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Memorial de Maria Moura

QUEIROZ, Rachel de. Memorial de Maria Moura. São Paulo: Siciliano, 1992.

Ana Cristina Ferreira Carvalho
Ilustração: Liana Timm

Memorial de Maria Moura, publicado em 1992, é um romance de formação escrito por Rachel de Queiroz (Fortaleza, CE, 1910 – Rio de Janeiro, RJ, 2003), também autora de As três Marias (1939) e O quinze (1930), e vencedora do prêmio Camões em 1993. Além disso, a autora cearense foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1977. Com um estilo revolucionário e uma abordagem única das mazelas e riquezas do sertão, o qual ela conhecia profundamente, representou vividamente a experiência feminina da época, em conjunto a outras questões culturais (o cangaço, as relações sociais, as tradições e a linguagem), as quais contribuem consideravelmente para um legado rico à literatura brasileira contemporânea.

O último romance da autora, Memorial de Maria Moura, desenvolve-se no sertão cearense e retrata a história da protagonista desde a adolescência até a fase adulta. Maria enfrentou ao longo dessa trajetória a perda da mãe, o assédio cometido pelo padrasto e a avidez cruel dos primos, que almejavam tomar posse de sua propriedade. É a partir desses acontecimentos que a personagem inicia sua jornada das terras do Limoeiro rumo à Serra dos Padres, espaço no qual a história toma forma.

A história é dividida em três perspectivas principais: as de Maria Moura, de Beato Romano e de Marialva. Além das perspectivas dos primos de Maria Moura, cada ponto de vista reflete as lembranças dos personagens, por esse motivo o título refere-se a um memorial, pois é um relato de memórias. Esses relatos compreendem a situação das mulheres, as disputas por heranças, a religião, o sertão, os amores e a amizade. Rachel de Queiroz, uma das autoras mais importantes para a literatura regionalista, constrói uma narrativa que denuncia as questões sociais e culturais, consequentemente dando enfoque ao interior dos dilemas regionais, à linguagem e ao povo.

O regionalismo é marcado por revolucionar a forma como a produção literária estava sendo publicada no Brasil. Apresenta a realidade do sertão sem adornos, caricaturas ou cortinas, mas uma realidade crua, das individualidades regionais. Com o sertão como pano de fundo, a autora compõe Memorial de Maria Moura, romance que apresenta uma mulher forte, cangaceira e destemida: ” – Agora se acabou a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria Moura, chefe de vcoês, herdeira de uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na Serra dos Padres”. A protagonista rompe com a tradicional imagem da mulher do passado, que costuma ser retratada como submissa aos tabus e aos homens. Maria Moura tem outros objetivos e está determinada a alcançá-los. Ao desafiar esses estereótipos, ela assume um papel cangaceiro, o que era considerado vulgar e até insano, um julgamento comum para mulheres que se libertavam dos paradigmas impostos pela sociedade. Tais julgamentos ainda acontecem na contemporaneidade, especialmente no caso das mulheres do interior, que vivem em comunidades rurais ou cidades pequenas. Essas mulheres enfrentam diariamente os tabus sociais; embora haja um avanço de ideias com as novas gerações, ainda persistem vestígios de ignorância em relação ao papel das mulheres.

Assim, ao longo da história, quando Maria troca seus vestidos pelas roupas do pai já falecido para fugir despercebida dos primos, esse vestuário passa a representar não apenas sua sobrevivência, mas também sua determinação em se adaptar a um ambiente hostil. A mudança nas roupas e no comportamento torna-se, assim, um ato de resistência. Após enfrentar a perda da mãe e de suas terras, Maria encontra no cangaço uma nova liberdade e um senso de pertencimento. A ausência desse pertencimento com o ambiente leva o sujeito a adotar posturas e decisões que, por vezes, confrontam o moralismo e a ética. No comportamento de Maria, o leitor perceberá um anti-heroísmo, visto que a personagem expressa resistência e busca por justiça, embora suas razões sejam muitas vezes desconsideradas pela sociedade em que vive, mas ela não desampara aqueles que compartilham de seu meio social.

Uma outra personagem feminina em evidência é Marialva, que se contrapõe a Maria Moura. Enquanto uma é forte e corajosa, a outra vive sob a influência de dois irmãos e uma cunhada, na espera por uma salvação que a livre desse drama familiar. Marialva vive numa espécie de aprisionamento e não encontra coragem para se libertar. Assim, a voz de Marialva ecoa na realidade de tantas mulheres que são reféns de parentes opressores. São duas personagens diferentes que nos mostram a violência contra as mulheres, não apenas física, mas também verbal e psicológica. A autora denuncia isso trazendo o olhar para a mulher do sertão, que precisa se impor para ser respeitada, está sujeita a julgamentos e precisa seguir certas normas para ser aceita.

Mediante essa perspectiva da mulher e do sertão, Queiroz se destaca na literatura brasileira por retratar a realidade feminina em um ambiente machista e agressivo, em um lugar esquecido, mas que guarda marcas ao longo do tempo. Essa reflexão sobre o aprisionamento feminino contribui para uma análise crítica das dinâmicas sociais e culturais presentes no sertão nordestino.

