CONY, Carlos Heitor. Quase memória: quase romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Luciana da Costa Ferreira
Ilustração: Mariângela Albuquerque
Carlos Heitor Cony (Rio de Janeiro 1926 – Rio de Janeiro 2018), em Quase memória: quase romance, rompeu uma lacuna de mais de vinte anos sem publicar romances. Em quase 300 páginas, o narrador, que seria o escritor Cony, nos faz mergulhar em histórias de seu pai, Ernesto Cony Filho e, também, em sua autobiografia. Escritas sobre a relação com os pais já perpassaram obras como Carta ao pai (Franz Kafka, 1919), O Lugar (Annie Ernaux, 1983) e Notas sobre o luto (Chimamanda Ngozi Adichie, 2021) e, em alguns casos, fazem esse percurso pela biografia do outro para realizar uma escrita de si mesmo.
Cony, nascido no subúrbio carioca, foi aluno no Seminário Arquidiocesano de São José entre 1938 e 1945. Lá, adquiriu uma educação erudita que reverberou em seu trabalho literário e jornalístico. Aos 26 anos, estreou oficialmente como jornalista no Jornal do Brasil. Antes tivera, extraoficialmente, uma breve passagem na Gazeta de Notícias em substituição ao pai, doente. Trabalhou no Grupo Manchete, Correio da Manhã, Folha de São Paulo e na rádio CBN. Como escritor, foi autor de romances, contos, crônicas, novelas televisivas, ensaios e traduções. Seu primeiro romance foi O Ventre (1956) e, na sequência, destacaram-se Pessach: a travessia (1967) e Pilatos (1974). Recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti e foi eleito para a cadeira três da Academia Brasileira de Letras (ABL) em março de 2000.
O narrador inicia Quase memória com a apresentação de um dia rotineiro ao almoçar com sua secretária e seus amigos em um hotel. Esse evento foi quebrado por um acontecimento banal: a entrega pelo porteiro do hotel de um embrulho amarrado com um barbante. O pacote, endereçado a Cony, causou-lhe espanto, pois, em uma das faces, estava estampada simplesmente a letra de seu falecido pai. E não era somente a caligrafia, como também as dobras do papel e o nó no barbante. Tudo isso tinha a marca de seu pai. Na sequência, o narrador isolou-se em seu escritório e, na interação com o pacote, deixou as suas memórias conduzirem os seus pensamentos. Lembrou de cheiros de seu genitor, como o de alfazema e brilhantina. Nesse vai e vem pela memória, histórias esquecidas foram relembradas: a época que frequentou o internato, a romaria de seu pai e de uns conhecidos a um padre milagreiro e o dia em que seu pai lhe ensinou os pontos cardeais no alto do morro do Sumaré.
Uma curiosidade é a de que a cena inicial do recebimento do pacote nasceu a partir de um sonho de Cony. Após esse acontecimento, o escritor teve a impressão de que o pai queria lhe dizer algo. O autor, então, resolveu escrever uma crônica para a Folha de São Paulo que, posteriormente, foi transformada nesse romance.
Se o leitor teve contato com outras obras de Cony, verá que em Quase memória o resgate e a reconstrução do passado, utilizando-se da ficcionalização, é um tema frequente. A escrita do livro em questão foi desencadeada por um luto antecipado por sua cachorra Mila, a quem a obra é dedicada. Ela estava com uma doença terminal e sofria com fortes dores. Nos 21 dias de sofrimento de sua cadela, o escritor, no dedilhar incessante das teclas da máquina de escrever, produzia um som que acalmava sua cadela. Aliás, Mila foi de suma importância para Cony quando seu pai falecera. A cachorra, sempre aconchegada aos seus pés enquanto trabalhava, fez com que perdesse “medo do mundo e do vento”, como afirmou em crônica dedicada a ela. A partida de Mila representa a perda de uma companheira de vida e um acerto de contas com algo no passado que definia como sensível e inacabado: sua relação com seu pai. A tristeza pela morte de Mila fez com que o escritor utilizasse essa escrita para (re)pensar a sua própria história. Como a memória não segue linha reta, as recordações apresentadas pelo narrador são marcadas por um percurso ziguezagueante entre o tempo presente (do recebimento do envelope) e do passado (recordações das histórias com seu pai).
Essa escrita apresenta ao leitor um painel histórico desde os anos 1930 até os anos 1990. Vemos um Rio de Janeiro com as tranquilas ruas do bairro do Caju antes da barulhenta e poluída Avenida Brasil; um rural bairro do Lins de Vasconcelos diferente da posterior urbanização desordenada. O olhar de um Cony cronista associa o fim do Rio antigo ao pai, vendo agora despontar uma cidade larga, vertical e impessoal. Um dos pontos altos do enredo é acompanhar as transformações da imprensa brasileira, já que pai e filho eram jornalistas. Há o retrato do jornalismo clássico (com raríssimas máquinas de escrever) ao moderno (com novas máquinas gráficas). Essa modernização da imprensa e a demissão de trabalhadores antigos é exemplificada no livro no caso do crítico teatral Mário Flores. Depois de quarenta anos de jornalismo, Flores foi descartado como uma mobília antiga que deveria ceder o lugar a algo mais moderno, apresentando, assim, um relato triste da exclusão de figuras históricas em prol da modernização.
