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Sombras de reis barbudos

VEIGA, José J. Sombras de reis barbudos. São Paulo: Civilização Brasileira, 1972.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel

José J. Veiga (Corumbá de Goiás, GO, 1915 — Rio de Janeiro, RJ, 1999) estudou na Faculdade Nacional de Direito, foi comentarista, jornalista, romancista e contista de ficção contemporânea no Brasil. Aos 44 anos, publicou seu primeiro livro, Os cavalinhos de Platiplanto (1959). Publicou também o romance A hora dos ruminantes (1966), A estranha máquina extraviada (1967), Sombras de reis barbudos (1972), Os pecados da tribo (1976), Aquele mundo de Vasabarros (1982), O risonho Cavalo do Príncipe (1992), entre outras obras. Seus livros foram publicados em diversos países, como Portugal, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra. Em 1997, ganhou, pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

A obra de José J. Veiga é marcada, segundo alguns críticos, por um certo realismo mágico ou fantástico. Especialistas na obra do autor apontam o regionalismo como elemento estilístico característico da produção literária de Veiga. A construção da narrativa, no entanto, destaca-se por uma perspectiva realista e não idealizada da realidade brasileira, embora seja igualmente marcada pelo nonsense e por contínuos movimentos disjuntivos e de reaproximação entre realidade e ficção. O estilo literário do escritor caracteriza-se por uma linguagem direta, valendo-se recorrentemente de recursos literários e linguísticos como ironia, subjetividade, amplificação e sonoridade. Sua narrativa adentra em temáticas do nosso cotidiano e tece profundas críticas sociais.

Sombras de reis barbudos estabelece um diálogo com outras obras do autor: A hora dos ruminantes, Os pecados da tribo e, publicado mais tarde, Aquele mundo de Vasabarros. A hora dos ruminantes, por exemplo, narra o cerceamento da liberdade dos moradores de uma cidade diante da chegada de homens desconhecidos e da invasão de animais que passam a circular livremente. O romance é uma alegoria que transita entre o fantástico e o realismo. Aquele mundo de Vasabarros, por sua vez, é um romance que se aproxima do gênero “distopia” e retrata a experiência cotidiana de uma cidade marcada pelo cinza, pela desesperança e pela submissão como instrumento de sobrevivência às práticas autoritárias do regime político de exceção que dita o dia a dia das pessoas. A liberdade e a dignidade humana não são direitos fundamentais nessa sociedade distópica. Esse conjunto de romances é também, em alguma medida, uma resposta ao período ditatorial brasileiro, aos arbítrios e violências que legitimaram as ações dos ditadores no Brasil.

A trama de Sombras de reis barbudos narra a chegada da Companhia de Melhoramentos de Taitara àquela pequena cidade, prometendo modernidade e avanço. Todavia, pouco a pouco, a empresa vai impondo à população de Taitara uma agenda totalitária e de tirania. Vale destacar que o romance foi publicado no período ditatorial, marcado por todas suas práticas criminosas — perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas, etc. A obra funciona então como uma alegoria da ditadura militar brasileira, mas a construção da narrativa não se limita a isso, permitindo relacioná-la a diferentes experiências sócio-históricas, políticas e culturais. O narrador subjetivo, um adolescente de dezesseis anos, reconstitui, com estranhamentos e questionamentos, a memória de acontecimentos na cidade. Ele parte da chegada de seu tio Baltazar, responsável pela fundação da Companhia na cidade. Lucas, ou Lu, como é chamado, tinha apenas onze anos quando ali se instaurou um regime político repressivo e autoritário. Seu processo de formação e amadurecimento se dá em meio à ascensão do arbítrio institucional, numa cidade triste e de casas vazias. Ele descreve um mundo que se afastou completamente da regularidade pública e da institucionalidade. Há a promoção de um modelo de sociedade que desumaniza. É, sobretudo, uma passagem viva dessa memória, marcada pela imposição progressivamente da repressão, que é reconstituída pelo narrador-personagem.

No início, Baltazar andava pela cidade admirado em razão da chegada da fábrica. Até que um dia, muito doente, ele afasta-se da cidade, e a Companhia passa a ter novo comando, revelando o seu real projeto totalitário para aquele local. E a vida foi ficando mais difícil para todo mundo. Horácio, pai de Lu, foi promovido a fiscal e passou a andar fardado. Ele tinha agora o poder de prejudicar ou beneficiar qualquer um, ganhou um respeito não de admiração, mas de bajulação, de receio, um respeito excessivo. A farda, como o próprio pai de Horácio contou, impõe respeito e medo, demonstra força e atribui privilégios e vantagens aos sujeitos eleitos repressores. Ela emite uma linguagem de repressão, de legitimidade do uso da força e da violência. Ela fixa uma hierarquia e subalterniza outros indivíduos em relação ao sujeito que a veste.

Além disso, os muros por toda parte impediam e desviavam a passagem, a circulação das pessoas pelas ruas e pela cidade. Muros altos e extensos limitavam a visão. Os muros simbolizam, no romance, a força arbitrária que se impõe naquela cidade, violando direitos fundamentais como liberdade e dignidade humana. Eles se traduzem como instrumentos que não mais permitem a livre circulação de ideias e pensamentos, que coíbem desejos, sonhos e projetos. “Com tanto muro por toda parte cansando e desanimando, era difícil saber o que acontecia na cidade, o que o povo estava pensando e dizendo” (Veiga, 2015). Os muros funcionam como metáfora de projetos políticos, sociais e culturais que têm como fio condutor a interrupção da passagem do tempo e a impossibilidade de futuro e, consequentemente, de transformação. Esse romance constitui um arquétipo das ideologias totalitárias, que se caracterizam por apresentar constantemente um projeto de sociedade no qual não é possível pensar o futuro e suas transformações. É uma tentativa de impor uma única concepção de verdade sobre tudo que atinge a experiência humana e suas relações. Essas ideologias procuram determinar o que será ou não aceito como aspectos que caracterizam nossos desejos, nossos projetos e nossas relações uns com os outros.

