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Paradeiro

BUENO, Luís. Paradeiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2018.

Ana Clara Magalhães de Medeiros
Ilustração: Dona Dora

Paradeiro (2018), de Luís Gonçales Bueno de Camargo (São José dos Campos, SP, 1963), evidencia que a conjugação, em uma mesma pessoa, das funções de crítico literário, acadêmico, professor de literatura e romancista pode ser bem-sucedida. Nascido em São José dos Campos, no interior de São Paulo (Vale do Paraíba) – cidade que serve de espaço central à trama de Paradeiro –, Bueno estreia na prosa de ficção com essa narrativa de 2018, depois de uma consolidada carreira como crítico literário, notadamente quanto ao estudo do chamado “romance de 30”, com destaque para seu livro Uma história do romance de 30 (2006), além de outros títulos sobre artes visuais ou literárias.

O fato de ser professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná (UFPR) soma-se ao seu trabalho como romancista, pois, em vários sentidos – como se verá –, Paradeiro exibe uma rigorosa consciência crítica sobre a literatura brasileira produzida até 1938 (uma das datas em que se passa a trama). O livro recebeu o Prêmio Machado de Assis, na categoria romance, da Fundação Biblioteca Nacional, em 2019.

À primeira vista, Paradeiro causa certo estranhamento pois, em um intervalo de seis páginas – que formam três capítulos –, já se pode notar que o romance conta com três narradores, mais precisamente duas narradoras e um narrador. Cada capítulo, assim, é conduzido por uma dessas três vozes, sem que suas histórias particulares estejam imediatamente conectadas. Trata-se, seguramente, de um romance polifônico, que alberga três vozes, três consciências, três estilos autorais diversos – situados em tempos diversos do século XX e início do XXI –, além de ter como ponto central a cidade de São José dos Campos (SP) e a relação fundamental dos três personagens com o adoecimento e a morte.

Os 75 capítulos do livro apresentam narradores alternados: primeiramente, uma mulher, de 57 anos, sem nome indicado, que vive no ano 2000, em São José dos Campos, e se apresenta assim: “esse cheiro vem de mim”. O odor relaciona-se a um câncer e desencadeia, na personagem, um impulso suicida. Depois, apresenta-se o narrador Pedro Marques, um jovem de 23 anos que descobre uma tuberculose no ano de 1938, quando essa doença ainda levava a altas taxas de mortalidade. Dada essa condição, o rapaz se tratará em São José dos Campos, cidade famosa, na primeira metade do século XX, por seus sanatórios e cuidados de referência contra o bacilo da tuberculose. Finalmente, uma prosa com evidentes marcas do português europeu revela a terceira narradora: Bibiana, uma portuguesa que, ainda criança, foi forçadamente trazida para o Brasil (Guarujá) e, deste lado do Atlântico, chega aos 81 anos – sua principal idade na trama, já marcada pela falta de memória e pela confusão mental provocada por uma arteriosclerose. Alguns índices do romance – uns mais evidentes, como a cidade de São José; outros menos explícitos, como o fato de a mulher com câncer mencionar, logo no princípio da obra, ter por vizinhos o “Seu Pedro e a Dona Laís” – progressivamente conectam os três personagens e suas histórias.

Os modos de narrar desses três narradores são bastante diversos. A senhora com câncer, personagem de meia-idade, revela-se a partir dos pensamentos, memórias e atos desencadeados por sua hesitação frente ao suicídio. Sua consciência, convulsionada, entre outros fatores, pelo mau cheiro advindo da doença, compõe sua biografia de maneira não linear, fragmentada e sempre comentada ou tensionada pela mulher que ela é no presente – tudo isso registrado em um português do Brasil coloquial e contemporâneo, muito bem ordenado do ponto de vista sintático e discursivo.

Já Dona Bibiana, última voz narrativa apresentada no livro, exibe-se por meio de um fluxo de consciência intenso, que prescinde, quase sempre, de pontuação, letras maiúsculas e lógica sintática (em uma prosa semelhante àquela que caracterizou os narradores de José Saramago a partir dos anos 1980). Desde o primeiro momento, é possível reconhecer, em sua fala, o português europeu – logo em seguida, mais elementos narrativos (além do “sotaque”) indicam que a personagem natural de Ruge Água, pequena cidade do interior português, é violentamente trazida ao Brasil quando criança. Seu modo de narrar – tendo tempos, vozes, geografias variantes e discursos cruzados – mimetiza a consciência de alguém que se vê assim: “estou louca doida tantan lelé da cuca de mola parva maluca da bola mais perdida do que cego em tiroteio mais por fora do que umbigo de vedete estou gagá”.

