AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. Rio de Janeiro: Record, 1984.
Rita Olivieri-Godet
Ilustração: Márcio Vaccari
A obra de Jorge Amado (Itabuna, BA, 1912 – Salvador, BA, 2001) reavalia as raízes históricas da nação, denunciando o uso manipulador que as elites hegemônicas fazem da superposição entre território geográfico e espaço de identidade construído segundo a ideologia nacionalista e os valores que sustentam seus interesses de classe. Nela estão registradas as marcas do autoritarismo, especialmente nos períodos da Era Vargas (1930-1945) e da Ditadura Militar (1964-1985), períodos de crise nos quais se observa facilmente a recrudescência da ideologia nacionalista. As facetas rural e urbana da ficção amadiana, a primeira voltada para uma cartografia cultural do sul da Bahia, retraçando as complexas relações entre a história humana e as transformações ambientais, a segunda sondando as consequências desastrosas de uma modernidade urbana excludente, desmistificam as bases da ideologia nacionalista que projeta a imagem de uma nação pacificada e integrada.
Último romance da saga do cacau iniciada com Cacau (1933) – à qual se seguiram Terras do sem fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) –, Tocaia Grande (1984) encena a violência sistêmica que perpassa a formação da nação brasileira, destacando o processo de migração e os conflitos agrários relacionados com a transformação do espaço rural em espaço urbano. A saga romanesca toma como referência espacial o sul da Bahia e a sua realidade sociocultural vivenciada por um autor que reivindica um vínculo indissociável entre o homem, a obra e o contexto histórico no qual estão inseridos.
Tocaia Grande explora a temática da luta pela posse da terra e dos deslocamentos migratórios no Brasil, situando o enredo no início do século XX. Num primeiro nível de leitura, a narrativa designa, antes de tudo, “a grande emboscada” para liquidar politicamente o rival do coronel Andrade, importante proprietário da região das grandes plantações de cacau. A emboscada é montada por Natário da Fonseca, ex-jagunço que se torna o homem de confiança do coronel Andrade. Assim, sob o signo da violência, nasce “o lugar” Tocaia Grande, que pouco a pouco se transforma em “ponto de pernoite” de mercadores ambulantes que circulam nas fazendas e começa a atrair a atenção de toda espécie de proscritos sociais, prostitutas, bandidos, ciganos, retirantes nordestinos, descendentes de escravos. Essa comunidade de marginalizados consegue se organizar segundo suas próprias leis. Tocaia Grande prospera e se torna um lugarejo, depois um povoado cada vez mais importante. Despertará assim a avareza das elites da região do sul da Bahia, estabelecidas nos centros urbanos, que não hesitam em massacrá-la, em nome da lei, para dominá-la. Renasce então sob o nome de Irisópolis, mas Jorge Amado nos conta as origens humildes, populares e fraternas, a história dos vencidos, a face obscura, escondida, de Irisópolis.
O narrador-cronista constrói sua narrativa com o objetivo de afirmar e reavaliar de maneira positiva a origem marginal e popular de uma coletividade que o poder hegemônico quer relegar ao esquecimento. Por conseguinte, seu discurso procurará revelar a face frequentemente escondida e esquecida da história, inaugurando uma “palavra transgressiva” que pretende se contrapor ao projeto que legitima a “palavra exclusiva” da versão oficial. Assumindo-se como uma crônica das origens, a narrativa de Tocaia Grande se contrapõe ao mito fundador que dissimula a opressão e a discriminação. O tema da violência parindo a história está no centro do romance e a dimensão simbólica do termo faz alusão à grande emboscada que a história arma contra a utopia: a morte de Tocaia Grande para que Irisópolis possa surgir sem, no entanto, nascer para a vida.
