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Noite dentro da noite – uma autobiografia

TERRON, Joca Reiners. Noite dentro da noite – uma autobiografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Lilian Reichert Coelho
Ilustração: Léo Tavares

Joca Reiners Terron (Cuiabá, MT, 1968) é um romancista, contista, poeta, tradutor, editor, dramaturgo e designer gráfico cuiabano radicado em São Paulo. Foi indicado e venceu prêmios relevantes e teve textos em antologias publicadas no Brasil e no exterior. Noite dentro da noite – uma autobiografia (2017), seu sexto romance, tem 463 páginas divididas em 13 capítulos iniciados por uma fotografia em preto-e-branco sem legenda, marcada por intervenções de tinta pinceladas nas bordas ou sobre as pessoas retratadas. As fotos e o subtítulo sugerem os problemas da identidade e da memória que atravessam a narrativa.

Histórias engatadas umas às outras, com traços de literatura policial numa dinâmica de corrida contra o tempo, com personagens e acontecimentos que parecem inverossímeis, funcionam na distorção de fatos da história oficial, ao relacioná-los à “saga pantanosa” de uma família mato-grossense (os Reiners). A isso, somam-se a atmosfera de pesadelo, alcançada pela construção de um personagem central amnésico dopado por barbitúricos, a presença de figuras monstruosas – humanas e inumanas – e a permanente sensação de irrealidade e desconfiança sobre a veracidade do que é narrado.

Idas e vindas temporais, incessantes deslocamentos espaciais (envolvendo fugas, perseguições), narradores diversos, não confiáveis em sua onisciência, são os elementos que supostamente reconstroem a memória perdida de um rapaz sem nome que foge da polícia em 1989 para a fazenda da família, Sumidouro, após ter sido obrigado a participar de um atentado ao “candidato metalúrgico” à presidência, no centro do Rio de Janeiro. 

A história desse rapaz se revela durante a trama: aos onze anos, ao bater a cabeça numa brincadeira de escola no ano em que nevou em Medianeira (1975), no interior do Paraná, emudeceu e passou a ser tratado com sedativos que lhe turvavam a mente. Aparentemente, toda a narrativa serve para lhe revelar a verdade sobre sua identidade: é o filho de um embaixador alemão sequestrado por guerrilheiros, em 1968, deixado aos cuidados da irmã de Karl Reiners e seu marido, funcionário do Banco do Brasil. O garoto acidentalmente mata o filho biológico do casal e é transformado em seu substituto pela mãe, chamada de “a rata”. A descoberta é também a do fundamento da família e da história: a mentira. Que é também o da ficção. Mas também diz respeito à seletividade da herança, ao que deve ser transmitido e ao que deve ser escondido. “Herdava algo que não pediu, o que significava dizer que enfim pertencia a uma família”.

A narrativa transcorre por mais de um século em movimentos não lineares no tempo e no espaço, abarcando a Guerra do Paraguai (1864-1870) e a tentativa de criação de uma colônia ariana no Chaco Boreal, em território tradicional indígena, passando pelas ditaduras brasileiras do século XX e a guerrilha do Araguaia, chegando até os últimos dias de 1989. Há experiências com crianças judias em campos de concentração nazistas e um bioquímico alemão perdido num submarino salvo por seres da mata no pantanal mato-grossense, onde vivem comunidades indígenas de existência fantasmagórica. Tudo isso contribui para criar tensões com o absurdo e desierarquizações entre ciência, saberes tradicionais e arte, colonização e resistências, memória e amnésia, história e ficção.

Para Terron, o Brasil é um cenário traumático de horror cuja história envolve crimes e ocultações, assim como acontece nas histórias familiares e na própria ficção. A transmissão e a passagem do tempo, fundamentais para a narrativa se desenvolver – a da vida, a da história e a da literatura –, são perturbadas por maldições e fantasmas que provocam a memória em sua relação com o esquecimento. A memória é “contaminada”, portanto, pelo movimento labiríntico e em palimpsesto, como declara o crítico Fehlauer (2020) ao analisar o romance, de quem lembra e ao mesmo tempo esquece o passado vivido ou o que só pode conhecer de segunda mão, o que sempre envolve invenção, dúvidas, segredos, monstros e fantasmas. 

O narrador da maior parte da história é Curt Meyer-Clason, personagem histórico alemão acusado de espionagem e preso durante a Segunda Guerra no Brasil. Durante os cinco anos de reclusão na Ilha Grande, conheceu a literatura brasileira e, no retorno à Alemanha, tornou-se tradutor reconhecido por escritores brasileiros como Guimarães Rosa. No romance de Terron, ele está velho e é irmão de consideração dos Reiners, “seu nobre tio postiço”, mediador onisciente de histórias ouvidas de outros, endereçadas ao garoto já crescido. Com sua morte, assassinado na Casa do Sol, de sua amiga Hilda Hilst, a história passa a ser contada por Hugo Reiners (pessoalmente e por cartas) e pela “rata” (por fitas gravadas em seu exílio). O interlocutor é chamado apenas de “você” e deduz-se que seja o garoto/jovem, mas também poderia ser o leitor.

