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Mar paraguayo

BUENO, Wilson. Mar paraguayo. São Paulo: Iluminuras, 1992.

Maria Eduarda Miranda Paniago
Ilustração: Espírito Objeto

Publicado em 1992, Mar paraguayo é um romance curto de Wilson Bueno (Jaguapitã, PR, 1949 – Curitiba, PR, 2010) que explora identidades e discursos híbridos, desafiando classificações rígidas. Dividida em três capítulos, a trama é narrada pela autointitulada “marafona de Guaratuba”, uma mulher cuja história não é contada em detalhes precisos, mas se revela ao passo em que ela apresenta um pouco de sua vida no balneário de Guaratuba, situado na região litorânea do estado do Paraná. É esse o cenário principal da obra, cidadezinha onde vive com “el viejo”, um homem com quem compartilha uma relação de anos – turbulenta e cheia de ressentimentos – e que, como ela relata, acaba de morrer.

O tempo em que se passa a história não é especificado, mas algumas passagens permitem inferir que se trata possivelmente das décadas de 1970 ou 1980 – como sugerem as referências às telenovelas estreladas por Sônia Braga, que a protagonista afirma adorar assistir. Mais do que no enredo, a originalidade do livro está no emprego de um discurso plurilíngue: misturando português, espanhol e guarani, a linguagem empregada reflete o universo latino-americano em que se inserem muitas das narrativas de Bueno.

O mote da narrativa parece ser a morte do velho, que se mostra uma espécie de defesa pessoal por parte da narradora: “yo no matê a el viejo”. Revelação que surge já no primeiro capítulo, a afirmação se repetirá insistentemente ao longo das páginas, gerando dúvidas sobre sua veracidade. Apesar da centralidade desse fato, o destaque da história fica por conta das longas reflexões tecidas pela protagonista. Seu discurso é de um lirismo comovido e gira em torno de temas obscuros, como o inferno e o sofrimento humano. Em seu fluxo de consciência, a língua gagueja e dá voltas, refletindo um tempo espiralado em que as mesmas cenas aparecem como miragens sobrepostas: “el viejo” morto no sofá, “el niño” que ela observa pela janela com imenso desejo, os habitantes medíocres que se deslocam pela cidade pacata esbanjando suas peles queimadas de sol. Juntos, compõem um retrato sufocante da crueldade desmedida do cotidiano convivendo com a visceralidade do desejo, que parece definir o que a protagonista entende por vida.

A vida, no romance, mostra-se como uma contínua iminência da morte: é como se tudo compelisse a ela, ao mesmo tempo que chegar ao destino fatal fosse impossível. A morte é um processo ininterrupto, a exemplo do que sucede com a personagem do velho, que parece nunca terminar de morrer. Nesse continuum, o leitor é conduzido por uma perspectiva em que a violência e o sofrimento são de tal forma inescapáveis, que se tornam até mesmo definidores da felicidade, do amor e do desejo, uma vez que estão neles entranhados, como evidenciam muitas das metáforas presentes nos monólogos da narradora: “mi felicidade es un cristal ante el sol, advinadora esfera cargada por el futuro como una bomba que se va a explodir en los urânios del dia”.

O título da obra traz em si a dimensão da fantasia que faz parte da narrativa, provocando um estranhamento imediato, visto que a nação paraguaia não possui uma saída para o mar. Essa escolha nominal não remete a um cenário utópico de fraternidade entre os povos sul-americanos, mas parece convidar a um outro ponto de vista no qual, dissolvendo-se as fronteiras, as águas circulam e unem o que as linhas fictícias dos mapas e convenções históricas como “nacionalidade” insistem em separar.

Nesse mar onírico – muito mais simbólico que real, sentido e contado repetidamente pela narradora como “paraipiété”(abismo do mar) –, o autor integra a experiência brasileira à de outros países da América do Sul, relembrando uma herança latina comum frequentemente esquecida ou escamoteada no Brasil. Esse apagamento diz respeito sobretudo à ancestralidade indígena, que é parte essencial da história da protagonista. Distanciando-se do imaginário do sul brasileiro que mais se encontra nos holofotes – sobretudo o que centraliza as heranças alemã e italiana na sua constituição identitária – as palavras da marafona rasgam ainda mais fundo o corte aberto latino-americano que constitui a história dessas nações.

Assim, é no plano do discurso que essa dissolução de fronteiras se mostra de modo mais explícito e criativo: o característico portunhol presente nas obras de Bueno, que convive com o guarani, não resulta propriamente em um novo idioma, mas, sim, como explica a narradora logo de início, na “vertigem da linguagem”. “Deja-me que exista”, pede ela nessa espécie de advertência aos leitores, deixando ver uma ética libertária que fará parte de seu discurso inflamado, pouco afeito a regras gramaticais ou a classificações normativas.