Os muros são a última luz que se apaga numa casa em ruínas, materializando-se como ferramenta de opressão e de violência de um regime político. Eles representam o controle absoluto sobre aquela coletividade e território. Anulam a diversidade, a pluralidade. Acentuam desigualdades geográficas e culturais. Fixam um regime de exceção, ainda que para isso precise apagar da história qualquer traço de identidade étnica, política ou cultural dissidente. E é justamente isso que ocorre nessa pequena cidade de Sombras de reis barbudos: a ascensão de um regime totalitário que imediatamente executa um projeto de supressão de todos os direitos individuais e coletivos da população local. Não tendo muito para olhar além do alto, as pessoas percebiam que o céu era tomado cada vez mais por urubus. E todos sabiam que as superstições de que urubus nos arredores eram sempre anúncio ruim. Os urubus perderam o medo até pousarem nos muros, passaram a olhar continuamente para dentro das casas e tornaram-se um animal de estimação. As pessoas acostumaram-se com eles, e a Companhia passou então a persegui-los. O regime instaurado parecia perseguir qualquer coisa que trouxesse o mínimo de distração, de alegria, de leveza para essa população. A Companhia de Melhoramentos era antônimo de felicidade e de liberdade.

Já mergulhados em uma rotina triste e monótona, a chegada do mágico Grande Uzk à cidade causa alvoroço. A Companhia não queria o mágico na cidade. O mágico representava uma ameaça ao regime, pois mostrava ao público outras maneiras de enxergar o mundo e indicava caminhos desconhecidos. O mundo da Companhia era único, sem espaço para pluralidade ou outras perspectivas. O Grande Uzk, portanto, surge como uma ameaça. A Companhia impunha uma visão única da realidade. O mágico, ao contrário, revela que visões de mundo, verdades e compreensões da realidade estão sempre em disputa. Isso desestabiliza regimes totalitários e projetos antidemocráticos. Sombras de reis barbudos demonstra que as artes são instrumentos permanentes de questionamento das verdades estabelecidas e das referências políticas, culturais e acadêmicas.

O mágico foi embora sem que as pessoas soubessem ao certo se aquilo tinha sido um sonho, se ele havia passado mesmo pela cidade ou não. A Companhia, por sua vez, continuava a impor uma rotina de exceção à população. Abria também inquérito para investigar qualquer assunto ou pessoa que considerava uma ameaça ao regime. Ela estabelecia mais proibições e regras umas atrás das outras, absurdas, injustificáveis e severas (perseguia os urubus, proibia pular os muros para cortar caminho, rir em público, etc.). Nesse sistema, as pessoas eram instrumentalizadas, tornaram-se meras engrenagens do projeto de poder em execução. O clima de terror e medo reflete o destino que todas as personagens que cercam o narrador-personagem têm no romance.

Os eventos do romance permitem uma analogia entre as medidas adotadas pela Companhia na cidade e os eventos fantásticos que ocorrem: a provável vinda de um mágico, a ocupação de urubus e a presença de pessoas voadoras. Esses acontecimentos são questionáveis, pois sua veracidade depende das diferentes interpretações. Nesse sentido, as ações da Companhia também são consideradas surreais e contestáveis. A produção literária de Veiga é marcada por elementos insólitos e fantásticos. Por outro lado, os elementos contextuais definem o ambiente ficcional, com referências históricas que abrem diálogos possíveis com a realidade sócio-histórica e política brasileira da ditadura militar e outros projetos políticos totalitários no mundo. É essa capacidade de expansão que marca a obra literária como essa, conferindo-lhe um alcance universal.

Os aspectos literários remetem ao realismo mágico da década de 1970. O uso de símbolos e metáforas, os eventos fantásticos e a incorporação do mistério à realidade são características desse movimento. Esses elementos destacam o silenciamento da população, a invisibilidade dos grupos reprimidos e o sistema repressor que reafirma seu poder por meio da violência, como prisões, perseguições e maus-tratos. O romance se torna um recurso literário-estético essencial para compreender a violência e o arbítrio em diferentes sociedades, conferindo-lhe um alcance universal e atemporal.

Para saber mais

DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora UnB.

DANTAS, Gregório Foganholi (2002). O insólito na ficção de José J. Veiga. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

DANTAS, Gregório (2004). José J. Veiga e o romance brasileiro pós-64. Falla dos Pinhaes: Revista do Curso de Letras, Espírito Santo do Pinhal, v. 1, n. 1, p. 122-142.

PRADO, Antonio Arnoni (Org.) (1989). Atrás do mágico relance: uma conversa com J. J. Veiga. Campinas: Editora da Unicamp.

RODRIGUES, Milton Hermes (1991). José J. Veiga: do fantástico à dissidência. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade Estadual de São Paulo, Assis.

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Sombras de reis barbudos.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

11 abr. 2025.

Disponível em:

4802.

Acessado em:

19 maio. 2025.