ALMEIDA JÚNIOR, José. O homem que odiava Machado de Assis. São Paulo: Faro, 2019.
Samara Lima
Ilustração: Daniela Versiani
O escritor José Almeida Júnior (Mossoró, RN, 1983), atualmente Defensor Público do Distrito Federal, tem se destacado no campo literário com seus romances que buscam fazer da História um cenário para o exercício da ficção. No seu primeiro livro, Última hora (2017), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2017, o autor apresenta o Brasil do início da década de 1950 para narrar o conflito entre Carlos Lacerda e Samuel Wainer, tendo como protagonista o jornalista Marcos, torturado na ditadura. Esse imbróglio é revisitado no seu último lançamento, Bebida amarga (2022), que aborda as divergências políticas e conflitos familiares entre pai e filho durante a ditadura militar.
O homem que odiava Machado de Assis é o segundo livro do autor, publicado em 2019 pela Faro Editorial. Ambientado em São Paulo, Portugal e Rio de Janeiro, no século XIX, é narrado em primeira pessoa por Pedro Junqueira. A história começa com o velório de Machado de Assis, onde Junqueira, profundamente amargurado, analisa a cerimônia da Taverna do Ferreira, localizada a poucos metros de distância do local. Ele se surpreende com a consternação geral — Mário de Alencar, por exemplo, “estava aos prantos”, enquanto José Veríssimo tentava consolá-lo — diante da morte de quem ele considera um sujeito leviano, que construiu sua reputação “à base de fraude e de bajulações” (Almeida Júnior, 2019). Outra figura que também não entende a reverência das pessoas ao intelectual é Silvio Romero, que logo se junta ao personagem inflando seus comentários ácidos sobre o enterro e incentivando-o a escrever um livro de memórias, a fim de revelar a verdade que poucos conhecem sobre o autor brasileiro. O livro que o leitor tem em mãos é, então, uma espécie de autobiografia de Junqueira.
No decorrer dos 33 capítulos, percebe-se que o protagonista tem muito a dizer sobre Machado. A rivalidade entre os dois personagens começa na infância, quando Pedro precisa mudar-se de São Paulo, órfão aos seis anos após a morte da mãe. Seu pai, um importante cafeicultor e proprietário de escravizados, um sujeito alienado das obrigações parentais, resolve enviá-lo para morar com a tia, Dona Maria José, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. É nessa chácara que o garoto conhece Joaquim e Joana, ambos negros e agregados. Conforme a convivência se instala, as intrigas entre eles se intensificam, principalmente quando os dois se apaixonam pela mesma garota.
Quando Dona Maria José morre, Junqueira é enviado para estudar em um colégio interno. Posteriormente, ele viaja para Portugal para estudar Direito e lá se relaciona brevemente com uma mulher chamada Carolina Novais. Após anos sem ter notícias de Joana e Joaquim, que, em plena ascensão literária, passa a ser conhecido por seu sobrenome, Machado de Assis, Junqueira retorna ao Brasil e reencontra o antigo conhecido de infância, agora casado com Carolina. Esse reencontro reaviva a tensão entre ambos e dá contornos diferentes ao antigo ódio.
Mas o conflito entre os dois não se encerra no campo amoroso. Em um determinado momento da história, o narrador comenta que Machado de Assis plagiou sua “ideia de escrever um romance com um autor defunto que narraria sua vida sem pudores” (Almeida Júnior, 2019). Junqueira, que quer publicar um romance e acredita ser superior a Machado, ao mesmo tempo que fracassa na carreira política, sente-se mais uma vez injustiçado.
Em uma entrevista para o canal Conversa Literária, José Almeida aponta a consonância do seu livro com as obras, contos e crônicas de Machado de Assis. A personagem sedutora Joana é inspirada em Capitu, assim como o triângulo amoroso entre Carolina, Machado e Pedro evoca o conflito do livro Dom Casmurro. Pedro tem uma trajetória pessoal semelhante à de Brás Cubas, uma vez que pertence à aristocracia, estudou em Coimbra, e é um fracassado na profissão e em seus relacionamentos amorosos. Quanto à descrição do Morro do Livramento, o autor afirma que foi retirada do romance Casa Velha.
