CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
José Humberto Torres Filho
Ilustração: Cláudio Rodrigues
Perder-se na floresta é imagem involuntária de uma busca coletiva, cujo destino final, não raramente, aponta para o trágico. Poucos projetos literários se dedicaram tanto, no século XX, à procura da nação brasileira pelas viagens e perdições na floresta quanto a obra de Antonio Callado (Niterói, RJ, 1917 – Rio de Janeiro, RJ, 1997). Seus personagens são lançados ao mundo a fim de descobrirem outros mundos, outros modos de ser e pensar, outros eles mesmos. Contudo, isso ainda diz pouco: são personagens que também vão ao mundo para serem por ele devorados.
Em última instância, viajar pela floresta, pelo sertão, e eventualmente perder-se, é um modo de investigação urgente sobre a identidade e o destino da nação, em que múltiplas vozes se atravessam, se sobrepõem e se afastam como o balanço pesado das copas densas de árvores centenárias ao vento. E há casos em que a perdição definitiva é o que de melhor poderia resultar, pois a morte, em uma de suas muitas faces, é também alquimia radical, desejo de mudança.
Jornalista celebrado, Callado assistiu, não sem alguma objeção, à crítica especializada comparar com insistência sua produção literária às suas reportagens. O movimento é compreensível, em parte, porque a atividade jornalística de Callado é em tudo literária, da linguagem ao tratamento dos temas. E sua produção ficcional, por mais que se valha muitas vezes da alegoria como caminho, se guia por fatos históricos, pelos eventos noticiados pela imprensa, dando à ficção ar contemporâneo, que hoje, longe de resultar aprisionada a um dado momento histórico, revela-se perturbadoramente atualizada. De todo modo, as reportagens, as crônicas, as peças de teatro e os romances do autor trilham a mesma direção, dando corpo a um projeto literário, em que predominam o questionamento sobre o Brasil, a desconfiança crítica sobre os intelectuais e a aguda e genuína preocupação com a vida de indígenas e sertanejos.
Em suas pouco mais de cem páginas, A expedição Montaigne se constitui a partir de um irônico emaranhado desses elementos centrais. A narrativa tem início com a libertação de Ipavu do reformatório Crenaque, uma prisão construída na cidade de Resplendor, em Minas Gerais, durante a ditadura, a fim de manter cativos os indígenas que incomodavam os fazendeiros locais. Ipavu é um indígena camaiurá tuberculoso que acabou no reformatório por ter provocado baderna em bares. Conhece intimamente os brancos, deseja ser um deles e nutre desprezo por sua própria cultura. Quem o liberta é Vicentino Beirão, um jornalista, amante da cultura francesa, morador do Leblon, que dinamita as paredes do reformatório buscando emular a queda da Bastilha. Vicentino se imagina um antibandeirante, libertador de silvícolas, que decide empreender uma expedição a fim de reunir os indígenas que encontrar no caminho com o objetivo de fundar uma república nativa e exigir restituição da sociedade brasileira. Como ele insistentemente observa a realidade local pela ótica da Revolução Francesa, é um personagem risível e delirante, dando vida ao intelectual de ideias distantes do que seja o Brasil e que, quando confrontadas com a realidade, revelam o absurdo que as engendram.
Ipavu aceita participar da expedição apenas para resgatar um gavião-real cultuado como totem por sua aldeia. Entende que a proposta de Vicentino é absurda, mas se aproveita do idealismo do outro para obter mais vantagem para si. É possível afirmar que a narrativa se estrutura em grande parte pela contraposição entre Ipavu e Vicentino, já que a dinâmica dos dois representa os embates entre o idealismo alimentado pelas referências europeias e o realismo encarnado no corpo indígena adoecido, isolado de seu povo, desejante de escapar de sua própria cultura como meio de sobrevivência. Outro personagem central é Ieropé, o pajé camaiurá desacreditado por sua aldeia por não conseguir curar as doenças trazidas pelos brancos. Isolado e humilhado por seu próprio povo, ele resgata insistentemente as palavras de Zeca Ximbioá, um guerrilheiro que, no passado, esteve na região e que lhe falou sobre Karl von den Stein, chamado na narrativa de Fodestaine. Ieropé entende que o explorador alemão é o responsável pela decadência de seu povo, por isso alimenta fortes desejos de vingança.
