OLIVEIRA NETO, Godofredo de. O bruxo do Contestado. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1996.
Mykaelle de Sousa Ferreira
Ilustração: Dona Dora
Godofredo de Oliveira Neto (Blumenau, SC, 1951) é escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e professor universitário, atuando no Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1980. É pesquisador na área de Literatura Brasileira, com formação em Letras e Altos Estudos Internacionais pela Université de Paris III – Sorbonne-Nouvelle (1976).
O bruxo do Contestado, publicado em 1996, é o livro de estreia do escritor como ficcionista. O romance é fruto de pesquisas pessoais do autor acerca da Guerra do Contestado, o violento conflito armado que ocorreu na região Sul do Brasil entre 1912 e 1916, nas fronteiras entre os Estados do Paraná e de Santa Catarina, mesclando disputas políticas e territoriais, com a liderança do monge José Maria. A região “viveu as tensões da guerra, mas, sobretudo, jamais esqueceu a imagem do messianismo tocado à base de paixão violenta e sangue abundante que marcou toda aquela área do Brasil”, diz o narrador. O livro de Neto, portanto, ilumina um capítulo da história brasileira ainda pouco discutido do ponto de vista sociocultural e político.
A “Nota aos leitores” no início do livro informa: “esta história estava escrita em um caderno encontrado num palacete em demolição no centro da cidade de São Paulo, no início dos anos 1980”. O manuscrito pertence à personagem Tecla, membro da decadente família Jonhasky, que decide escrever suas memórias em um diário após ser diagnosticada com uma doença terminal aos 51 anos. Tecla é uma narradora-personagem que passa a integrar uma organização política de esquerda no final da década de 1960, sofrendo, em seguida, um degradante exílio durante a Ditadura Militar (1964-1985). Desloca-se então pelo mundo e tenta encontrar um pouco do Brasil em cada lugar por que passa. A experiência do exílio marca permanentemente a personagem, que carregará a sensação de não pertencer ao seu lugar de origem ao mesmo tempo que se aproximará de sujeitos marginalizados em outros países. A personagem fala sobre si mesma como uma “ex-militante política exilada, que sonha com um mundo melhor, que parece sempre existir em algum lugar”. O diário de Tecla funciona, portanto, como um último ato de resistência da personagem, um testemunho sobre a sua experiência de vida e sobre a história da sua família.
No entanto, serão os Rünnel – Juta, Rosa e Gerd – os verdadeiros protagonistas da história. Esses personagens habitam as principais lembranças de Tecla desde a juventude, quando conviveram na localidade conhecida como Alto Diamante, perto da região do Contestado, no oeste de Santa Catarina e do Paraná. Não é por acaso que o título do manuscrito de Tecla – o mesmo título atribuído ao romance – tem uma ligação direta com os Rünnel, pois o bruxo do Contestado era justamente o apelido atribuído a Gerd, personagem complexo que tem visões messiânicas.
Gerd Rünnel é caracterizado como um homem simples, porém violento, marcado por traumas do passado. As cenas em torno da família Rünnel têm forte carga dramática e requintes de crueldade cometidos por Gerd contra a esposa Juta e a filha Rosa, despertando repúdio no leitor: “Como agora, atravessava o rio Diamante e subia o morro íngreme gritando palavrões em alemão ou em português com sotaque que exageradamente carregado e exorando o novo Contestado”.
É preciso lembrar, porém, que o que está em jogo é o aprofundamento nas ações causadas pela obsessão do messianismo do personagem, pois o “único projeto de vida de Gerd era passado e desmoronava”. A ida do primo mais velho para o exército de São Sebastião, na região do Contestado, acendeu uma fagulha em Gerd, em sua infância, que jamais se apagou: “A mudança para os campos do Irani, quando adolescente, foi possivelmente o seu único projeto de vida. Confiava, agora, que o reino da felicidade, da fartura e da justiça viesse até ele”.
Se o tema do messianismo se faz presente no personagem Gerd, defensor na crença de um novo reino de paz no Contestado, por outro lado, temas como fascismo e autoritarismo também fazem parte da narrativa, envolvendo as personagens e revelando as consequências do nazifascismo no Sul do país, que se alastrava nas primeiras décadas do século XX. Além disso, outros temas entremeados pelo autor à narrativa são exílio, ditadura, Segunda Guerra Mundial, vista a partir do ponto de vista brasileiro, e a colonização.
A narrativa pode ser dividida em três temporalidades, relacionadas entre si. Esses diferentes tempos nos quais o enredo se desenvolve estão entrelaçados por certo utopismo no posicionamento adotado pelas personagens. Não é por acaso que a narradora-personagem Tecla diz: “sempre sonhei com um Contestado nos meus moldes”. A primeira demarcação do tempo ocorre durante o período da Guerra do Contestado, no início do século XX; a segunda, durante a Era Vargas (1930-1945), e, por fim, o período final da ditadura militar, no início da década de 1980. Ressalta-se, no entanto, que não há uma divisão cronológica precisa da narrativa ao longo do texto, uma vez que a história é contada ora pela perspectiva de Tecla, ora de um narrador-observador que toma a voz narrativa para si e apresenta as cenas e os diálogos entre as personagens.
É o discurso do narrador, aliás, que revela a crueza das situações e é isento de julgamentos morais. Ele não tenta burlar ou enganar o leitor, apenas apresenta os relatos, de modo distanciado, contrapondo-se à narração pessoal de Tecla que, por sua vez, restringe-se a divagações filosóficas sobre a própria vida e sobre o exercício da escrita diante da morte. Daí também surge uma reflexão metanarrativa sobre o ofício da escrita: “O recurso ao meu referencial (ensaios, autores, artistas, conceitos, noções), comum no meu universo acadêmico, é um peso que trago comigo e de que quero me livrar e não consigo. Matar a referência erudita – pesada, fascista, patrulhadora – me libertará?”
Como se pode perceber, ler essa obra significa entrar em contato com diferentes recursos formais e estilísticos. O resultado é um romance sofisticado que envolve gradualmente os personagens nos meandros da história brasileira. Sem ser panfletário, Neto propõe uma narrativa que elucida diferentes processos da constituição social do país, dando voz aos personagens que viveram à margem desses contextos – trabalhadores, imigrantes, indígenas, negros, pobres, mulheres, entre outros. É nesse sentido que o livro nos permite elaborar novos olhares sobre o mundo, contribuindo para certa diversidade de representações no universo literário brasileiro.
Por outro lado, o autor constrói uma reflexão sobre o papel da literatura no mundo contemporâneo. Ao discutir as fronteiras entre ficção e realidade, é mister ver que a literatura não pretende ser entendida como um mero espelho que reflete a realidade social, mas, sim, uma oportunidade de observar outros espaços, outras experiências humanas. Por isso, quase três décadas após o seu lançamento, O bruxo do Contestado permanece uma obra fundamental para leitores de diferentes gerações que buscam uma experiência de leitura crítica, trazendo imagens penetrantes e com profunda reflexão histórica.
Para saber mais
CHIARELLI, Stefania (2016). Que Brasil existe? Estrangeiros na literatura brasileira. Intelligere, Revista de História Intelectual, São Paulo, v. 2, n 2 [3], p. 40-48. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaintelligere/article/view/117632/118475. Acesso em: 10 jan. 2024.
DIAS, Ângela M. (2019). Ficções e travessias: uma coletânea sobre a obra de Godofredo de Oliveira Neto (Org.). Ângela Maria Dias. Rio de Janeiro: 7 Letras.
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