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Volto semana que vem

PILLA, Maria. Volto semana que vem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Lua Gill da Cruz
Ilustração: Liana Timm

A imagem do guerrilheiro homem, heterossexual, viril, ou a utopia relacionada à representação do que seria um “homem novo” das revoluções socialistas povoou muitas das narrativas sobre as guerrilhas de resistência às ditaduras militares latino-americanas. Quem sabe os exemplos do continente, Che Guevara e Fidel Castro, sejam aqueles mais óbvios. Sabe-se, entretanto, que a resistência não é, nem foi, apenas masculina. Desde o projeto Brasil: nunca mais, de 1985, baseado nos processos que tramitaram na Justiça Militar entre 1964 e 1979, os dados já mostram que as mulheres correspondiam a pelo menos 15% ou 20% do total dos resistentes, ainda que, em grande parte, saiba-se pouco da sua atuação. Mas quem são e/ou foram as mulheres que, desafiando a lógica do momento, também resistiram à ditadura? Um olhar atento a essa história e sujeitos apagados é base do livro de estreia na literatura de Maria Pilla (Porto Alegre, RS, 1946), Volto semana que vem (2015).

Com um distanciamento temporal da sua própria experiência como militante e guerrilheira e das posteriores consequências de seu sequestro, prisão e tortura, Maria Pilla busca uma estrutura narrativa, em parte autobiográfica e testemunhal, que passa pela infância, adolescência, militância posterior e relato de vida. Um dos aspectos relevantes nessa identificação autobiográfica é a decisão editorial da inclusão e presença de fotografias próprias: na capa, ao final do livro (fotografia usada na capa da segunda edição), e nas primeiras páginas. É possível reconhecer Maria Pilla como criança, adolescente e jovem, e acessar a sua história pessoal na parte final do livro “sobre a autora”, em que retoma, de forma breve, organizada e linear, a narrativa do livro, agora em primeira pessoa. A autora, entretanto, afirma não ter um “compromisso absoluto com a realidade”. O livro trata, segundo ela, de “fragmentos, lampejos de vida, de lembranças, de fatos” que foram montados como em “um filme”. Mas não é preciso montar apenas o “quebra-cabeça” das histórias próprias narradas, é também fazê-lo para as histórias das ditaduras do Cone Sul. Isso porque o texto inclui outras histórias coletivas, em grande parte, de mulheres resistentes, guerrilheiras, por exemplo, de figuras conhecidas historicamente como Myriam Muniz, Oriana Fallaci, Rodolfo Walsh ou Carlos Marighella.

A própria forma narrativa também remete a fotografias: o livro se estrutura como um conjunto de 56 excertos-capítulos que, como fotos, têm um enquadramento de tempo e espaço bem definidos. Cada fragmento se inicia, no título, com a data e uma referência ou ao local ou ao personagem em que se deterá; por exemplo, os dois primeiros capítulos se intitulam “1953. O quadro de Stanislau” e, logo em seguida, “1976. Prisão de Villa Devoto, Buenos Aires”. As descrições são exatas, cortantes e pouco adjetivadas. É precisamente sobre o fragmentário, o “parcial”, que se constrói a narrativa de Pilla. A grande maioria dos trechos dizem respeito aos anos de 1970, momento no qual a guerrilheira foi presa, torturada e exilada na França, mas a temporalidade perpassa os anos de 1950 até 2011. Os espaços são diversos: a infância em Porto Alegre, a adolescência nos Estados Unidos, as excursões pelo Movimento Estudantil em São Paulo, a passagem pelo Chile e por Buenos Aires, onde é presa e torturada, bem como o exílio na França.

Alguns pontos são importantes no texto: a militância, a perspectiva de gênero, o exílio e a cobrança por reparação e justiça. No que tange à militância, a personagem envolveu-se com o movimento estudantil ainda na universidade. Naquele espaço de questionamento, “um punhado de jovens militantes contestava frontalmente a autoridade e as posições políticas de um partido tradicional povoado de figuras míticas”. E essa militância também é fundamentalmente atravessada por uma perspectiva de gênero. Em um excerto de 1976, a obra aponta para o fato de que a transgressão não perpassava apenas a militância política, em uma perspectiva comunista revolucionária, mas continha uma recusa dos valores morais e conservadores. Afirma que: “indo pelos anos 60 eu já militava, e os ideais femininos da época passavam longe de minhas preferências”. Os namorados pelos quais se interessava eram militantes, recusavam a ideia do amor romântico e importavam, da Europa, a ideia do “amor livre”. Em 1973, a personagem volta à América Latina e, em 1975, é torturada e presa. É diante da prisão e da experiência extrema da tortura, em que o corpo tem um espaço central, que as circunstâncias e especificidades do gênero são sentidas de forma mais contundente.

Mas o texto não trata apenas da repressão: durante o período no cárcere, a personagem relaciona-se com uma série de mulheres e percebe no contato com elas a construção de uma extrema solidariedade. Tal aspecto fica evidente nos relatos sobre a divisão da comida, a organização de eventos, o trabalho diário, a busca por renda extra, a resistência ao uso de uniformes, a preocupação entre elas e, ainda, a possibilidade de compartilhamento da experiência.  Um exemplo interessante se encontra no trecho “1975. Olmos. Cachita”, no qual a autora opõe a repressão ditatorial à resistência de uma só mulher, com a qual dividiu o cárcere. A história de Cachita é narrada com uma Comissão ao fundo, com “uma mesa comprida” com “militares graduados: uniformes e condecorações, […] hombres de los servicios, de roupa preta e óculos escuros”, na qual a personagem deve dar o seu testemunho sobre o filho, mas “ela, Cachita, não denunciara. Dois segredos guardou com unhas e dentes: a idade e o endereço do filho”.