Quase memória nos remete à oralidade dos contadores de histórias, pois o narrador compartilha suas histórias de vida com os leitores. Se fecharmos os olhos, podemos imaginar essa contação de histórias ao redor de uma fogueira, face a face com o narrador, mobilizando todos os sentidos: o olhar acompanhando os momentos de tensão, a voz traduzida em risadas, o tato em um aplauso, a audição atenta a cada palavra, o paladar engolindo seco algumas palavras. Histórias poéticas como a do balão de Santo Antônio que o jovem Cony nunca soltou, ou daquele balão que seu pai soltou e retornou milagrosamente ao quintal da família são carregadas de metáforas. Cony filho, assim como seu pai, é um grande fabulador, pois a partir de um acontecimento real acrescentava elementos ficcionais. Cony pai gostava de variar os relatos de um mesmo episódio acrescentando e excluindo personagens, mudando a cronologia dos acontecimentos, modificando os locais, inventando finais. E seu filho seguiu, como fica evidente nessa narrativa, o legado de narrar as histórias com a ousadia de recriar os relatos ao sabor de sua imaginação.
Um ponto interessante é que essas histórias não romantizam a relação com seu pai. Pelo contrário, expõem ressentimentos e tensões nesse relacionamento. O pai tinha o seguinte lema na vida: “Amanhã farei grandes coisas”. Cony pai sempre cismava em pôr em prática algum grande projeto e o concretizava sem se importar com o impacto na vida dos outros. Desde criar tintas de caneta, fabricar perfumes caseiros, criar galinha ou até um réptil, seu filho era sempre convocado para ser sua primeira plateia. Essas ideias mirabolantes causavam um misto de orgulho e frustração em seu filho. Seu genitor também lhe causava vergonha, por exemplo, por seu tique nervoso de balançar seu braço direito descontroladamente. Essa paradoxal figura representava um pai inquieto, cúmplice, distante, egoísta, alegre, espaçoso. A dificuldade em entender essa personalidade se traduziu na escrita dessa obra.
No enredo, um padrão fica claro para o leitor: a interação com o embrulho, no tempo presente, é intercalada com flashbacks. No transcorrer do texto, essa estrutura narrativa torna-se repetitiva e cansativa. É nítida também a associação com as madeleines proustianas (“Em busca do tempo perdido”) quando o contato com um objeto desencadeia lembranças do passado. No capítulo 13, o escritor revela que o leitor poderia identificar uma “referência, associação com o escritor francês”. Cony, então, argumenta que não há semelhança do embrulho com as madeleines, pois, no seu enredo, não existe uma busca de um passado perdido, mas de “um tempo desperdiçado”. Entretanto, ao lermos a obra, a comparação com Proust é inevitável.
Para além disso, merece destaque o apagamento da mãe do narrador. A figura materna fica relegada a um segundo plano, atitude essa também praticada por seu pai. Mesmo sofrendo com os projetos do marido, sua mãe nunca obteve um olhar empático que entendesse o quanto isso a afetava. Sua mãe sofreu um silenciamento enquanto seu pai foi posto em holofotes. Muitos veem em Quase memória um livro onde homens relegam às mulheres apenas um papel doméstico, retirando-lhes a voz. Sua mãe, mesmo em um texto memorialístico sobre o pai, merecia um outro lugar nessa história.
Se pensamos na estética da obra, abriu-se uma nova dimensão, pois Cony a definiu por meio do que intitulou teoria do “Quase”. É um “quase romance”, porque oscila entre o romance, a crônica, a reportagem, a biografia, o conto. Há um hibridismo caracterizado pelo cruzamento de diferentes gêneros textuais e uma “quase-memória” (autoficção), ao cruzar autobiografia com a ficção. Esse rompimento com categorias fixas é uma das marcas do romance pós-moderno.
Concluindo, observa-se a relevância de Quase memória à contemporaneidade. Ler essa obra é estar diante de elementos modernos e tradicionais. No primeiro, no que se refere à forma, é uma obra híbrida, com uma classificação plural. No segundo, há o resgate da oralidade na contação de histórias. Com a tradição e modernidade, quase nos vemos, nesse quase romance, diante do próprio narrador, ouvindo-o atentamente contar sua vida diante de nossos atentos olhos.
Para saber mais
BUNGART, Neto (2016). Quase autoficção: o embrulho misterioso como legado do pai na obra de Carlos Heitor Cony. Revista Criação & Crítica, São Paulo, n.17, p. 119-131. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/120781. Acesso em:
Caderno de Literatura Brasileira: Carlos Heitor Cony (2001), São Paulo: Editora Instituto Moreira Salles, n.12. Disponível em: https://blogdoims.com.br/cony-por-inteiro/. Acesso em:
CONY, Carlos Heitor (2017). O Ventre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
CONY, Carlos Heitor (2021). Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
CONY, Carlos Heitor (2020). Pilatos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
CONY, Carlos Heitor (1995). Mila. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/04/opiniao/5.html
ERNAUX, Annie (2021). O lugar. São Paulo: Fósforo Editora.
KAFKA, Franz (1997). Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras.
NIGOZI, Chimamanda (2021). Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das letras.
PROUST, Marcel (2004). Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro.
QUASE memória (2018). Direção Ruy Guerra. Produção: Globo Filmes, Kinossaurus Filmes. Brasil: Pandora Filmes (95 min).
RODRIGUES, Fernanda Carvalho dos Santos (2011). Rastros em Quase Memória, de Carlos Heitor Cony. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul.
SILVA, Camile Antunes da (2021). O embrulho como metáfora em Quase memória. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, Santa Catarina.
Iconografia