BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como cães. Rio de Janeiro: Nordica, 1975.
Rafael Bonavina
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel
Francisco de Assis Almeida Brasil (Parnaíba, PI, 1929 – Teresina, PI, 2021) foi um escritor que chegou a publicar mais de cem livros de diversos gêneros literários, desde romances e coletâneas de poesia contemporânea até histórias infanto-juvenis e livros paradidáticos. Além dessa produção ficcional, Assis Brasil também se dedicou à crítica literária em periódicos como O cruzeiro e Correio da manhã.
Em 1975 foi publicado Os que bebem como cães, romance que aborda o tema do encarceramento e da tortura sofrida por presos políticos durante a Ditadura Militar (1964-1985). Ao tratar desse assunto, Assis Brasil toca em uma das feridas de nossa história mais recente, apresentando a violência ocorrida na época dentro de um presídio. Atente-se ao fato de que a obra foi publicada em pleno período ditatorial e ainda recebeu o Prêmio Walmap no mesmo ano, o que soa um tanto irônico tendo em conta sua crítica ao regime.
O primeiro ponto interessante, e que condiciona toda a obra, é que o romance aborda o encarceramento de uma perspectiva profundamente subjetiva, psicológica e individualizada. Nesse aspecto, apesar de ter usado um narrador majoritariamente em terceira pessoa, o que implica um certo distanciamento, a narrativa se mostra intrinsecamente inseparável de seu protagonista. Como o personagem principal começa a história em um estado de profunda dissociação e amnésia, a narrativa ganha um tom de incerteza kafkiana, em que o sujeito se vê preso sem saber o porquê, inclusive sobre seu próprio passado, pois esse foi todo reprimido e apagado pelos abusos e torturas dos carcereiros.
Um dos problemas dessa relação intrínseca entre a subjetividade do encarcerado e a narração em terceira pessoa é a falta de percepção temporal, causada em parte pela reclusão em uma cela solitária, em que não há qualquer forma de mensurar o tempo nem mesmo por alguma réstia de luz solar. Em um primeiro momento, seria possível supor que a rotina rígida de um cárcere traria alguma forma de acompanhar a passagem dos dias, por exemplo, na hora das refeições, do banho, dos exercícios ao sol etc. Não é o caso. Os prisioneiros representados no romance não têm quaisquer direitos humanos básicos, como alimentação adequada ou mesmo acesso a uma privada, sendo obrigados a fazerem suas necessidades em suas próprias roupas. Para piorar o estado de profunda degradação, segundo supõe o protagonista, eles só têm direito ao banho em uma frequência muito reduzida e, também, incerta. A irregularidade da rotina é uma das formas de tortura implementada pelos carcereiros, visto que não permite que suas vítimas possam criar uma noção de regularidade e, consequentemente, uma sensação de estabilidade.
Como se sabe, o romance moderno tem como uma de suas características fundamentais a sua relação com o tempo, seja ele psicológico ou cronológico, porém essa experiência vertiginosa de semiatemporalidade ou de temporalidade relativamente cíclica encontrada em Os que bebem como cães rompe com esse elemento romanesco e cria uma instabilidade na estrutura da obra. Do ponto de vista estético, isso é resolvido por meio da organização do livro não em capítulos, o que pressuporia uma noção de desenvolvimento temporal, mas em espaços onde ocorrem a ação da trama e que se alternam ao nomear as duas seções do livro: “A cela” e “O pátio”.
Em “A cela”, o personagem é representado em reclusão. Os carcereiros algemam as mãos dele atrás das costas e o jogam dentro da sua solitária. Por ter as mãos imobilizadas, as ações mais simples se tornam impossíveis ou verdadeiros desafios, como a alimentação. Para conseguir comer a sopa pastosa trazida pelos carcereiros, o personagem precisa mergulhar o rosto na tigela para bebê-la, ato frequentemente comparado à alimentação canina ao longo do romance. Essa situação degradante em que o protagonista é obrigado a viver o faz mergulhar nas suas próprias experiências corporal e psíquica, ambas cheias de dor, confusão e incerteza. No plano discursivo, essas características se refletem com maior potência no fluxo de consciência, que, em alguns momentos, sobrepõe passado e presente, memórias de infância e cenas dentro da prisão.
De tempos em tempos, os prisioneiros são levados para se lavar no pátio do presídio, local que dá nome a outra das seções do romance. Em uma perspectiva estilística, os excertos de “O pátio” são muito diferentes dos que se centram na cela. Em primeiro lugar, o narrador se afasta da experiência psíquica do seu protagonista, o que dá à narrativa um tom mais visual no qual predominam as descrições dos elementos da cena, como outros prisioneiros, os guardas, o céu etc. Os demais sentidos também colaboram para compor um quadro de estímulos sensoriais do personagem, como o alívio sentido pela água gelada na pele ou de bebê-la depois de tanto tempo sedento, o prazer de se limpar e livrar-se do cheiro acumulado de fezes e urina etc. Esse breve respiro é logo interrompido pelos guardas, que levam os prisioneiros de volta às celas.