A adoção do nome de Montaigne para a expedição fala do ideário de Vicentino. O gesto de batizar sua empreitada, de nomear, diz de um empenho em “civilizar”, assim como a confecção de mapas, quer controlar, definir e explorar o desconhecido selvagem. Já Ipavu, que, na verdade, se chama Paiap e passa a atender por Ipavu porque os brancos lhe deram o nome de uma das lagoas do território camaiurá, quer ser branco. Ele perde o nome, usa vestimentas ocidentais, fala um português com gírias a fim de comunicar uma fluência impecável. Tudo isso diz da inadequação do personagem. O gavião-real, totem de sua aldeia e motivo de sua viagem, mostra que Ipavu estava amarrado às duas culturas.
O tema da viagem pela floresta aparece na obra de Callado logo na reportagem O esqueleto na lagoa verde (1953), em que ele vai ao Xingu acompanhar o que seria a descoberta da ossada do coronel britânico Percy Harrison Fawcett que desapareceu na floresta nos anos 1920, enquanto realizava uma expedição em busca de uma cidade perdida, cuja existência supostamente teria sido relatada por bandeirantes. Trinta anos depois do desaparecimento, Callado acompanha o filho mais velho do coronel para localizar a ossada que os calapalo afirmaram a Orlando Villas-Bôas pertencer ao britânico. O esqueleto não pertencia a Fawcett, e a reportagem de Callado muda de foco para observar a dinâmica dos não indígenas com os calapalo. Há, de modo subjacente, uma reflexão sobre o movimento como um gesto colonial — a exploração do britânico — e também como um esforço anticolonial, o do próprio Callado que vai ao Xingu escrever sobre um Brasil ainda estranho e invisível para muitos.
Em Quarup, romance de 1967, o tema da expedição volta a ser trabalhado, agora como matéria ficcional, e a busca pelo centro geográfico brasileiro retoma a morte como elemento central, aqui representando sobretudo possibilidades de transformação da sociedade, ao passo em que não deixa de apontar para sua degeneração e violência. Se, em Quarup, há uma aposta de que os intelectuais, que representam a nação brasileira e suas escolhas políticas, possam transformar-se pela experiência na selva, em A expedição Montaigne o movimento do homem civilizado na floresta comunica uma descrença dessa proposta. Quando Vicentino e Ipavu se perdem na mata, a perdição não diz nada ao jornalista, que busca um Brasil pitoresco e entende sua viagem como a feitura de um mapa. O processo de aprendizagem pensado como viagem que marcou Quarup não se repete aqui. Perder-se acaba servindo mais a Ipavu, que inicia uma reflexão sobre o destino da expedição.
Publicada nos estertores da ditadura, no mesmo ano em que o xavante Mário Juruna se tornou o primeiro indígena eleito para a Câmara Federal, A expedição Montaigne destoa do sentimento de euforia da reabertura política. Callado parece olhar com desconfiança para os movimentos da sociedade brasileira quanto à questão indígena. A substituição dos militares por representantes civis conservadores não representava nenhuma mudança estrutural no tratamento dos povos originários. Ainda que a constituição de 1988 tenha oferecido avanços fundamentais nos direitos indígenas, as ideias permaneceram mais próximas do romantismo, de um discurso idealizado e uma prática de destruição. Ler A expedição Montaigne hoje é um modo de investigar a sério o que pensa a nação sobre os povos originários, na busca por escapar da idealização e do exotismo que o tema até hoje suscita no imaginário do brasileiro, e o quanto se está disposto a transformar a realidade em outra possibilidade de país.
Para saber mais
KARLO-GOMES, Geam (2019). O conflito apocalíptico em Assunção de Salviano, de Antonio Callado. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 57, p. 1-11. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/26026/22858. Acesso em: 12 jul. 2022.
TORRES, José Humberto (2021). Contra todos os fogos, o fogo: vingança como resistência em Antonio Callado. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 63, p. 1-14. Disponível em: https://www.periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/40351/31381. Acesso em: 12 jul. 2022.
TORRES, José Humberto (2021). Serpente de ouro em relva escura: os indígenas e a ditadura em Quarup, de Antonio Callado. Tese (Doutorado) — Universidade de Brasília, Brasília.
Iconografia