Junto a essas alusões, a narrativa incorpora diversos dados biográficos de Machado de Assis: a morte de sua irmã aos 4 anos de idade, devido ao sarampo; a referência a seus trabalhos para os jornais, como A Marmota e O Diário Oficial, como colaborador de poemas, crônicas e críticas; a menção à publicação de livros do escritor, como Ressurreição, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro; sua condição de gago e epiléptico; seu relacionamento com a portuguesa Carolina Novais; o conflito com o crítico Sílvio Romero e seus pares, em especial devido à acusação de que “Machado, apesar de mulato, nunca se interessou pela temática” (Almeida Júnior, 2019) abolicionista, e tantos outros acontecimentos facilmente verificáveis que compõem a biografia do escritor.
No que diz respeito à questão racial de Machado, o próprio personagem escritor responde às queixas afirmando que combate a abolição à sua maneira: “A mesquinhez da escravidão está em meus romances, em meus contos e minhas crônicas. Quem tem o mínimo de perspicácia consegue ver isso” (Almeida Júnior, 2019). Pensando na figura civil de Machado, não se pode esquecer o trabalho de diversos pesquisadores, como Eduardo de Assis Duarte, na tentativa de mostrar como o Bruxo do Cosme Velho, em suas produções, dribla os pensamentos consagrados no país, no período em que vivia, para desenhar as mazelas da sociedade oitocentista. Assim, o livro também dialoga com a releitura da crítica sobre a relação de Machado de Assis com sua etnia, não apenas narrativamente, mas também a partir da imagem que figura na capa do livro, a mesma utilizada pela campanha “Machado de Assis Real”, que ao restaurar a negritude do autor, combate o processo de embranquecimento de sua imagem.
José Almeida aproveita o ressentimento de seu protagonista, que transforma Machado de Assis em um anti-herói, para retraçar a biografia do escritor. Nesse sentido, um dos valores do livro é justamente conseguir transformar o autor real em personagem de ficção, mesclando dados biográficos de Machado, características de suas obras e recursos literários, como o humor e a ironia. Além disso, o livro incorpora eventos e figuras literárias importantes do século XIX para conduzir o enredo.
Alguns anos antes, Silviano Santiago também havia explorado a conjunção entre ficção e biografia em seu romance Machado (2016). Diferentemente do romance de Almeida, Santiago aposta em um embaralhamento maior das fronteiras entre literatura e vida, projetando-se também na narrativa e investindo em digressões críticas sobre a obra do escritor. A comparação serve para realçar a habilidade de Almeida com o manejo dos dados biográficos e dos fatos históricos e a maneira como mescla ambos a certos traços da poética machadiana para valorizar a ficção, construída com base nas memórias de Junqueira. Embora Almeida utilize a pesquisa sobre o passado para colher material para suas narrativas, ele tenta dar vida e sentido novos e diferentes a esse mesmo passado.
Para saber mais
ALMEIDA JÚNIOR, José (2017). Conversa Literária. [Entrevista concedida a] Darwin Oliveira. Fortaleza, 17 set 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=klo8u138_EE. Acesso em: 12 jul. 2024.
ALMEIDA JÚNIOR, José (2019). Entrevista com o romancista histórico José Almeida Junior, autor dos romances Última hora e O homem que odiava Machado de Assis. Encontro na Livraria Cultura – Casa Shopping – Brasília – DF, no dia 25 de junho de 2019. Concedida ao pesquisador Cristiano Mello de Oliveira (Doutor em Literatura Brasileira – UFSC). Rascunhos Culturais, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Coxim, v. 1, n. 1, p. 134-146.
ESTEVES, Antônio Roberto (2008). Considerações sobre o Romance Histórico (no Brasil, no limiar do século XXI). Revista de Literatura, História e Memória, Narrativas de Extração Histórica, Cascavel, v. 4, n. 4, p. 53-66.
SANTIAGO, Silviano (2016). Machado. São Paulo: Companhia das Letras.
Iconografia