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O pai da menina morta

FERRO, Tiago. O pai da menina morta. São Paulo: Todavia, 2018.

Samara Lima
Ilustração: Manuela Dib

No dia seguinte ao falecimento da mãe, em 27 de outubro de 1977, Roland Barthes escreveu: “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?”. As anotações de que Barthes lançou mão para registrar suas emoções, escritas mais para si mesmo do que para o olhar de terceiros, são esporádicas, erráticas, assim como é descontínua a dor de quem se depara com a perda de um ente querido. Já os temas das notas, que culminaram postumamente em Diário de luto (2009), são diversos: é possível encontrar desde o pequeno mal-estar que se instala no cotidiano do autor e o seu desejo de integrar o “desgosto numa escrita”, até os comentários sobre seu receio de profanar a morte da mãe ao fazer literatura, “embora de facto a literatura tenha origem nestas verdades”.

É justamente partindo de uma verdade mais ou menos semelhante à relatada pelo crítico francês, ou seja, de uma verdade gerada pela experiência do luto, que O pai da menina morta (2018), romance de estreia do escritor, ensaísta e editor Tiago Ferro (São Paulo, SP, 1977), foi construído, já que Ferro viveu a morte da própria filha dois anos antes de publicar o livro.

Em agosto de 2016, Ferro escreveu um texto não ficcional para a Revista Piauí, “Já não era mais terça-feira, mas também não era quarta”, dedicado a suas filhas e à mãe delas. A criança tinha apenas oito anos quando faleceu, em março de 2016, por miocardite decorrente de uma complicação causada pelo vírus Influenza. No texto, Ferro aborda os acontecimentos que se seguiram após a morte de Manu e o vazio deixado por sua ausência.

O pai da menina morta, que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura e o Jabuti, em 2019, é escrito em primeira e terceira pessoas do singular por um narrador-personagem que se vê diante da morte da própria filha: “A Minha Filha morreu no dia 26 de abril de 2016. Eu ainda faço parte deste mundo?”. É então, mediante a perspectiva desse narrador-personagem, que parece oscilar entre o sonho (ou pesadelo) e a realidade, que o leitor irá acompanhar sua confusão mental e a reação de todos os atingidos pela tragédia.

Mas é interessante notar que, apesar de partir da morte da criança, a narrativa não está preocupada em contar – somente – o que aconteceu. Na verdade, o que parece estar continuamente em questão é a tentativa de fazer uma investigação, por meio da subjetividade do narrador-personagem, do que ficou latente após a morte, e de retraçar a sua vida antes mesmo de ter se tornado pai: “Eu sou O Pai da Menina Morta? Quem fala aqui afinal? Quem é Eu?”. Dessa forma, diversos fios narrativos vão aos poucos se conectando, à medida que a história avança: tem-se acesso às memórias de infância do protagonista, à sua busca por um estilo de vida alternativo graças à prática da ioga, ao processo do divórcio, aos eventos políticos ocorridos no país em 2016, às lembranças das viagens em família, entre outros.

Nesta história, a maioria das personagens é chamada por suas funções – “o médico”, “a Professora de Yoga”, “a Terapeuta Budista”. Já o pai e a filha são identificados apenas como “O Pai da Menina Morta”, “O Pai Leproso”, o “Pai Que Se Fodeu”, e “A Minha Filha” ou a “Menina Morta”. Essa decisão pode indicar que narrador e autor desejam separar as esferas da ficção e da realidade para evitar leituras simplistas sobre o modo como ambas estão entrelaçadas na narrativa. O embaralhamento dessas esferas se insinua já na própria capa do romance, em que o nome do autor, situado no canto superior esquerdo, parece apontar vertiginosamente para o título da obra, centralizado à direita.

Há também três imagens fotográficas em preto e branco reproduzidas ao longo do texto. Uma das fotos, por exemplo, pertence ao arquivo pessoal do autor e está inserida no fragmento [1978]. A imagem mostra um bebê, vestido com roupas listradas, sobre o que parece ser uma cama. Levando em consideração que o narrador afirma ter nascido “na cidade de São Paulo no dia 26 de maio de 1976”, podemos supor que a fotografia retrata o protagonista e, em última instância, o próprio escritor Tiago Ferro aos dois anos de idade.

