TORRES, Antônio. Essa terra. São Paulo: Ática, 1976.
Rita Olivieri-Godet
Ilustração: Carolina Vigna
Essa terra, terceiro romance e primeiro grande sucesso do escritor Antônio Torres (Sátiro Dias, BA, 1940), retoma, de maneira singular, a temática das migrações, recorrente na produção literária brasileira, consagrando o autor no panorama das letras nacionais. A obra inova ao dialogar com a longa tradição literária da representação das referências histórico-culturais do sertão nordestino e do êxodo rural, expandindo o conceito de migração, em geral mais restrito ao campo social e à ideia de deslocamento físico. Sobrepõe-lhe, por conseguinte, uma dimensão interior por meio da figuração de experiências de deslocamentos interligadas às modalidades subjetivas específicas que interrogam as relações do sujeito com o espaço, expondo a violência imanente às travessias de territórios e suas consequências no que diz respeito ao sentimento de pertença.
Do referente espacial ao espaço ficcional, o romance, publicado em 1976, em pleno contexto repressivo da Ditadura Militar (1964-1985), trabalha a desterritorialização do sujeito, costurando fronteiras interiores e exteriores. Inscreve-se na linhagem da produção literária da segunda metade do século XX, voltada ao questionamento sócio-histórico e de identidade da nação, produzindo imagens que desnudam o caráter violento, hierárquico e racista da ideologia nacionalista da ditadura.
Em 2022, Essa terra passou a compor a Trilogia Brasil (2022) junto com os romances O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006). Essas obras reunidas em um só volume compõem o percurso de vida do narrador-personagem Totonhim: “A trilogia traz histórias de desenraizamento. Também de afeto e encontro” (Gerana Damulakis, orelha, Trilogia Brasil). A edição especial, publicada pela Record, homenageia os cinquenta anos da carreira literária de Antônio Torres, marcada pela estreia do romance Um cão uivando para a lua, em 1972. A leitura desse texto inaugural já anuncia as principais vertentes temáticas, narrativas e estilísticas da produção literária do escritor, que atravessa cinco décadas e se desdobra entre a memória afetiva do Junco, o contexto sócio-histórico nacional e o lado absurdo e desumano da existência que esmaga e enlouquece o indivíduo, destacando deslocamentos sociais e psíquicos.
Essa Terra é fundamentalmente o relato de um fracasso, o do imigrante nordestino atraído pela ilusão de ascensão social na parte sul do país. O romance evidencia a cisão hierárquica norte/sul que opõe um centro capitalista hegemônico e moderno – São Paulo – a uma periferia marginalizada e oprimida – Junco, no interior da Bahia, atual município de Sátiro Dias. Atravessado pela visão crítica implícita do autor, o relato se desenvolve tendo como pano de fundo a memória histórica recente (em relação à data de sua publicação), abarcando desde o processo de modernização da nação da Era Vargas até o presente da narração, que coincide com os anos de chumbo da ditadura.
Torres revisita a temática do imigrante nordestino por meio da história de vida de um indivíduo, introduzindo uma dimensão mais subjetiva, marcada pela memória da experiência vivida que sua criação incorpora e que leva alguns críticos a identificarem na narrativa de Essa terra “algo de autobiográfico e catártico” (Vânia Chaves, Posfácio, Essa terra). Não se trata, no entanto, de uma autoficção, embora o texto dissemine pistas que aproximam o narrador-personagem Totonhim do autor: o apelido Totonhim (de Antônio); o Junco como lugar de origem; a partida para São Paulo; a família numerosa.
O traço memorialístico está presente na ficção de Torres, autor de uma obra alicerçada na vivência do mundo rural, na experiência das grandes cidades e na descoberta do mundo pela literatura. No entanto, mesmo reconhecendo a importância do “lastro biográfico” no processo de criação artística de Antônio Torres, a incorporação da experiência vivida na obra literária não significa por si só um prenúncio de qualidade. No caso de Essa terra, a originalidade e a força do romance emanam das inovações formais que instauram uma ambiguidade no discurso narrativo, distanciando-se da narrativa realista do regionalismo nordestino, a começar pela figura ambivalente do narrador-autor, que rompe com o modelo de uma narrativa linear clássica.
A escrita complexa de Essa terra situa o presente da narração na década de 1970, na pequena cidade do Junco, sertão da Bahia, que “não ocupa um lugar decente no mapa do mundo” (Antônio Torres, carta a José Giése da Cruz). Território periférico, inicialmente excluído do capitalismo moderno, sua caracterização no romance é ambivalente, às vezes identificado como espaço de identidade, lugar antropológico, na evocação da relação que o pai da família sertaneja mantém com o espaço, apesar da precariedade material, enquanto a vivência da mãe e dos filhos ressalta, prioritariamente, o caráter desintegrador e excludente do lugar. A experiência do êxodo rural nordestino constitui a matéria do romance, que se constrói em torno de um núcleo narrativo inspirado na história de vida de um parente do autor “que depois de muitas idas e vindas para São Paulo, dezenas de vezes, acabou se matando” (Antônio Torres, entrevista).
