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O último conhaque

LOPES, Carlos Herculano. O último conhaque. Rio de Janeiro: Record, 1995.

André Luiz dos Santos Rodrigues
Ilustração: Théo Crisóstomo

O romance O último conhaque (1995), do escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes (Coluna, MG, 1956), se passa em Santa Marta, uma cidade fictícia no interior de Minas Gerais que vive à margem dos acontecimentos históricos, pois, há décadas, é controlada pela mesma família. A obra apresenta uma linguagem clara e acessível, abordando uma realidade social marcada pela paralisia e uma realidade subjetiva marcada pelo trauma.

A história é narrada por uma terceira pessoa onisciente e tem como protagonista Nando, um homem que retorna a Santa Marta após trinta anos, motivado pela morte de sua mãe. Sua partida de Santa Marta, ainda na infância, aconteceu após o assassinato de seu pai, o médico nordestino Juko Lucena. A cidade e sua casa continuam inalteradas, tanto no que diz respeito aos poderosos locais, responsáveis pela morte de seu pai, quanto aos móveis de sua residência.

O crime que vitimou seu pai obrigou Nando a deixar a cidade, indo morar com sua prima Ruth em São Paulo. Ruth, por sua vez, partiu para os Estados Unidos e nunca mais manteve contato com ele. Sua mãe, que nunca deixou Santa Marta, faleceu na poltrona onde passava a maior parte do tempo. Sua irmã, Rita, foi para um colégio interno e, anos depois, mudou-se para Santa Catarina, desaparecendo também. Todos os membros da sua família parecem querer apagar o passado, e Nando, com suas feridas ainda abertas, segue uma vida de solidão e sofrimento, trabalhando como escriturário em um banco em São Paulo.

Durante os quase sete dias passados em Santa Marta, para o enterro da mãe, Nando se embriaga com conhaque, café e cigarro, enquanto rememora sua vida, marcada pela solidão e pela ausência de identidade. O protagonista, cujos nome e sobrenome são omitidos, carece de um sentido de pertencimento, sentindo-se completamente desconectado de sua família e de si mesmo. Sua volta à cidade não é apenas para o funeral, mas também para abrir as gavetas de sua mãe, onde pode estar escondido algo fundamental sobre seu pai, de cujo rosto ele nunca se lembra. Essas gavetas, tomadas pelo mofo e infestadas de traças, formam a tensão central da narrativa. Até o último capítulo, o protagonista adia o momento de encarar a verdade que elas podem revelar.

Conforme o romance se desenrola, as figuras do protagonista, de seu pai e de Rodrigo Lima, o assassino e homem mais poderoso de Santa Marta, se entrelaçam. O enredo sugere que o conflito entre as famílias vai além de uma simples rivalidade política, envolvendo questões pessoais e familiares profundas. A obra é permeada por uma corrente de relações ambíguas, como os cortejos de Maria Tereza e Inês, que flertam com o erotismo reprimido. A verdade que Nando busca é, ao mesmo tempo, política, familiar e sexual.

O ritmo da narrativa é marcado por um fluxo de consciência incontrolável, expresso em frases longas e densas, que arrastam o leitor para o mundo turbulento de Nando. Essa técnica de escrita, adotada nos 29 capítulos do romance, reflete a mente do protagonista, cujos pensamentos são sufocantes e imersos em um estado de delírio.

No posfácio da sétima edição do livro, o crítico Wander Melo Miranda (2024) posiciona O último conhaque ao lado de outras obras de escritores como Raduan Nassar e Lúcio Cardoso, que exploram o retorno à casa paterna e a decadência das famílias. Em O último conhaque, além da ruína, há dispersão, silêncio e distância. A obra reflete o movimento histórico brasileiro, atravessando períodos como a ditadura militar e a redemocratização. O retorno de Nando à cidade simboliza o desejo de trazer à tona os segredos do passado, num momento de revelações pós-ditadura.

A obra também aponta para a persistência de certas dinâmicas de poder em lugares remotos do Brasil, onde as estruturas familiares e políticas se perpetuam ao longo das décadas. Enquanto o Brasil passa por transformações políticas, Santa Marta permanece inalterada, com o poder ainda nas mãos de uma mesma família. A crítica de Telma Borges (2019) interpreta essa dinâmica como uma forma de coronelismo, em que sobrenome e dinheiro continuam a ditar as regras. O último conhaque revela que, em certos lugares do Brasil, o tempo parece não passar, e os segredos do passado continuam a moldar o presente.

Para saber mais

BORGES, Telma (2019). Carlos Herculano Lopes em quatro tempos. In: BRANDÃO, Jacyntho Lins (Org.). Literatura mineira: trezentos anos. Belo Horizonte: BDMG Cultural. p. 398-415. Disponível em: https://bdmgcultural.mg.gov.br/biblioteca/%20literatura-mineira-trezentos-anos/. Acesso em: 8 out. 2024.

CIRINO, Adriano (2024). “O último conhaque” é para ser consumido sem moderação. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/pensar/2024/04/6841732-o-ultimo-conhaque-e-para-ser-consumido-sem-moderacao.html. Acesso em: 8 out. 2024.

MARCELO, Carlos (2024). “Escrever é uma coisa difícil e sofrida”, diz Herculano. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/pensar/2024/04/6841744-escrever-e-uma-coisa-dificil-e-sofrida-diz-herculano.html. Acesso em: 8 out. 2024.

MIRANDA, Wander Melo (2024). Posfácio. In: LOPES, Carlos Herculano. O último conhaque. Rio de Janeiro: Record, 2024. p. 112-114.

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Como citar:

RODRIGUES, André Luiz dos Santos.
O último conhaque.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

03 abr. 2025.

Disponível em:

4675.

Acessado em:

19 maio. 2025.