Ir para o conteúdo

O corpo interminável

LAGE, Claudia. O corpo interminável. Rio de Janeiro: Record, 2019.

Lua Gill da Cruz
Ilustração: Mariângela Albuquerque

Quem foram as mulheres que se opuseram à ditadura militar brasileira? Conforme define Daniele Tega (2012), havia uma dupla transgressão na atuação das mulheres: além da resistência à própria opressão, a condição da mulher nos anos de 1960 remetia a uma criação para “a virgindade, o casamento monogâmico indissolúvel, a maternidade e os cuidados com a família e para a passividade e o silêncio” (Tega, 2012), mas, ao adentrar o campo da esquerda e da luta armada, passam a recusar-se ao anteriormente imposto, ou seja, ao conservadorismo moral e ao patriarcado. Sua participação, nesse sentido, representava uma ruptura com o que era esperado de sujeitos que eram, até então, restritos ao espaço privado e doméstico. Nesse sentido, de que forma essa resistência foi representada na literatura? Quais são as possibilidades de inscrição de tal experiência histórica a partir de outra e de uma própria perspectiva? Opondo-se a um testemunho falocêntrico, pode-se dizer que há uma preocupação na literatura contemporânea em pensar a escrita como inscrição pública de histórias ainda desconhecidas. Esse é o caso do romance O corpo interminável (2019), de Claudia Lage (Rio de Janeiro, RJ, 1970).

O corpo interminável trata de uma série de fios narrativos de histórias de mulheres cujos corpos e vivências foram atravessados pela ditadura militar brasileira de muitas formas. A partir de uma prosa fragmentária, inconclusa e que mistura uma série de temporalidades, o texto é invadido por corpos de mulheres que se tornam o seu centro, ao mesmo tempo que escapam. O romance lida com as cicatrizes, dores, fraturas desses corpos, assim como com suas potencialidades. São corpos-maternos, corpos-memória, corpos-ruína, corpos-tempo, corpos-luta, corpos-luto, corpos-torturados, corpos-resistência. Em suma, os corpos que se encenam são corpos de mulheres feitos de muitos traçados e muitas histórias. É também no corpo do texto que se forçam essas mulheres, que se recuperam esses corpos antes esquecidos, que não chegaram até o presente da narrativa.

Se inicialmente o leitor busca uma correlação dessas histórias entre si ou com o fio narrativo principal − a relação entre os personagens Daniel e Melina, sobre a qual se retomará −, aos poucos os contatos se desfazem na medida em que as histórias se desenrolam. Não há interesse em esclarecer quem são e/ou quem foram essas mulheres e suas histórias. Não se distingue exatamente o que aconteceu a cada uma delas, dado que se constituem como esses “corpos intermináveis” (Tega, 2012), plurais, que simbolizam, de muitas formas, o reconhecimento de que essas histórias poderiam ser de muitas e tantas mulheres que passaram pela violência de Estado e pela violência de gênero, correlacionadas, inclusive.

O tempo que o romance mobiliza também torna de difícil apreensão as suas diferentes temporalidades. Em uma espécie de sensação de eterno presente, constrói-se uma certa linguagem imagética que não permite que se tenha uma noção exata de quando se trata. No caso das personagens, não se conhece seus passados e tampouco seus futuros, em grande parte interrompidos, impedidos, negados e/ou não contados, agora. São recortes de suas histórias, amostras das suas potências, das temporalidades em que foram e existiram esses corpos. Enquanto guerrilheiras, as personagens das mulheres de Lage são retratadas como sujeitos com agência própria, não fundamentadas nas definições e nos projetos políticos masculinos. A violência que sofrem é uma violência diretamente relacionada ao seu gênero: seja pelos militares, seja no interior da família ou até mesmo no espaço da militância.

Já o fio narrativo principal segue a história de Daniel, filho de uma desaparecida política, e de Melina, que, descobre-se ao longo da narrativa, é filha de um fotógrafo da conhecida Casa da Morte, em Petrópolis, e o encontro dos dois. Os efeitos dos segredos e das violências da ditadura penetram as histórias de ambos, suas relações familiares e a forma como se encontram e se relacionam amorosamente no presente. Com o fardo de uma transmissão que não acontece exatamente, são personagens que simbolizam a ausência de uma política de memória e de justiça no contexto brasileiro, tanto para as vítimas quanto para os perpetradores.

Daniel foi criado pelo avô e pela vizinha, Dona Jandira, e cresce sabendo muito pouco sobre a sua mãe e sobre o contexto do seu desaparecimento. Busca incansavelmente por quaisquer informações que possa encontrar sobre ela em itens que o avô esconde dele, ou pelos traços e rastros apagados no quarto que antes era ocupado pela mãe e agora por ele. A única recuperação a que tem acesso é uma foto da mãe e do seu livro rabiscado, Alice no país das maravilhas, aos quais se apega fortemente na tentativa de criar uma identidade própria para uma pessoa da qual nada sabe. O avô não consegue dizer quem foi a mãe nem o que aconteceu, mas deixa que o menino “saiba” ou “perceba” pelo que não diz, seja pela fotografia, seja pelo acesso a notícias de televisão, por exemplo.

