SCHÜLER, Donaldo. Império caboclo. Florianópolis: Editora da UFSC; Porto Alegre: Movimento, 1994.
Claudia Miranda da Silva Moura Franco
Ilustração: Dona Dora
Os romances que se debruçam sobre o tecido historiográfico fazem do tempo uma fonte, alimentam-se do real e transformam-se em criação ficcional. As relações entre a Literatura e a História são percebidas na obra Império caboclo (1994), de Donaldo Schüler (Videira, SC, 1932). Doutor em Letras, livre-docente na UFRGS e ensaísta, Schüler também traduziu importantes obras literárias como Finnegans Wake, de James Joyce, e, do grego, as tragédias Antígona e Édipo em Colono, de Sófocles, e Os sete contra Tebas, de Ésquilo.
A narrativa Império caboclo foi publicada pela primeira vez em 1994 pela editora Movimento, e em 2005 pela mesma editora. O romance tem como foco a Guerra do Contestado, uma batalha política entre os estados do Paraná e Santa Catarina, que disputavam um território rico, no qual seria construída uma ferrovia. Arlene Renk (2000) corrobora a compreensão dos interesses pela contestação da posse dessa terra, destacando que havia mais interesses em jogo. Tratava-se de uma “zona disputada pelos dois estados, na qual estavam em contenda questões como a dupla titulação das terras, a dupla cobrança de impostos sobre erva-mate e madeira, a distribuição de cargos e o aspecto religioso”.
O embasamento histórico é a primeira camada textual da obra, entretanto, logo no prólogo, o romancista contextualiza a intenção de reminiscência: “É meu passado, querida. Eu nasci lá. Preciso saber o que se passou. Sinto-me como se me tivessem amputado uma perna. Falta-me uma coisa essencial”. Alfredo é o narrador e está em viagem para comemorar os dez anos de casamento com Evangelina. Ele informa à esposa, e ao leitor, que precisa de apenas um dia para se dedicar à busca pela história do Contestado: “Convoco o leitor para me ajudar a resolver o mistério. Se não tivermos êxito, adquiriremos, ao menos, nova visão de um conflito que roubou a vida de milhares de camponeses – e isso já é muito”.
Em busca da memória de um tempo, Alfredo parte em direção ao seu propósito, e, para tanto, entra em contato com um especialista no assunto, Iaponan, que concede material para pesquisa. Ele recebe ainda a visita de um “moço” misterioso, que lhe entrega um pacote com documentos inéditos sobre o Contestado. O desconhecido informa que os documentos “foram encontrados numa casa que tinha pertencido ao coronel Henrique Rupp Junior”.
Nesse momento, o autor oferece pistas sobre o tempo em que a narrativa está inserida. O diálogo gera um ambiente de preocupação e pressa, que culmina na chegada da polícia ao quarto do casal. Alguns instantes depois de receber o material, o narrador é perseguido pela polícia por possíveis relações com Raul Teixeira, o jovem misterioso que entregou os documentos. Tanto Teixeira quanto o coronel são representações de personagens históricos.
A organização narrativa abre-se a uma possibilidade de encadeamento que foge da lógica temporal. No aprofundar do discurso, percebe-se um presente e um passado interligados, mas também um presente inserido no passado. O discurso está contextualizado historicamente no período da ditadura militar, o que justifica a perseguição política, o medo e a presença da polícia. O texto reforça essa proximidade, por exemplo, no episódio de tortura executado pela polícia: “O delegado mandou esquentar um ferro de marcar boi e colocou a caboclada em fila […]. O delegado separou uns vinte que, depois de marcados, foram entregues à justiça na forma da lei”.
As ordens de duração e tempo nos fatos relatados aproximam-se do conceito proposto por Gérard Genette (1979), que integra o estudo do tempo na narrativa não apenas como um elemento organizacional lógico (diegese), mas como um fator que altera a sequência do dito e do não dito, e suas múltiplas implicações. Assim, a estratégia narrativa de Schüler torna-se múltipla, recorrendo aos fenômenos elencados por Genette, como ordem, ritmo e duração. A analepse incorre em uma narrativa secundária, subordinada à principal, com o Contestado em diálogo com a perseguição da Ditadura. Passado e presente bifurcam-se, como ilustrado pela reflexão do narrador: “Começo a escrever com uma ideia, me perco no meio do caminho e acabo com outra. Isso não cabe em princípio, meio e fim. Sinto-me perdido entre um e outro fim”.
