TORRES, Antônio. Meu querido canibal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Rita Olivieri-Godet
Ilustração: Pamela Araújo
Meu querido canibal, de Antônio Torres (Sátiro Dias, BA, 1940), alimenta-se do debate em torno dos conflitos entre europeus e povos originários que habitavam o território atual da Baía de Guanabara e de seus arredores no século XVI. O romance aborda a construção de uma memória nacional excludente por meio de um diálogo intenso com os discursos históricos marcados por uma visão etnocêntrica.
“Meu livro é uma canibalização da história e da literatura” (Antônio Torres, Zero Hora), afirma o autor, recorrendo a uma fórmula concisa para caracterizar a complexa fatura do seu premiado romance, vencedor do prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura em 2001, canibalização essa no sentido oswaldiano da antropofagia. No entanto, é também uma espécie de relato-testemunho do tempo presente. A amplitude temporal favorece a discussão das consequências dramáticas do etnocentrismo das classes hegemônicas e das formas de violência que moldam o passado e o presente da nação. Centrada na construção imaginária do indígena como figura do outro, a obra assume escancaradamente um ponto de vista solidário a favor da luta de resistência travada pelos povos originários.
A trama de Meu querido canibal alimenta-se do embate que se trava entre o modelo hegemônico da sociedade ocidental e as formas de organização complexas dos povos indígenas, habitantes do território antes da chegada dos colonizadores europeus, região geográfica que “já vinha fazendo história”, como observou algures Ailton Krenak. Publicado no ano 2000, que no Brasil se reveste de uma dupla carga simbólica junto às comemorações dos 500 anos da “descoberta”, a obra de Torres participa da ampla reflexão que se instaura sobre o percurso histórico da nação brasileira, ancorada na revisitação da história do Rio de Janeiro. A obra alia-se a outros textos e depoimentos que buscam dar visibilidade à presença e à diversidade das culturas indígenas na contemporaneidade, denunciando o fato de o contato entre essas culturas diversas e a sociedade brasileira continuar acontecendo com base no desconhecimento e na incompreensão.
Meu querido canibal já anuncia no próprio título o envolvimento afetivo e a parcialidade do narrador na construção do personagem Cunhambebe. A obra é estruturada em três partes, de temporalidades diversas. A primeira parte, “O canibal e os cristãos”, coloca em cena o líder indígena da nação Tupinambá que habitava a região de Angra dos Reis em 1555. Os franceses tinham como objetivo a construção da França Antártica sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon. A narrativa retoma acontecimentos comuns à história francesa e brasileira, chamando a atenção para os limites da reconstrução dos fatos históricos como sublinha o uso recorrente da palavra “presumivelmente”. Coloca sob suspeição a veracidade do discurso ocidental hegemônico, responsável pelo confisco da história dos povos indígenas. O modo de narrar resulta a um só tempo do material de que o narrador-autor-historiador-antropólogo-sociólogo dispõe após ter realizado um amplo trabalho de pesquisa e da capacidade de criar e imaginar histórias, articulando o real e o inventado.
No choque entre concepções de mundo que lidam com categorias e tradições diversas do conhecimento e de sua transmissão, a perspectiva ocidental dominante legitima a sua versão por meio da história escrita. Esse tipo de manipulação da memória do passado constitui uma das motivações que conduzem Antônio Torres a escrever o romance: “quando bati os olhos num verbete que definia o Cunhambebe como ‘o selvagem na sua expressão mais repelente’, fiquei tentado a tratá-lo como um herói, porque era assim que o seu povo o via” (Antônio Torres, entrevista). Ao transformar Cunhambebe no herói da narrativa, o narrador adota ironicamente a dicotomia do bom e do mal selvagem, invertendo o sentido atribuído pelo imaginário europeu. Retoma, portanto, a tradição modernista da exaltação paródica do canibal. A dialética do sério-cômico, tão cara aos modernistas, fundamenta o discurso do narrador antropofágico, que instaura um diálogo polêmico usando referências textuais historiográficas e literárias. O romance estabelece um diálogo intenso com as narrativas de viagem de André Thevet, Jean de Léry e Hans Staden, entre outros textos.