Na obra, personagens humanos são provocadores de catástrofes, tanto os reais, históricos, quanto os ficcionais: nazistas, torturadores, a mãe do menino, o bioquímico alemão e o próprio jovem. Quase todos têm ao menos um traço monstruoso e são sobreviventes de um grande mal. Também são agentes da catástrofe personagens inumanos e de existência insinuada como atemporal, como a pyhareryepypepyhare, criatura nomeada de várias maneiras ao longo do livro como líquen, fungo, flor-vampiro, cristal do pântano, praga vegetal, remédio, às vezes, veneno, por outras, um ser que transita entre o vegetal, o animal e que é também um fantasma remanescente de mundos inacabados que coexistem no presente. A criatura é veneno e remédio e não tem moral, apenas existe; foi “libertada” de seu estado parasitário do mineral pela ação da Quadrilha da Pedra Negra a partir da cratera aberta por um meteoro no Chaco e contrabandeada para laboratórios de campos de concentração nazistas, tendo regressado ao Brasil em sua existência perene e mutante.

Toda a narrativa do romance é contada por uma estrutura de justaposições que multiplica o enredo ao infinito, evidenciando preocupações formais por meio de exercícios de metalinguagem muitas vezes rotulados pela crítica como complexos e herméticos. Não se trata de maneirismo, constituindo a marca autoral de Terron desde seu primeiro romance, Não há nada lá (2001): uma escrita literária que não descuida da linguagem, em seus aspectos estéticos, nem abre mão do diálogo com os escritores que lê, admira e elege como pares (ao contrário da família, criticada abertamente em sua produção), em movimentos intertextuais que também problematizam a tradição e a literatura contemporânea, com foco na ficção brasileira e latino-americana (da qual é tradutor, tendo organizado, a partir de 2013, a Coleção Otra Língua, pela Editora Rocco, projeto destinado a apresentar escritores latino-americanos contemporâneos ao leitor brasileiro). É por essa filiação, da qual participam escritores brasileiros “malditos”, que Terron fortalece sua distinção, acionando gêneros populares como o policial, o romance histórico, incluindo traços do horror e do absurdo, não sem ironia e distorção, acrescentando, a partir de Noite dentro da noite – uma autobiografia, uma guinada em sua produção literária, que passa a interpretar crítica e politicamente o presente pela interrogação sobre as raízes violentas do Brasil como país colonizado, assim como seus vizinhos latino-americanos.

A ideia de repetição, evocada pela temática da violência e pela inserção deliberada em uma “tradição”, está associada ao problema da transmissão, que perpassa todo o romance. O bom e o ruim são legados, tanto por parte da família quanto da história. A máxima segundo a qual “o processo de colonização nunca termina” está dada desde o título do romance: Noite dentro da noite – uma autobiografia, e o subtítulo parece ter múltiplos significados: pode se referir ao escritor e sua família (já que o sobrenome dos personagens é Reiners e são descendentes de imigrantes alemães), pode ser uma autobiografia do protagonista desmemoriado, mas pode ser também do país. Esse subtítulo é mais uma brincadeira do escritor, afinal, “o motor das narrativas é sempre uma intenção alheia à verdade e mais próxima ao crime”, que envolve também enganar e matar o leitor: “O escritor encontra-se sob o signo de Escorpião: é da sua natureza assassinar o leitor que o carrega, feito o sapo na grande travessia da fábula de Esopo”. É a esse leitor que o livro interessará: curioso, atento aos detalhes, disposto ao jogo com diferentes gêneros e referências, que vai rir ao ser ludibriado.

O subtítulo é uma trapaça que também pode ser uma espécie de brincadeira crítica de Terron pelo apelo subjetivista dos gêneros (auto)biográficos e memorialísticos/testemunhais no cenário contemporâneo (na literatura e na cultura de modo mais amplo) e um discurso em favor da imaginação, capaz de torcer a realidade e a história, sem a pretensão de desvendar as mentiras, mas prendendo a atenção do leitor ao inserir mais informações, personagens e possibilidades pelo emaranhamento do enredo. Talvez por isso o personagem da criança desmemoriada afetada pelos remédios; conforme Curt Meyer-Clason, a criança (assim como o leitor desatento ou mesmo um livro em particular) “Lembra das coisas ínfimas vistas de perto. É um ser desprovido de causalidade. A memória infantil opera em extremo close-up, enquanto a história familiar [e uma tradição literária] é vista em panorâmica através da lente grande angular”. Esse movimento de aproximação e afastamento é a operação de Terron na montagem do livro, juntando peças e tamanhos diferentes sem concluir o quebra-cabeça, deixando aberturas à imaginação.

Para saber mais

CHECCHIA, Cristiane (2020). Fronteiras e esquecimento: Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 60, p. 1-10. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/30764. Acesso em: 15 fev. 2024.

ESTEVES, Bernardo (2012). O jagunço de Munique. Revista piauí, São Paulo, edição 67, abr. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-jagunco-de-munique/.  Acesso em: 15 fev. 2024.

FEHLAUER, Paulo Marcelo (2020). Fantasmas em palimpsesto: leituras a partir de Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/items/1793cd70-d4b5-4593-8d24-0d3842498763. Acesso em: 16 fev. 2024.

OLIVEIRA, Cátia Maria de Araújo (2023). A desconstrução na ficção latino-americana pós-ditadura: uma outra estratégia discursiva? Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Brasília, Distrito Federal. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/45939. Acesso em: 23 abr. 2024.

OLIVIERI-GODET, Rita (2020). Estilhaços da memória nos pântanos da história: Noite dentro da noite, de J. R. Terron. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 60, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/30756. Acesso em: 15 fev.      2024.

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Como citar:

COELHO, Lilian Reichert.
Noite dentro da noite – uma autobiografia.

Praça Clóvis: 

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crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

16 abr. 2025.

Disponível em:

4747.

Acessado em:

19 maio. 2025.