A foto, que poderia facilmente ser interpretada apenas como uma ilustração de um momento da infância do narrador/autor, após uma leitura mais atenta pode nos levar a pensar na dupla temporalidade que toda imagem carrega; “isso-foi” (o registro de um evento do passado que não se repetirá) e “isso-será”, conceito utilizado por Barthes para caracterizar as representações fotográficas. Desse modo, é como se a própria fotografia do protagonista ainda bebê flutuasse entre a inocência de sua primeira infância e aquilo que tragicamente o aguarda no futuro: o casamento, o nascimento da filha, a paternidade, a morte da criança e sua nova e eterna condição de “O Pai da Menina Morta”.

Em diversos momentos da narrativa, o narrador afirma que cada gesto seu é “superinterpretado num nível de paranoia e exegese”, uma vez que o colocam frente a frente com juízes do cotidiano que avaliam qualquer passo em direção à normalidade como um atentado à memória da criança: “Como você ainda tem coragem de exibir a sua cara por aí? Como você ainda tem a petulância de comer, dormir, sorrir, trepar, respirar? Como? Responda!”.

Em um primeiro momento, o leitor é levado a pensar que está diante de uma espécie de diário que lhe permite entrever o dia a dia do narrador após a morte da criança, pois há uma série de entradas entre colchetes indicando os dias da semana. O caráter fragmentário da narrativa é apresentado por meio de listas (de supermercado, de verbetes de dicionários, de medos bobos e das melhores músicas em língua inglesa), por mensagens de WhatsApp e pela reprodução de e-mails. Assim, família, lugares, religião, sexualidade e a própria morte da filha são tratados em “parágrafos curtos e desconexos” e solicitam do leitor uma atenção redobrada. É como se o uso de diferentes elementos servisse como tentativa de conferir coesão e significado ao ocorrido e ao relato, mas o fato é que eles só deixam mais explícita a dificuldade de compreendê-lo e narrá-lo. Não à toa, a conclusão do narrador ao final do livro é de que a “linguagem é uma cilada”.

Outro recurso utilizado na narrativa para “dar forma à dor” é a aposta na alteridade, na busca por um grupo imaginário que “passou pelo mesmo tipo de sofrimento”. Em diversos momentos, o narrador traz referências de figuras célebres de diferentes áreas de conhecimento a fim de costurar sua história pessoal a uma série de retratos de pais que também ficaram órfãos de seus filhos: Gilberto Gil, que “retirou o filho dos escombros do acidente”; Charles Darwin, que insistiu “com a sua ficção do reino animal” após a morte da filha; Hermann Kafka, que “recebe os manuscritos do filho que havia morrido”; e tantos outros sujeitos que vivenciaram essa mesma “inversão da lei da natureza”. O objetivo, aí, é encontrar sentido a partir da experiência do outro com o intuito de também encontrar uma saída razoável para o luto vivido pela tragédia. Por esse motivo, mais do que à filha, afinal o livro não irá trazê-la de volta à vida, a narrativa é dedicada “Aos que restam”, aos que sobreviveram.

O pai da menina morta dialoga com muitas obras contemporâneas que fazem da experiência do luto matéria textual. Basta lembrar de Lili: novela de um luto (2021), de Noemi Jaffe, e As pequenas chances (2023), de Natalia Timerman. Contudo, é também uma obra que está inserida no campo das produções que recusam limites rígidos ao apostar no hibridismo dos gêneros e da linguagem, deixando nebulosa a própria categoria “romance” e as fronteiras entre o real e a invenção. Ao final da leitura, pode-se dizer que o leitor está diante de uma obra que parte, sim, da realidade dos fatos, mas somente para fraturá-los e produzir um efeito mais próximo da experiência de ausência causada pela morte de uma filha.

Para saber mais

BARTHES, Roland (2009). Diários de luto. Lisboa: Edições 70.

CAETANO JÚNIOR, Antônio (2019). Luto e escrita de si: jogos autoficcionais em O pai da menina morta. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Bahia, Salvador.

VELASCO MONTEIRO, Tiago (2021). A inespecificidade em O pai da menina morta. Signótica, Goiânia, v. 33, p. e69126. Disponível em: https://revistas.ufg.br/sig/article/view/69126. Acesso em: 24 out. 2024.

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Como citar:

LIMA, Samara.
O pai da menina morta.

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mapeamento 

crítico 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

03 abr. 2025.

Disponível em:

4670.

Acessado em:

19 maio. 2025.