O enredo polifônico permite que a personagem de Alfredo se enrede tanto na narrativa do passado quanto no presente em que está inserido, oferecendo diferentes pontos de vista. A metáfora utilizada para definir o Império e a organização dos caboclos sertanejos é elucidativa: “O Império é como a floresta: tem caminhos, tem clareiras, tem núcleos […]. Quem determina para onde ir é você. O caminho você inventa. Esquece mapa, mão única e preferenciais”. Esse trecho permite identificar a escolha, não por acaso, da epígrafe de Cruz e Souza: “Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de uma Flor selvagem e rara, destas prodigiosas florestas de ampla e verdejante América”.
Por meio da metaficção e da historiografia, Schüler recorre ao passado como fio condutor entre literatura e sociedade. A memória, enquanto recurso estilístico, revisita o passado e tece sobre ele uma visão crítica, histórica e social. Linda Hutcheon (1991) situa a metaficção historiográfica na formação dos romances literários como um gênero discursivo analisado no campo da história, posicionando-se criticamente em uma zona de fronteira entre história e literatura. Como um paradigma subversivo, a metaficção realiza críticas autoconscientes sobre as criações humanas. Esta inferência torna-se contundente ao considerar que “o romance, para ser histórico, não pode falsear os fatos”, porém, defendendo a ficcionalidade, acrescenta: “Concedo que a imaginação dá vida aos fatos”.
Desse modo, o romance de metaficção historiográfica (definido por Linda Hutcheon, 1991) apresenta um elevado nível de incorporação e autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas. Juntas, essas dimensões reelaboram as formas e conteúdos do passado de maneira crítica e sem teor saudosista. Como uma característica marcante das narrativas contemporâneas, os romances combinam história e ficção, e o discurso historiográfico expõe as fragilidades epistemológicas da historiografia tradicional, revisitando o passado com criticidade e reflexão.
Assim, os conteúdos latentes presentes no conhecimento histórico compõem os arquivos de memória, que, como um mecanismo vivo, possuem a qualidade essencial da noção de temporalidade. Para Paul Ricœur (2012), as narrativas ficcionais podem servir como veículos para a projeção do mundo real e tornar “acessível a experiência humana do tempo”. A reflexão de Ricœur sobre a narrativa histórica aborda o tempo vivido (experiência) e a construção narrativa (consciência). Segundo ele, “é na própria passagem, no trânsito, que é preciso buscar ao mesmo tempo a multiplicidade do presente e seu dilaceramento”. O dilaceramento proposto pelo filósofo pode ser evidenciado pelo “estilo aporético”, onde a dúvida atua como uma ferramenta de reflexão inconclusiva na atividade narrativa. Para identificar a relação entre narrativa e temporalidade, Ricœur recorre à comparação estabelecida pela organização inteligível da narrativa.
Em Império caboclo, Donaldo Schüler faz uso de documentos jornalísticos, tais como “entrevistas, cartas, relatórios e diários reunidos por alguém das relações de Henrique Rupp Júnior”. Nesse caso, os arquivos historiográficos são desconstruídos pela literatura, humanizando os caboclos, que por muito tempo foram designados como bandidos e agentes da barbárie. O romance Império caboclo problematiza fatos históricos e provoca uma releitura crítica de um importante momento da história brasileira.
Ao convidar o leitor a participar ativamente da construção do significado do texto, com a frase “Convoco o leitor para me ajudar a resolver o mistério”, Schüler promove uma experiência de leitura dinâmica, semelhante a um quebra-cabeças. Através dos fragmentos narrativos sobre o conflito do Contestado, o leitor se envolve na construção do significado da obra. O próprio autor ilustra essa dinâmica com a reflexão: “Você já notou que no seu quebra-cabeça há peças que não se ajustam? Você não violenta os fatos? – E os fatos o que são? – Ora, os fatos são os fatos”.
Para saber mais
CASAROTTO, Abele Marcos (2003). O Contestado e os estilhaços da bala: literatura, história e cinema. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
GENETTE, Gérard (1979). Discurso da narrativa: ensaio de método. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia.
HUTCHEON, Linda (1991). Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Rio de. Janeiro: Imago.
MIRANDA, Heloisa Pereira Hübbe de (1997). Travessias pelo Sertão Contestado: entre ficção e história. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
MOREIRA, Caio Ricardo Bona (2014). Império Caboclo: a literatura e o Contestado. Baú de Fragmentos. Disponível em: http://baudefragmentos.blogspot.com/2014/05/imperio-caboclo-literatura-e-o.html. Acesso em: 23 jun. 2024.
PRIORI, Claudia; SPOLIAK, Fábio da Silva (2019). Entre narrativas literárias e historiográficas, as mulheres no movimento do contestado: “virgens” ou protagonistas? Trama Interdisciplinar, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 107-126.
RENK, Arlene (2000). Dicionário nada convencional: sobre a exclusão no Oeste Catarinense. Chapecó: Argos Editora Universitária Unochapecó.
RICŒUR, Paul (2012). Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes.
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