Tocaia Grande, descrita como um lugar excepcional pela sua beleza será também pela violência que marca sua entrada no tempo histórico. O romancista dedica-se a contar o nascimento dessa comunidade e sua evolução, sublinhando o abismo existente entre uma forma de organização social local, baseada nas experiências e trocas do quotidiano, e uma ordem nacional exclusiva, assentada nos paradigmas do progresso e da modernidade. Assim procedendo, favorece uma reflexão sobre “a condição temporal da relação das culturas”, expressão empregada por Édouard Glissant. Ao abrigo da dominação do poder central, uma população de excluídos e de migrantes termina conseguindo fundar um território e criar formas de sociabilidade novas. A comunidade transforma as terras virgens em terras cultivadas, vive segundo suas crenças e seus valores culturais e se autogoverna. Tocaia Grande acolhe todos os que desejam reconstruir sua vida e faz surgir uma nova e imprevisível organização social. Paralelamente à transformação do lugarejo, homens e mulheres se convertem a uma nova vida, suas relações tornam-se cada vez mais solidárias e respeitosas das diferenças. Os personagens como o filho de escravos forros Castor Abduim, apelidado Tição, juntamente com o jagunço sergipano Natário da Fonseca, com o “turco” imigrante Fadul Abdala e com Coroca, prostituta e aparadeira de meninos, constituem os principais atores da fundação da comunidade. Culturalmente diversos, eles têm um objetivo em comum, o de construir uma coletividade solidária e livre. Na obra de Amado, a ideia de mestiçagem como processo mediador de um novo espaço culturalmente heterogêneo, solidário e inclusivo não mitiga os conflitos e as mudanças que decorrem dessa interação permanente, nem omite a memória traumática, apontando para a propensão de imprevisibilidade das relações.
A última parte do romance desenvolve a crônica da preparação do evento final da comunidade de Tocaia Grande a partir da confrontação de discursos que testemunham as diferentes visões sobre este lugar. A ótica do romance destaca a continuidade do processo de colonização no interior da sociedade brasileira, a cumplicidade dos representantes religiosos com o projeto legitimante do Estado brasileiro. A palavra precede as armas no processo de legitimação dos massacres cometidos pelo poder institucional. Palavra ideológica, exclusiva, imperialista que só visa à assimilação do Outro e que não hesita em recorrer à destruição física quando o Outro não se deixa assimilar. Tocaia Grande denuncia a ironia sinistra, o cinismo de um Estado que assassina em nome do restabelecimento da ordem, da paz ou de um verdadeiro deus.
A narrativa romanesca de Tocaia Grande coloca-se a serviço do que não deve ser esquecido, revela a face obscura da história e se transforma, desse modo, em lugar de resistência e em suporte da memória coletiva. Romance que condensa, magistralmente, o olhar arguto do escritor sobre a realidade e a faceta utópica alimentada pelo pensamento heterotópico, cujo imaginário produz espaços outros, espaços libertários. Em entrevista a Giovanni Ricciardi, em março de 1989, Amado proclama o caráter insurgente de sua obra: “Tocaia Grande é um livro onde se define bastante o meu pensamento: afirmo ali que eu digo ‘não’, quando os outros dizem ‘sim’. Acho que é esse o meu único compromisso”.
Para saber mais
CHAUI, Marilena (2000). Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
OLIVIERI-GODET, Rita (2014). Identidade, território e utopia em Tocaia Grande. In: Jorge Amado em letras e cores. Desenhos de Juraci Dórea. Feira de Santana: Editora da UEFS. p. 107-124.
OLIVIERI-GODET, Rita (2009). Castor (Tição) Abduim. In: SOUZA, Lícia Soares (Org.). Dicionário de personagens afro-brasileiros. Salvador: FAPESB; Quarteto, p. 76-82.
PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro (2004). Os lugares da utopia: uma leitura de Tocaia Grande. In: OLIVIERI-GODET, Rita; PENJON, Jacqueline (Orgs.). Jorge Amado: leituras e diálogos em torno de uma obra. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado. p. 145-164.
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