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Chão dos lobos

JURANDIR, Dalcídio. Chão dos lobos. Rio de Janeiro: Record, 1976.

Edmon Neto
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel

Nono de uma série de dez romances conhecida como Ciclo Extremo-Norte, Chão dos lobos, publicado em 1976, narra as incursões do jovem Alfredo pelas ruas dos subúrbios de Belém do Pará. Frequentemente confundido com o próprio escritor, Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, PA, 1909 – Rio de Janeiro, RJ, 1979), o protagonista tem sua trajetória contada desde o romance de estreia, Chove nos campos de Cachoeira, de 1941. O vilarejo referido nesse título fica na Ilha do Marajó, onde Dalcídio viveu sua infância, lugar que retorna nos romances subsequentes via memória de Alfredo. Juntos, os dez volumes integram um longo projeto narrativo de expressão amazônica do século XX.

Chão dos lobos volta-se para as representações do espaço urbano de Belém e, mais detidamente, para o Não-se-assuste, lugar próximo à estância periférica onde mora Alfredo. Trata-se de um conjunto de casas e palafitas erguido em meio ao pitiú (mau cheiro) dos esgotos e onde reside toda sorte de indivíduos estigmatizados pela sociedade. O leitor também é apresentado ao espaço portuário de Belém, no qual transita a classe de trabalhadores das terras e das águas, como o amigo e conterrâneo Biá do “caldeirão das febres”, personagem consciente das desigualdades sociais e atento às lutas históricas, questionando: “Onde estás, Guamá, com teus cabanos?”, em referência à Cabanagem no Período Regencial (1835-1840), quando populares conseguiram tomar o poder de uma província com certa estabilidade.

O ciclo de dez romances não é construído de forma linear. Os eventos de vários livros são retomados, sobretudo, nos dois últimos volumes da série, que se encerra com Ribanceira, de 1978. Aparentemente paradoxal, a abertura de Chão dos lobos se dá com a oração reduzida “Sempre ausente do Ginásio, às aulas não faltava”, construção que provoca estranhamento, pois aponta para ideias inconcebíveis. Acontece que ela se refere de imediato a uma questão que será abordada no desdobramento da narrativa: os saberes mobilizados por Alfredo, diante do desafio de se pensar pela primeira vez como professor, são de outra ordem que não a institucionalizada. Afinal, a escola era um lugar com o qual ele mesmo tinha uma relação problemática enquanto aluno.

Alfredo estudou no Liceu da cidade, mas sua escolarização formal ficou comprometida devido a uma série de questões, abordadas no romance com postura diretamente crítica à educação. Esse tensionamento sustenta o argumento que coloca em xeque o ensino institucionalizado em proveito de saberes mais afeitos às peculiaridades sociais, culturais e antropológicas, os quais também integram a agenda ideológica do autor marajoara, comprometido com a luta comunista. Isso fica evidente quando Alfredo é convidado pela professora D. Nivalda (cuja escola é sua própria casa e o aluguel é pago pelo Estado) a assumir, de modo quase compulsório, uma turma como mestre-escola ou professor de multissérie: “Assuma. Assuma. De suas luzes tudo espero”. Inexperiente e inseguro, nem o reencontro com a paixão da infância, Roberta, impede Alfredo de fracassar no primeiro contato com a turma. Esse evento marca o fim da primeira parte ou “lote” do romance, termo usado pelo pesquisador e professor Fernando Farias ao sugerir que a obra de Dalcídio Jurandir poderia ser medida em hectares.