O único narrador masculino do livro, Pedro, escreve cartas endereçadas a intelectuais e escritores reconhecidos dos anos 1930 ou à sua mãe, irmã e ao médico. A obra não apresenta as respostas a Pedro, aspecto que, por um lado, restringe a visão de leitores/as à consciência e ao discurso do jovem socialista, mas, por outro lado, reforça a experiência de um sentimento que une os três narradores da trama: a solidão. Pedro, portanto, deixa-se conhecer pelas cartas que escreve a figuras históricas como “Carlinhos” (Carlos Lacerda) e “Murilíssimo” (Murilo Miranda) – editores da Revista Acadêmica (citada várias vezes pelo personagem), periódico que fazia circular, na década de 1930, textos de crítica literária, de difusão das ideias socialistas e de combate ao fascismo (Ribeiro, 1989).

A narrativa oferece um curto, mas decisivo, momento da vida do rapaz, do romance brasileiro e da história nacional e mundial: o ano de 1938, quando Pedro se enclausura em São José dos Campos com tuberculose; quando Graciliano Ramos publica Vidas secas; quando o Brasil amarga o primeiro ano inteiro de Estado Novo; e quando, na Europa, fervilham os ismos totalitários (salazarismo, franquismo, fascismo e nazismo). A voz de Pedro, portanto, é a do intelectual, expressa em uma variante prestigiada do português brasileiro, que mescla a atuação do crítico literário e do militante comunista em uma cidade interiorana marcada pela iminência da morte.

Tendo discorrido sobre o tempo, o espaço e a tipologia de narradores da obra, resta refletir sobre a provocação de seu título: Paradeiro. Os dicionários da língua portuguesa definem o termo como o espaço onde alguém ou algo está ou vai parar. Em entrevista concedida à editora que publica o livro, Luís Bueno afirma: “a palavra tem uma ambivalência entre o permanente e o efêmero, passageiro, que está na base do romance. Na esteira dessa ambivalência, o título evoca um lugar ao mesmo tempo metafórico e geográfico em que se foi parar – mas parar até quando?”.

Um romance que tematiza a doença e a morte parece perguntar, desde seu título, sobre a permanência de tais estados na história de indivíduos e de coletividades do Brasil e de Portugal, por exemplo. Os espaços geográficos onde vão parar a mulher com câncer (a Via Dutra, o hospital, a praça), Pedro (São José dos Campos, a barbearia do seu Tico, a mesma praça) e Bibiana (Leiria, Guarujá, a praça já referida em São José dos Campos) definem justamente mudanças radicais em suas trajetórias.

A obra, assim, termina por conduzir a um questionamento existencial, mas também político: é dado ao indivíduo o poder de decisão sobre seu próprio paradeiro? Residualmente, a narrativa também favorece a indagação sobre o paradeiro da prosa, sobretudo do romance brasileiro, após os anos 1930: o Brasil de Pedro é tecido pela interlocução com escritores como Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Lúcia Miguel Pereira, Newton Sampaio. Se é possível supor que, em Pedro Martins, há muito do crítico Luís Bueno, escapa a pergunta: qual o paradeiro, hoje, da tradição literária e intelectual legada pelo modernismo da geração de 1930?

A morte, sendo o paradeiro final de todo ser que vive, de modo surpreendente, não é a paragem definitiva desse romance. Aliás, a obra justamente exibe personagens que, marcados pela sistêmica violência contra a mulher (no caso de Bibiana), pela esterilidade e automatismo da vida familiar e conjugal (quanto à mulher com câncer), pela condição contraditória do intelectual abastado, de esquerda, em um país erigido sobre o conservadorismo político e a exploração de trabalhadores/as precarizadas/os (situação de Pedro), conseguem, finalmente, viver a partir de sua decisão consciente e voluntária. Muitos paradeiros são perseguidos nessa múltipla narrativa. O resultado são três narrativas convulsas e misturadas à impressão de que o paradeiro que se busca se atrela menos à geografia e mais ao desejo humano. O ensinamento do jovem Pedro, em uma de suas últimas cartas, indica um outro paradeiro possível – para esses personagens e para aqueles que chegam ao final do romance.

Para saber mais

BUENO, Luís (2019). Todo lugar é lugar de se morrer. [Entrevista concedida a] João Lucas Dusi. Jornal Rascunho, Curitiba. Disponível em: https://rascunho.com.br/entrevista/todo-lugar-e-lugar-de-se-morrer/. Acesso em: 12 out. 2024.

BUENO, Luís (2018). Paradeiro: o primeiro romance de Luís Bueno. [Entrevista concedida a] Renata de Albuquerque. Ateliê Editorial (site), Cotia. Disponível em: https://atelie.com.br/paradeiro-o-primeiro-romance-de-luis-bueno/. Acesso em: 8 out. 2024.

BUENO, Luís (2003). Os três tempos do romance de 30. Teresa, São Paulo, v. 3, p. 254-283, 2003. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/268362448.pdf. Acesso em: 9 out. 2024.

RIBEIRO, Laura Maria de Abreu Daniel (1989). Revista Acadêmica (1933-1940) e a Arte Moderna Brasileira nas décadas de 1930-1940. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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Como citar:

MEDEIROS, Ana Clara Magalhães de.
Paradeiro.

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mapeamento 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

03 abr. 2025.

Disponível em:

4681.

Acessado em:

19 maio. 2025.