Além das questões relacionadas à mulher, o livro aborda temas ligados à religiosidade, bastante corriqueiros no interior, não só no passado, mas ainda hoje, onde a fé, os votos aos santos e as tradições dedicadas a eles impulsionam essa região. Por vezes, a gratidão por uma bênção recebida é manifestada por meio da penitência de outra pessoa, ou seja, daquelas que são selecionadas para realizar um desejo que não é delas. A título de exemplo: há mães que almejam que seus filhos ingressem no sacerdócio, situação que não se limita apenas às obras literárias, mas é uma realidade concreta. Desse modo, o filho é comprometido a uma promessa que não lhe pertence, contudo, precisa honrá-la.

Em Memorial de Maria Moura, Beato Romano relata a tristeza que sente desta imposição de escolha. Ao conversar com Dona Joaninha, que deseja que o filho seja padre por conta de uma promessa na hora do parto, o Beato desabafa: “— Minha mãe também fez promessa quando eu nasci; quase toda mãe, nos apertos do parto, faz qualquer promessa — para o filho pagar depois, às vezes à custa da própria vida. Fazem altarzinho de brincadeira para a criança fingir que diz missa. […] Na primeira comunhão, até vestem uma batina branca no infeliz — que, desde essa hora, já se sente comprometido. Ai de mim!”.

Exemplos como este põem o leitor a refletir sobre a forte influência da Igreja Católica na vida das pessoas do interior nordestino. As tradições religiosas permeiam os costumes locais, orientando desde celebrações festivas até normas éticas. A moralidade católica influencia decisões pessoais, moldando relações familiares e determinando padrões de comportamento. Até que ponto a religião deve influenciar as escolhas individuais? As exigências quanto ao comportamento humano exercem uma batalha entre a carne e o espírito, visto que o personagem Beato Romano nos mostra esse embate, relatando suas fraquezas e sua inconformidade com a falta de escolha.

O estilo da autora, de resgatar as memórias, constitui um aspecto fundamental da narrativa, pois a estrutura intercala eventos presentes com flashbacks, tecendo uma trama intrincada que explora o passado e suas ramificações no presente. Esse resgate não apenas fornece uma compreensão mais profunda das origens e motivações dos personagens, mas também serve como uma ferramenta para contextualizar as complexidades do sertão nordestino. Maria Moura, como narradora de suas próprias memórias, desempenha um papel central nesse processo, oferecendo ao leitor uma visão intimista de sua jornada e das influências que moldaram sua identidade.

Os recursos linguísticos são perceptíveis na construção dos diálogos, que abrangem características da utilização informal da língua, revelando as variações linguísticas e dialetos marcantes. Aqueles que não estão familiarizados com esses dialetos podem se sentir estranhos ou questionar a dificuldade de leitura; no entanto, a experiência da leitura se torna única, pois evidencia o registro cultural de um povo que não deve ser esquecido.

Memorial de Maria Moura  aborda temas como as relações de gênero, a influência da religião e o resgate das memórias destacando uma realidade nua e crua. A autora desafia as convenções e apresenta personagens complexos que lutam contra as amarras sociais e buscam autonomia. Ao entrelaçar passado e presente, proporciona uma experiência literária rica e explora não apenas a história individual de Maria Moura, mas também a complexidade das relações sociais e culturais na região. A obra ganhou maior reconhecimento com o prêmio Jabuti de 1993 e foi adaptada em minissérie pela TV Globo em 1994, a qual foi protagonizada pela atriz Glória Pires.

Para saber mais

LACOMBE, Andrea (2007). Serra dos Padres: refúgio e história. Uma aproximação etnográfica ao Memorial de Maria Moura. Revista de ciências sociais, Fortaleza v. 38, n. 2, pp. 66-72.

LANGARO, Jerri Antonio (2006). A presença do cangaço em Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina. Revista de Literatura, História e Memória, v. 2, n. 2, pp. 52-72.

PAGANUCCI, Jeanne Cristina Barbosa; ARAÚJO, Queiciane; MATOS, Raimundo Lopes (2013). Modernismo e Regionalismo em Rachel de Queiroz: Memorial de Maria Moura, Um Cabra Valente. Revista Anagrama,  São Paulo, a. 6, ed. 3, mar.-mai. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/view/52400/56394 Acesso em: 10 dez. 2023.

SANTOS, Rayane Dias dos (2019). As influências familiar, religiosa e social em Memorial de Maria Moura de Rachel de Queiroz. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras Português) – Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Humanidades. Disponível em: https://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/23267/1/PDF%20-%20Rayane%20Dias%20dos%20Santos. Acesso em: 10 dez. 2023.

Iconografia

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Como citar:

CARVALHO, Ana Cristina Ferreira.
Memorial de Maria Moura.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

16 abr. 2025.

Disponível em:

4729.

Acessado em:

19 maio. 2025.