No romance de Torres, Nelo, primogênito de uma família de doze filhos, encarna o destino trágico do imigrante nordestino que vai para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Vinte anos depois, Nelo volta fracassado para o Junco, sua terra de origem, onde há um fim trágico. A história de Nelo e da família é narrada pelo caçula Totonhim. O romance alterna o cotidiano de Nelo em São Paulo com a rotina da família no Junco, marcada pela extrema pobreza, expondo as perdas e a falta de perspectiva dos personagens em ambos os espaços e em épocas diversas. O sentido trágico da narrativa fica evidente na transmissão da herança do irmão mais velho ao caçula da família.
Essa terra expõe a violência do processo de exclusão econômica, desmistificando a migração como solução para superação do problema e contrapondo-se ao discurso da ditadura sobre o milagre econômico brasileiro. Enfoca a dimensão trágica das migrações, evocando os infortúnios de Nelo na metrópole paulista: o desemprego, a desestruturação familiar e a exclusão social devido ao racismo contra o imigrante nordestino.
No romance Essa terra predomina a narração em primeira pessoa e o ponto de vista do narrador-personagem Totonhim, mas a narrativa aposta na variação da focalização interna para potencializar a representação psicológica, dando destaque aos efeitos da degradação social dos personagens e às suas diferentes visões de mundo, que ecoam na estruturação do romance em quatro partes. A primeira delas, “Essa terra me chama”, centra-se na volta de Nelo, nas suas reminiscências da infância, no suicídio, na preparação do velório, entrelaçando a tragédia familiar à social, ao aludi-la, sub-repticiamente, ao clima irrespirável do período da ditadura. A segunda parte, “Essa terra me enxota”, dialoga com as narrativas sobre o sertão. Destaca o fenômeno da migração segundo o ponto de vista do pai, pequeno proprietário rural, psicologicamente destruído ao se ver forçado a abandonar sua terra. A terceira parte, “Essa terra me enlouquece”, volta-se ao sofrimento da mãe pela perda do filho. Enfim, a última parte, “Essa terra me ama”, recorre a um discurso convulso, em franca contradição com o título, para evocar a viagem de Totonhim à cidade de Alagoinhas, com o objetivo de internar a mãe num asilo. Justapõe-se a esse deslocamento espacial, a recuperação memorial da história de vida da matriarca da família, com o intuito de evidenciar a violência contra a mulher na sociedade patriarcal sertaneja.
A problematização do fenômeno do êxodo rural da população nordestina no romance Essa terra evidencia as faces contraditórias de um país sob o jugo dos paradigmas do capitalismo neoliberal, um país que exclui e condena seu povo à miséria e à morte, em nome do projeto moderno do progresso que identifica na cidade o seu lugar redentor, representado pelo fluxo de capital, pelo acesso ao trabalho e ao consumo, pelo excesso de oportunidades. A visão cética do autor sobre os processos migratórios internos que se alimentam do mito do trabalho como fonte de riqueza confronta os sonhos construídos no espaço interiorano, economicamente precário, ao labirinto da metrópole monstruosa que conduz à desestruturação dos indivíduos desvalidos. Torres atualiza a representação das migrações nordestinas, introduzindo uma dimensão subjetiva e inserindo-as como uma forma específica dos deslocamentos contemporâneos dependentes da engrenagem de uma ordem econômica mundial.
Para saber mais
CHAVES, Vânia (2001). Posfácio. Um novo sertão na literatura brasileira: Essa terra, de Antônio Torres. In: TORRES, Antônio. Essa terra. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, p. 173-188.
DAMULAKIS, Gerana (2022). Orelha. In: TORRES, Antônio. Trilogia Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: Record.
GERSÃO, Teolinda (2022). Do sertão para o mundo: Essa terra, lugar de partida e de regresso. In: FONSECA, Aleilton. Antônio Torres: 50 anos de literatura. Itabuna, BA: Mondrongo, p. 43-47.
SILVA, Susana Souto; SANTOS, Vanusia Amorim Pereira dos (2021). As gavetas nunca estiveram vazias: ditadura militar, escrita e resistência em Essa Terra, de Antônio Torres. Disponível em: https://www.antoniotorres.com.br/wp-content/uploads/2021/04/gavetas_nunca_estiveram_vazias_ditadura_militar_escrita_resistencia_essa_terra_antonio_torres_vanusia_amorin.pdf. Acesso em: 6 de maio 2023.
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