Esses dois espaços por vezes são entrecortados por uma terceira seção denominada de “O grito”, que, para ser compreendida, demanda uma breve explicação sobre a rotina dos prisioneiros. Quando os encarcerados são retirados das celas, além das mãos algemadas, suas bocas são tapadas com fitas adesivas para evitar que falem durante o percurso até o pátio. Pouco antes do banho, essas são removidas para que eles possam beber a água das torneiras, mas, logo depois da limpeza, são recolocadas. Entre esses dois momentos, os presos estão todos juntos, sem mordaças ou algemas, e, nesse breve instante, alguns dos personagens lançam gritos com palavras desconexas, nomes e grunhidos incompreensíveis. Essa é uma das poucas formas encontradas por eles para reafirmarem uma parte de sua liberdade e a resistência à desumanização que lhes é imposta. A princípio não são evidentes os efeitos desses gritos, mas é por meio deles que o protagonista começa a resgatar sua própria individualidade. Dessa maneira, ele se reconecta com seu passado e recupera sua história, que havia sido apagada pela tortura física e psicológica.
A partir de seus primeiros contatos com sua própria história, o protagonista decide se juntar ao coro de gritos, mas não consegue pensar em nada específico do seu passado, sendo apenas capaz de soltar um gemido animalesco. Com o passar do tempo e a recorrência dessa prática, ele recupera certa autoconsciência e, em dado momento, essa percepção salta para o plano narrativo: “Se ao menos pudesse pensar no passado. No seu passado. Mas tudo parecia estar em branco para trás – onde terá ficado a mulher que é a minha mãe? Os homens no pátio gritavam pela sua mãe, por um nome querido, e eu não pude gritar por nome algum. Por quê?”. Durante essa confusão e dúvida, o personagem principal passa a falar com sua voz, sem a mediação de um narrador em terceira pessoa, o que simboliza estilisticamente uma tomada de consciência de si.
Como era de se esperar, os guardas não ficavam parados apenas ouvindo os gritos dos prisioneiros. Rapidamente se mobilizavam para amordaçar os encarcerados que gritavam, realizando tal ação com especial violência. Diante da falta de resultado na repressão desse último resquício de resistência, as represálias crescem exponencialmente, passando do amordaçamento mais violento para a retirada da alimentação, já tão miserável, e eventualmente chegando à violência física.
Como o próprio narrador aponta, o grito traz lembranças e dá força para os prisioneiros, uma espécie de apoio mútuo, por isso os carcereiros não gostam da prática e chegam mesmo a temê-la, mas isso não parece resumir toda a questão. Surge, então, uma pergunta: o que poderia incomodar tanto os guardas? Por certa perspectiva, isso não se daria apenas pela consciência do relativo fracasso de todas as torturas corporais e psíquicas em subjugar os condenados, mas pelo súbito estranhamento causado pela cena. Em outras palavras, ao presenciarem diversos adultos gritando por suas mães e esposas, falando palavras de ordem ou mesmo clamando por Deus, seria muito difícil que os guardas não fossem abatidos por uma súbita, ainda que discreta, humanização daquelas figuras até então fantasmagóricas e reificadas. A consciência do absurdo daquela cena seria, nessa leitura, uma espécie de crise moral que precisava ser evitada a todo custo, seja por meio das mordaças, ameaças, castigos físicos e, em último caso, o extermínio.
Os que bebem como cães é uma obra interessante tanto pelo seu caráter crítico em relação aos problemas de seu tempo quanto pela profusão de elementos estéticos inovadores, em alguma medida, como a intrincada relação entre a experiência subjetiva do encarceramento e a própria linguagem da narrativa; a ruptura com o romance tradicional e sua temporalidade linear. Outro ponto interessante é a existência de certa recursividade na descrição, ainda que discreta, da reação dos guardas à humanização dos encarcerados; isto é, os próprios guardas temem os encarcerados, o que se afasta bastante de um modelo muito comum e maniqueísta de representação do tema central do livro.
Para saber mais
CARVALHO, Ederson Dias de (2021). O espaço ficcional em Os que bebem como os cães, de Assis Brasil: um estudo sobre a topoanálise. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Piauí, Teresina.
FONTINELES, Cláudia Cristina da Silva; FONTINELES FILHO, Pedro Pio (2020). Resistência às mordaças: história e luta contra a opressão na literatura de Assis Brasil. Topoi, Rio de Janeiro, v. 21, n. 43, p. 45-67, abr. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2237-101×02104303. Acesso em: 24 nov. 2023.
SOUSA, Caio Henrique Medeiros; FROTA, Wander Nunes (2021). Os que bebem como os cães (1975), de Assis Brasil, diante da defesa dos direitos humanos no século XXI. Scripta Alumni Curitiba, Paraná, v. 24, n. 1, p. 59-76, jan-jun. Disponível em: https://revista.uniandrade.br/index.php/ScriptaAlumni/article/view/1973. Acesso em: 13 abr. 2025.
Iconografia