Conforme explicou o autor em entrevista à revista Germina (Bueno, 2009), sua escrita é marcada pela busca da errância da língua, elemento que, em Mar paraguayo, também se reflete na construção da protagonista. Sua história vai sendo exposta em fragmentos ao longo das páginas. Coletando seus rastros, compõe-se a imagem de uma mulher de pertenças múltiplas: provavelmente nascida no Paraguai, de origem guarani – sendo esse seu idioma nativo –, migrante no Brasil e de antepassados argentinos. Em seu corpo lascivo e insubmisso, em seu comportamento transgressor e irreverente, e em sua língua inclassificável, ela encarna a posição de um corpo fora do lugar: vagabundo e errante nos vários sentidos dos termos.

Seu desajuste é também multifacetado: não diz respeito somente à condição de mulher que desafia os ideais de gênero no sistema patriarcal, nem à de estrangeira, mas remete, sobretudo, a uma existência que rompe com a lógica tradicional de pertencimento. A evocação de mitos e referências culturais guaranis ressalta uma perspectiva diante do mundo que desrespeita a lógica ocidental e cristã, ao mesmo tempo que convive com seus elementos formadores. As contradições das identidades dos povos colonizados estão todas presentes nessa obra, descrita por Néstor Perlongher (1992) como uma verdadeira “sopa paraguaya”.

Nesse sentido, a personagem da marafona apresenta também ambiguidades que deixam dúvidas se foram intencionalmente formuladas para compor sua complexidade subjetiva ou se, na verdade, revelam uma ruptura com a imagem transgressora que, à primeira vista, parece defini-la. O esforço da protagonista para se distinguir das outras mulheres da sociedade é evidente em diversas passagens, ao mesmo tempo que muitos componentes e símbolos frequentemente associados à representação feminina – como a atitude passiva e sempre na posição da espera – são também incorporados em sua caracterização. Exemplo disso são as cenas em que, diante da janela de sua casa, ela observa o mundo lá fora – o “niño”, os banhistas que passam, a cidade –, evidenciando um lugar-comum na representação da mulher dócil e do lar muito mais ligada à observação, mais inerte do que em movimento. Tal figuração se distancia bastante da face subversiva da marafona, mulher que faz do sexo não apenas seu meio de sustento, mas uma verdadeira fonte de vida e experimentação.

Esse desajuste pode ser tanto um elemento constitutivo da complexidade dessa personagem multifacetada quanto uma tentativa mal sucedida de explorar muitas dimensões do que se entende tradicionalmente como o “universo feminino”, oscilando entre o sagrado e o profano. Distante do realismo engajado e da prosa urbana que caracterizaram parte da literatura brasileira dos anos 1990, Bueno aposta numa narrativa onírica e em um retrato brasileiro longe dos grandes centros, de onde emergem, ainda assim, diferentes questões históricas e culturais de vital relevância.

A grande contribuição do romance está, desse modo, na originalidade da linguagem e nas reflexões provocativas da intrigante figura da marafona. Por meio delas, o livro desorganiza as fronteiras consolidadas que separam as histórias de diferentes países sul-americanos, destacando o sofrimento e a violência que as funda e une. Representa, ainda, um questionamento mais radical sobre pertencimento e identidades que não se encaixam nos rótulos tradicionais.

Para saber mais

BUENO, Wilson (2009). Wilson Bueno, o poeta de Curitiba: um pequeno retrato em forma de entrevista do cantor das tardes melancólicas da floresta. [Entrevista concedida a] Antonio Rodrigues Belon. Germina, São Paulo. Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/2009/pcruzadas_wilsonbueno_out2009.htm. Acesso em: 7 out. 2024.

FLORENTINO, Nádia Nelziza Lovera de (2011). A vertigem da linguagem em Mar paraguayo, de Wilson Bueno. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Três Lagoas.

PELLANDA, Luis Henrique. Mar paraguayo, de Wilson Bueno: um Paraná dissoluto e universal. Pernambuco Revista de Literatura, do Livro e da Leitura, Recife. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/acervo/resenhas/3048-mar-paraguayo-,-de-wilson-bueno-um-paran%C3%A1-dissoluto-e-universal.html. Acesso em: 7 out. 2024.

PERLONGHER, Néstor (1992). Sopa paraguaia. In: BUENO, Wilson. Mar paraguayo. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. p. 7-11.

TISCOSKI, Luciana (2023). Teia de línguas e epifanias. Rascunho: o jornal de literatura do Brasil, Florianópolis, n. 282. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/teia-de-linguas-e-epifanias. Acesso em: 13 out. 2024.

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Como citar:

PANIAGO, Maria Eduarda Miranda.
Mar paraguayo.

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mapeamento 

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

01 abr. 2025.

Disponível em:

4663.

Acessado em:

19 maio. 2025.