o acidente que o deixou tetraplégico.
Nesse trabalho de 2015, o ponto focal do romance é, no entanto, menos o assassinato do pai Rubens, e mais a vida de Eunice, sua mãe. Ao perceber o processo de perda de memória da matriarca, acometida por um avançado estágio da doença de Alzheimer, Marcelo decide pelo registro, que culmina no livro. É notável que o nascimento do filho do autor, no mesmo período, oportunizou o exercício de observação da aquisição de memórias do bebê. Diante desses fatores, surge Ainda estou aqui.
O trabalho se compõe de digressões que intercalam essas observações sobre a memória. Em saltos temporais não lineares, que seguem os percursos da memória, sabem-se os detalhes da vida dos Paiva. O relato mistura elipses, reflexões e dados históricos para contar não só da prisão e do assassinato de Rubens, mas também da vida no seio familiar do autor, durante sua infância na antiga Praia do Pinto, no Leblon, Rio de Janeiro.
O núcleo familiar é retratado em sua rotina como feliz. Até o trauma que marcaria a família, a vida dos Paiva se constituía sobretudo dos momentos em reunião, idas à praia, viagens, jogos de totó. Agentes à paisana levariam o ex-deputado para a prisão em 20 de janeiro de 1971. Acusado de ligações com forças subversivas de guerrilha, Rubens Paiva foi detido sem direitos. Nesse momento, instaura-se o trauma que nunca cessaria de transformar a família. No dia seguinte, Eunice e Eliana Paiva, a filha mais velha do casal, seriam presas e interrogadas. Eunice foi torturada e, ao ser liberada, nunca mais encontraria o marido, morto nos primeiros dias de detenção. Tomado como desaparecido, e com as informações sobre seu paradeiro retidas pelas forças da Ditadura, Rubens Paiva só teve seu atestado de óbito entregue à família em 1996. No livro, esses acontecimentos são reconstituídos.
Mobilizada pelo luto, pela necessidade de subsistência e pela batalha por reconhecimento que daí se iniciou, Maria Eunice graduou-se em Direito e acumulou expressiva atuação como advogada de direitos humanos, com enfoque na causa dos povos originários. Eunice é relatada, ao longo da obra, como uma mulher de forte presença, amálgama, laço de ferro que une a família. Ao mesmo tempo que silenciava aos filhos a condição do marido desaparecido, deixando que cada um, à sua maneira, descobrisse e elaborasse o luto, Eunice resignava-se à postura difícil de seguir em frente, na medida das possibilidades. Envolvida por um luto dilacerante, a matriarca nunca deixou a família sucumbir à tragédia.
O que chama a atenção no relato de Marcelo é a honestidade com que trata da mãe. Retratada em suas contradições, em seus momentos de silêncio, distância e recolhimento, Eunice é uma figura complexa, símbolo da união familiar. Fortalecida pelo retrato, justo à sua polissemia, ela busca por justiça. A luta perdurou mesmo com o acometimento da doença de Alzheimer. A perda das memórias da mãe, que, nesse momento de busca, é uma figura indispensável no registro das memórias da família, é o que motiva a escrita do livro e a força criativa de Marcelo.
Engendrada para sempre pela literatura, Eunice resiste, via linguagem, via exercício literário, aos apagamentos – institucionais, jurídicos, culturais – a que foi submetida até então. Sua perda de memória é restabelecida pelo esforço de Marcelo. O livro, portanto, vira uma pedra fundamental na elaboração da memória e ganha densidade, importância e valor, sobretudo em um país que costuma negligenciar o registro histórico. A memória, se elaborada, nos dá as oportunidades de emplastrar feridas abertas, de permitir enlutamentos, de formular novas questões, de reimaginar horizontes futuros. Por meio da linguagem, abre frestas para a elaboração, para o debate, para a democracia.
Ainda estou aqui é um livro fundamental para a interpretação do Brasil. E é fortalecido por, sendo uma história íntima e particular, ganhar universalidade devido à força de seu relato. Comoveu, via adaptação fílmica, o mundo todo. Como literatura, ganha espaço para os detalhes e miudezas que o suporte filme não comporta. É um convite, aos brasileiros, sobretudo, à elaboração de um passado do país que nunca, nunca cessa de se fazer presente.
Para saber mais
AINDA estou aqui (2024). Direção: Walter Salles. Produção: Maria Carlota Fernandes Bruno; Walter Salles; Rodrigo Teixeira. Distribuição: Sony Pictures Releasing. Brasil. Filme.
ALVES, Cristiane da Silva (2020). A história (não) acabou: Algumas notas sobre Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. In: GOMES, Gínia Maria (Org.). Narrativas brasileiras contemporâneas: memórias da repressão. Porto Alegre: Polifonia. p. 63-84.
CONTE, Daniel; PAZ, Demétrio Alves; SCARTON, Mithiele da Silva (2022). A elaboração do trauma e a luta contra o esquecimento em Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. Fólio: Revista de Letras, v. 14, n. 1, p. 329-346.
FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro; BULHÕES, Ricardo Magalhães; BURGO, Vanessa Hagemeyer (2022). Literatura e memória como farol para o leitor: uma análise de Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. Literatura e autoritarismo, n. 26, p. 85-94.
SILVA, Maricelma da; TELLES, Luís Fernando Prado (2019). Sobre como não ir embora: memória e metanarrativa em Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva. Raído, v. 13, n. 32, p. 130-155.
Iconografia