Contrapondo-se à omissão ou à deformação da história oficial, a obra denuncia o apagamento do lugar dos povos indígenas na história e na sociedade brasileiras e empreende a construção desse herói marginal num tom polêmico e provocador, transformando Cunhambebe no primeiro herói nacional. A construção do personagem inspira-se numa tradição literária de reaproveitamento dos elementos lendários de heróis míticos da tradição popular, que faz de Cunhambebe um ascendente de Macunaíma e um contemporâneo de Gargântua, personagem do francês François Rabelais. A narrativa evoca suas aventuras e seus atos de bravura, atribuindo-lhe características excepcionais e até mesmo sobre-humanas, identificando-o com seu povo, que o vê como líder e legítimo defensor do território indígena.
A segunda parte, “No princípio Deus se chamava Monan”, transporta o leitor para o tempo mítico das narrativas sobre a criação do mundo, confrontando o livro do Gênesis e a mitologia dos Tupinambás. Investe nos constantes deslocamentos temporais entre o passado e o presente que avivam a consciência de que é sobre as ruínas do povo “mais velho do lugar” que se ergue a Cidade Maravilhosa. Na perspectiva adotada pelo romance, o extermínio dos povos originários atrelado à devoração simbólica de sua memória se impôs como estratégia da empresa colonial e da formação da nação.
Na terceira parte, “Viagem a Angra dos Reis”, o leitor é bruscamente deslocado do labirinto dos textos para o da cidade, confrontado com o real imediato que coincide com “o limiar do sexto século do descobrimento do Brasil”. O narrador não tem mais como objeto primeiro de sua atenção a rede intricada de discursos e contradiscursos na qual ele se perdia escavando o sentido da experiência histórica. O esforço se dá na leitura dos signos da urbanidade, explorando recursos narrativos inovadores “em busca das trilhas perdidas” de Cunhambebe e de seu povo. O espaço é ampliado para fora da cidade, em direção a Angra dos Reis, onde ainda se lê alguns topônimos indígenas, e é só isso: “nenhum índio nas ruas”, constata o narrador-personagem. Finalmente, onde estão os indígenas? A reiteração da pergunta alerta para o apagamento da memória de um povo que fez a história dessa região geográfica e evidencia o seu extermínio: “o tempo apagou-lhes os rastros”.
O romance desmascara o discurso mistificador de formação de uma nação mestiça que encobre a violência e o desequilíbrio do processo de mestiçagem. O mapeamento dos referentes espaciais retrata a prevalência do modelo ocidental na construção da cidade do Rio de Janeiro e da nação. O encontro entre narrador-personagem e indígenas de origem guarani, confinados a uma reserva miserável de difícil acesso torna visível as consequências de uma política indigenista do Estado, que levou ao extermínio e à desterritorialização desses povos. Os tupinambás da região foram exterminados; os indígenas guaranis que se encontram na reserva foram destituídos de seus territórios tradicionais e transplantados para aquela região. Extermínio, desterritorialização, assimilação à sociedade nacional em condições precárias de isolamento e de deslocamento para a periferia do país: eis o presente dos “índios restantes” que emerge da narrativa.
Na perspectiva da obra, a nação brasileira parece não ter tirado proveito das lições do passado; o indígena permanece sendo o estrangeiro de dentro. Meu querido canibal propõe uma interpretação da nação por meio de textos, confrontando-os com dados da realidade e deslocando as formas narrativas do romance histórico tradicional. Ao se reapropriar da história e suscitar uma revisão dos estereótipos atribuídos à população indígena, a narrativa inaugura uma nova memória, trazendo-a para o presente. De sua releitura da nação resta um sentimento de indignação e de frustração em relação a um encontro que ainda não se realizou. Assim procedendo, adere, à sua maneira, à percepção de Ailton Krenak, escritor e um dos líderes da causa indígena no Brasil, sobre as relações interculturais entre os diversos povos indígenas e a sociedade brasileira: “o encontro e o contato entre as nossas culturas e os nossos povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já terminou” (Ailton Krenak,1999).
Para saber mais
KRENAK, Ailton (1999). O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto. A outra margem do Ocidente. São Paulo: Minc-FUNARTE/Companhia das Letras, p. 23-31.
OLIVIERI-GODET, Rita (2010). Entre discursos: literatura e história em Meu querido canibal. In: NOVAES, Cláudio Cledson, SEIDEL, Roberto Henrique. Espaço nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: UEFS Editora, p. 123-139.
STOENESCO, Dominique (2022). Meu querido canibal, alguns pontos e outros contos. In: FONSECA, Aleilton. Antônio Torres: 50 anos de literatura. Itabuna, BA: Mondrongo, p. 278-289.
TORRES, Antônio. A consagração de dois Brasis. Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 2001. Segundo Caderno/Jornada Literária.
Iconografia