Posteriormente, com o surgimento da personagem Olívia – irmã que Daniel não sabia ainda ter e que aparece depois da morte do pai, que também não conhecia –, alguns poucos fios sobre a história dos genitores são recuperados. Olívia também teve uma infância cercada por silêncios, apesar da percepção dos sintomas da dor do pai, mas agora, depois da sua morte, recupera traços dessa história em objetos, cartas e fotografias. Desenvolve também uma relação com o irmão que foi impedida, seja pelo pai, seja pelo avô de Daniel. É nesse processo de deslocamento até a figura do pai que Daniel também busca por outros indícios, ou restos, da própria história e da mãe. A preocupação de Daniel também se centra no que ficará – e passará – dessa história traumática para o filho ou filha que terá com Melina, agora grávida. O texto também explora o processo da escrita, em exercícios de metaficção que tentam dar sentido ao passado, ao presente e a uma possibilidade de futuro.

Já Melina se aproxima de Daniel e de sua história sem imaginar (ou reconhecer) qualquer relação própria com o período histórico. A princípio, via nisso um motivo de diferença entre a história dos dois, já que os pais teriam vivido “alheios a esse tempo”, o que tornava “insuportável pensar que minha mãe havia vivido aquilo. Que os seus pais haviam ignorado tudo aquilo” (Tega, 2012). Seu contato, acompanhado pela tarefa obsessiva de ambos em compreender a ditadura que os une, se deu, inicialmente, a partir da leitura de outras mídias: documentários, livros, acesso a testemunhos. Nesse processo, entretanto, há aspectos dessa história que ela não reconhece imediatamente e que a assusta, uma espécie de lembrança apagada que tenta recuperar e que escorre pelas suas mãos.

Melina é uma personagem, nesse sentido, que busca reconstruir ativamente as memórias apagadas sobre o pai e sobre a separação dele com a mãe, ainda que essa busca esteja sempre relacionada com o medo ou a repulsa. Essa procura é mediada, especialmente, pela relação com a fotografia. A primeira foto recebida mostra um corpo nu estirado numa cama, os olhos abertos, com uma força assombrosa. A partir do relato de Melina ao narrador Daniel, a fotografia retorna. Cansada do peso de carregá-la sozinha, Melina decide confrontar o pai ao visitá-lo em uma casa para idosos, portando a foto e questionando sobre o que se trata, ao que ele responde balbuciando apenas: “[q]ue horrível”. Depois do aparente não reconhecimento, Melina decide ir embora, quando o pai pergunta: “estava nas coisas da sua mãe?” (Tega, 2012).

É depois da morte da mãe, entretanto, quando só sobravam lembranças ou restos, que a narração se desloca para responder à pergunta do pai. Foi quando Melina acolheu os pertences da mãe que encontrou as fotografias; agora se sabe: “estava, sim, nas coisas, nas tralhas, nas inutilidades, no bilhete de separação: outras fotos de pessoas mortas. Homens, mulheres. Todos nus. Por que nus?” (Tega, 2012). Junto das coisas da mãe havia ainda “um certificado de curso de fotografia do exército, o nome do pai como aluno” (id., ibid.). É também a partir da fotografia que Melina, já criança, teria percebido – e deixado perceber à mãe – o papel do pai na, posteriormente conhecida, Casa da Morte, em Petrópolis, perto da qual a família tinha uma propriedade: na época, apenas uma casa branca, silenciosa, limpa, que marcava a passagem do tempo, agora dotada de novos atributos, novos sentidos.

Após décadas, o endereço se revela, reconstituindo-se na memória a partir do que se sabe no presente, mas contaminado por novas informações. No deslocamento ao lugar, Melina desloca também o tempo e a memória, mas principalmente a percepção entre ser menina e mulher. O reconhecimento retrospectivo dessas violências, entretanto, não só joga luz na relação dos pais com a ditadura, no caso de ambos os personagens, mas em todo um passado (e presente) violento construído no ambiente familiar. No romance, as genealogias violentas associam-se ainda mais com as genealogias violentas históricas brasileiras. O que o texto mostra é que os personagens não podem efetivamente furtar-se de encará-las, porque continua gerando efeitos nas vivências do agora.

Para saber mais

BRAZ, Cleidson Frisso (2023). Memória e testemunho: do que e por que riem as presas torturadas pela ditadura militar no romance “O corpo interminável”, de Claudia Lage. Cadernos do IL, n. 64, p. 37-58. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/cadernosdoil/article/view/127859. Acesso em: 14 nov. 2023.

CRUZ, Lua Gill da (2021). Pretéritos futuros: ditadura militar na literatura do século XXI. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1642099. Acesso em: 14 nov. 2023.

SILVA, Carlos Wender Sousa (2020). Claudia Lage – O corpo interminável. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 61, p. 1-4. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2316-40186117. Acesso em: 14 nov. 2023.

TEGA, Danielle (2012). Memórias da militância: reconstruções da resistência política feminina à ditadura civil-militar brasileira. Revista Estudos de Sociologia, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, v. 17, n. 32, p. 123-147.

Iconografia

Tags:

Como citar:

CRUZ, Lua Gill da.
O corpo interminável.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

13 abr. 2025.

Disponível em:

4760.

Acessado em:

19 maio. 2025.