LOUZEIRO, José. Infância dos mortos. Rio de Janeiro: Record, 1977.
Rafael Bonavina
Ilustração: Théo Crisóstomo
Publicado pela primeira vez em 1977, Infância dos mortos é o sétimo livro de José Louzeiro (São Luís, MA, 1932 – Rio de Janeiro, RJ, 2017). É importante ressaltar-se que a publicação do romance ocorreu três anos depois da Operação Camanducaia, um caso real que serviu de mote para a escrita do livro. Essa operação foi uma tragédia ocorrida durante a Ditadura Militar (1964-1985), em que 93 crianças e adolescentes em situação de rua foram retirados de São Paulo, despidos, espancados com cassetetes e atacados por cães policiais. Depois dessa sessão de agressões, os garotos foram jogados de um barranco próximo à cidade de Camanducaia, em Minas Gerais, cerca de 130 km distante da capital paulista. Apesar das denúncias na imprensa e das sindicâncias abertas, não houve repercussão legal do caso, que logo foi arquivado e os responsáveis inocentados. José Louzeiro, então jornalista, escreveu uma matéria sobre o assunto, mas sua publicação foi censurada, o que o influenciou, em grande medida, a escrever Infância dos mortos, romance no qual o protagonista é parte dessa quase centena de vítimas.
O romance trata da vida de um grupo de crianças e jovens marginalizados que buscam meios de subsistir em uma sociedade que lhes nega a participação em diversas frentes, representada na obra pelos policiais, que os agridem e perseguem constantemente, e pelos civis, que os maltratam e menosprezam. Incapazes de encontrar uma inserção social, trabalho fixo, residência, esses garotos acabam sendo obrigados a tomar parte de atividades ilícitas, a princípio de pequena importância, mas, ao longo da narrativa, esses crimes vão se tornando cada vez maiores. Em meio a esse processo, os jovens logo se deparam com o crime organizado e se veem diante de um poder paralelo que também acaba por explorá-los e, em última análise, lhes negar um lugar em sua estrutura.
No plano da trama, o leitor acompanha a trajetória de Dito, um jovem que desempenha um papel de liderança em seu grupo de amigos. A princípio, Dito insistia com os demais que era melhor trabalhar honestamente nas feiras para ganhar seu sustento do que recorrer aos pequenos crimes, pois esses eventualmente acabariam resultando em problemas com a polícia. No entanto, os ganhos são muito pequenos e mal permitem a subsistência, o que o leva a buscar outras formas de ganhar dinheiro, algumas bem-sucedidas, outras nem tanto.
Em meio a essa luta pela sobrevivência, Dito é preso depois de assassinar uma pessoa que o havia entregado à polícia. Na cadeia, os policiais não acreditam em sua história de vingança e o torturam física e psicologicamente para tentar forçá-lo a confessar que o homicídio se deu a mando de alguém mais importante. Esse episódio deixa profundas marcas psicológicas em Dito e algumas físicas, como uma cicatriz em seu supercílio. Esse resquício da tortura se torna um elemento muito importante na narrativa, visto que, em diversos momentos de grande irritação, essa marca começa a arder e a coçar, indicando uma manifestação física, corpórea, do sentimento de indignação experimentado pelo personagem diante das várias injustiças que é obrigado a suportar por sua condição de marginalizado. Somado ao destino trágico de alguns colegas, esse momento da narrativa pode ser compreendido como uma espécie de divisor de águas, que separa a vida de Dito em duas: de um lado, a criança de rua que buscava meios de sobreviver; de outro, um jovem revoltado com os abusos que sofre e sofreu sem motivos. A partir desse momento, o protagonista desenvolve uma ideia fixa de se vingar de todos os que o haviam prejudicado.
De um ponto de vista estético, o romance incorpora diversos traços modernos da prosa, como o minimalismo descritivo e o tom dinâmico, dando à narrativa uma movimentação que, somada à estruturação em cenas dos capítulos, aproxima Infância dos mortos de um roteiro cinematográfico. Essa, talvez, seja uma das características que chamou a atenção de Hector Babenco para esse livro, no qual baseou seu projeto para um longa-metragem chamado Pixote, a lei do mais fraco, que estreou em 1980. O filme foi bem recebido pela crítica e conquistou prêmios em diversos países, chegando a ser indicado para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro de 1982.
Por um lado, a grande repercussão da obra de Babenco trouxe muitos leitores para o livro, o que é muito positivo, mas isso não quer dizer que esse fenômeno não tenha influência significativa na própria recepção do romance. A transformação das capas ilustra muito bem esse fenômeno, pois, a princípio, os livros traziam o título original: Infância dos mortos, mas as edições mais recentes começam a explorar o sucesso do filme, acrescentando “Pixote” às ilustrações, como se nota pela edição da Editora Abril, de 1984. Com o tempo, essa inserção passa a tomar cada vez mais espaço na capa até eclipsar o título original, como ocorre a partir das versões dos anos 1990.
Dessa maneira, o grande sucesso cinematográfico inaugura uma segunda fase na recepção do romance, agora baseada na sua relação com o filme. Em parte, isso se dá pela participação de José Louzeiro na produção do longa-metragem, particularmente na escrita do roteiro, o que cria uma tensão entre sua nova linguagem, a cinematográfica, e os fundamentos artísticos de Infância dos mortos, além de uma intersecção entre a estilística de Louzeiro e a arte de Babenco. A riqueza desses diálogos estéticos explica, ao menos em parte, a grande atenção dada pela crítica especializada às leituras comparativas, que já atingiram o nível de pesquisas de pós-graduação.
Para saber mais
CASTELO BRANCO, Bruna Maria Paixão (2020). O protagonismo do anti-herói na obra de José Louzeiro: análise do processo de criação do roteiro do filme Pixote – a lei do mais fraco. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade/CCH) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís. Disponível em: https://tedebc.ufma.br/jspui/handle/tede/3107. Acesso em: 9 nov. 2023.
OPERAÇÃO Camanducaia (2020). Direção de Tiago Rezende de Toledo. Produção: Dudu Ferreira e Leon Cunha. Santo Estevão/BA: Cambuí Produções, (75 min.).
PIXOTE, a lei do mais fraco (1980). Direção de Hector Babenco. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1 DVD (127 min.).
PINTO, Anderson Roberto Corrêa; FERREIRA JUNIOR, José (2017). O romance-reportagem de José Louzeiro no cenário de resistência à ditadura militar. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, v. 39, n. 1, p. 69-93, abril. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-0295-1.pdf. Acesso em: 8 nov. 2023.
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