A experiência do exílio também é tema fundamental. Um dos excertos que localiza a questão está relacionado exatamente com o título do livro. Já em 1970, a personagem decide partir de Porto Alegre em direção a São Paulo para um Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). O AI-5 havia sido promulgado há pouco e os jovens tentavam realizar um congresso clandestino da UNE em Ibiúna. O pai lhe pergunta, naquele momento, “ué, guria, para onde tu vai?”. A resposta, de que voltaria “semana que vem”, é interpelada pela narradora do presente que responde que “mais de dez anos se passaram até eu voltar àquela cozinha”. Depois de São Paulo, não pôde rever o pai, o qual morre enquanto está no exílio. Em 1970, dirige-se ao Chile, onde o governo socialista de Salvador Allende havia conquistado uma vitória importante, para então partir para Paris. A escolha do exílio carrega o sentimento de perda da utopia. Em meio à suspensão, “com o coração aos saltos”, desloca-se em direção ao futuro, ou ao menos à possibilidade de futuro negada, caso permanecesse. A sensação de ameaça que impõe a necessidade do exílio, entretanto, demorou a passar: “Foram mais de vinte anos de exílio e oito de divã”, afirma. O exílio não queria dizer, entretanto, uma suspensão da perspectiva revolucionária, pelo contrário, configurava-se como um lugar de resistência e de continuidade da luta. A personagem ainda participava de coletivos, de discussões, de momentos importantes da história do comunismo internacional.

A partir da experiência de prisão e do tempo no cárcere, a questão da tortura é central no relato autobiográfico, seja no que silencia ou no retorno tímido em menções, mas aparece com mais força no fragmento do ano de 2003. Mais de trinta anos depois da experiência, a lembrança traumática retorna a partir da elaboração onírica. O trecho recupera o momento da prisão e o medo da tortura. Acompanhamos a cena como se estivesse vivendo naquele momento. O corte é abrupto. Enquanto isso, o telefone toca. A personagem pergunta-se se alguém teria avisado do desaparecimento, se poderia ser resgatada. Logo, Pilla reconhece que estava diante de um sonho: “Virei-me debaixo do edredom e lá estavam os olhos arregalados da gatinha – como sempre fazia – […] Era só um pesadelo, repetia, contente da vida. Senti uma fisgada aguda no pé e levantei o edredom, agora muito sujo e com cheiro de urina. Debaixo dele, em vez da gatinha, vi meus pés manchados de sangue e estrangulados pela corda”. O trecho me parece essencial porque explica a recorrência do retorno da experiência traumática, “como sempre acontecia”. Ao notar que era um sonho, alivia-se, mas, ao mesmo tempo, ao levantar o edredom, reconhece e rememora o momento da tortura: os pés manchados de sangue e acorrentados. Todo o ambiente, o “cheiro inesquecível” e a dor retornam agora.

Percebemos, portanto, que as feridas são inscritas corporalmente e o corpo torna-se arquivo do trauma. O retorno do evento traumático também aparece em outro trecho referente ao ano de 2010, no qual Pilla narra a volta ao Centro Clandestino de Detenção Atlético, na Argentina, por parte de sobreviventes ou de familiares de desaparecidos e mortos. O lugar, desolado, era como “uma escavação do tipo arqueológico” de grupos em busca pela verdade. A importância de espaços como esse, décadas depois das ditaduras do Cone Sul, inserem o debate da exigência de reparação. No caso da obra de Maria Pilla, quando se distancia no tempo e no espaço para o presente da escrita, fica evidente a diferença no tratamento na Argentina e no Brasil. No caso do país vizinho, as campanhas pela verdade e a necessidade de levar à justiça aqueles que à prisão pertencem são postas em prática, enquanto, no Brasil, os sobreviventes continuam exigindo respostas.

Para saber mais

CAIMI, Claudia Luiza (2021). Memória, história e ficção em Volto semana que vem, de Maria Pilla. Brasil/Brazil, v. 24, n. 64, p. 99-111.

GILL DA CRUZ, Lua (2017). Os silêncios na literatura pós-ditadura: a resistência das mulheres guerrilheiras. In: SILVA, N. F. C. E.; CRUZ, L. G; TATIM, J.; PEREIRA, M. P. T. (2017). Mulheres e a literatura brasileira. Macapá: UNIFAP, p. 510-545.

SANTOS, Cristiana Napp dos; FONSECA, Cláudia Lorena Vouto da (2022). Volto semana que vem: memórias da resistência feminina no cárcere. Letras de Hoje, v. 57, n.1, p. 1-12.

SILVA, Janaína Buchweitz (2021). Memória feminina e ditadura militar brasileira: um estudo sobre Volto semana que vem. Scripta Uniandrade, v. 19, n. 3, p. 162-174.

VARGAS WELTER, Juliane (2022). Traumas, memórias e dramas familiares: aspectos da literatura contemporânea escrita por mulheres. SOCIOPOÉTICA, v. 1, n. 24, p. 17–26.

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Volto semana que vem.

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

17 abr. 2025.

Disponível em:

4920.

Acessado em:

19 maio. 2025.