Uma chuva torrencial cria a transição para o segundo lote, momento em que a narrativa é protagonizada por D. Nivalda e seu marido, o senhor Amanajás. Usando um ritmo digressivo que sugere o singrar dos barcos e as paragens nas cidades ribeirinhas, passa-se a narrar as viagens do casal pelas regiões do rio Amazonas, suas surpresas diante do outro, a exploração dos homens, o trabalho infantil dos meninos carregadores de lenha, a prostituição de mulheres, tudo isso histórias rememoradas pelo casal. Amanajás, homem rude e zombeteiro, que despreza o trabalho da esposa como professora e a escola ofertada aos mais novos, por outro lado, é quem ensina sobre as configurações fluviais e sobre a vida “beiradeira” em diversas formas. Numa das paradas, na pensão de D. Quitéria no vilarejo de Guimarães, a narrativa ganha contornos satíricos quando a moralidade de três católicas, D. Enilda, D. Generosa e D. Quitéria, é provocada pelos atributos de um homem religioso que habitava o imaginário daquelas senhoras: “– Olhemzinho só para a boca daquele frei”. Além disso, os bailes do Valência, muito famosos em Guimarães, destacam o talento lascivo de homens e mulheres em busca das diversões da carne.

No terceiro lote narrativo, o leitor mergulha nas festas do boi e cordões do pássaro, com suas toadas, vaqueiros, amos, comidas e bebidas, com toda uma tradição amazônica já registrada pelo folclorista Bruno de Menezes, que também é poeta do modernismo paraense e influência para Dalcídio Jurandir. Ao recorrer à tradição das festas, Alfredo articula suas atividades com os alunos de D. Nivalda e é nesse momento que a presença de Roberta, tendo seduzido o rapaz desde o encontro na escola, traz à tona as memórias afetivas da infância no Marajó por meio de flashbacks que se alternam com a dissimulação atual da jovem. Mesmo que o interesse por Roberta seja praticamente o pretexto para ir todos os dias à escola, Alfredo, sob a vigilância da professora, pensa nas festas culturais como algo a oferecer que não seja o sofrimento costumeiro dos que são subjugados pelos lobos. Não fosse a recusa da menina em participar como fada da apresentação do boi-bumbá, talvez o rapaz pudesse ter começado a construir uma atuação mais expressiva como mestre-escola. Contudo, a ida de Roberta para uma fábrica de borracha e um bilhete que ela escrevera, interditando qualquer expectativa amorosa de Alfredo, confluem para uma desilusão e para a decisão dele de ir embora de Belém. Despedindo-se da capital na esteira de sua tradição folclórica, Alfredo embarca em uma viagem que seguirá pelo litoral brasileiro até chegar à cidade do Rio de Janeiro. Isso irá acontecer no quarto e último lote do romance, criando um desfecho ainda mais errante para o protagonista, cujas ações são influenciadas pelo impacto dos últimos eventos e pelas relações desenvolvidas durante o trajeto e durante sua estadia no Rio.

Chão dos lobos expõe a decadência da cidade de Belém de meados do século XX por meio de uma cartografia incidental criada pelas andanças do jovem Alfredo nos espaços da periferia que são taxados pelos lobos invisíveis do latifúndio urbano. É de se notar que os acontecimentos que ocorrem com Alfredo e com outros personagens adensam suas subjetividades não apreendidas com facilidade. Trata-se de uma leitura que exige demora, pesquisa e concentração para que seja capaz de despertar a fruição ou o prazer diante da experiência estética com a “aquonarrativa” dalcidiana, como o definiu o professor Paulo Nunes quanto ao estilo do romancista. Os eventos desse nono livro do Ciclo Extremo-Norte ainda influenciarão o protagonista em Ribanceira, obra na qual as vivências de Alfredo seguem na busca pela compreensão de si mesmo.

Para saber mais

FARIAS, Fernando (Org.) (2022). Chão de Dalcídio: perspectivas. Belém: Dalcídio Jurandir.

FARIAS, Fernando (2019). Todo filho é pródigo: bateção de pernas do flâneur Alfredo, em Chão dos Lobos. In: JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos. Bragança: Pará.grafo. p. 7-20.

NUNES, Paulo (2023). Aquonarrativa ou o encharcar-se na poética de Dalcídio Jurandir. Disponível em: https://docplayer.com.br/42655672-Aquonarrativa-ou-o-encharcar-se-na-poetica-de-dalcidio-jurandir-paulo-nunes-1.html#google_vignette. Acesso em: 29 out. 2023.

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Como citar:

NETO, Edmon.
Chão dos lobos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

17 abr. 2025.

Disponível em:

4700.

Acessado em:

19 maio. 2025.