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Maíra

RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Global, 1976.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração:

Darcy Ribeiro (Montes Claros, MG, 1922 – Brasília, DF, 1997) foi antropólogo, educador e romancista. Ele escreveu uma consolidada obra etnográfica em defesa da população indígena. Entre seus principais projetos, destaca-se a criação da Universidade de Brasília em 1962. O golpe militar de 1964 lhe impôs a cassação de seus direitos políticos e ele foi exilado. Durante sua trajetória na vida pública, Darcy foi professor, reitor, ministro da Educação e chefe da Casa Civil no governo de João Goulart. Após a ditadura, foi eleito senador. A produção literária de Darcy Ribeiro é fundamental para refletir sobre a formação histórica, política e econômica da sociedade brasileira, bem como seus desdobramentos na contemporaneidade.

Genocídio e etnocídio indígena, extermínio da população negra, profundas desigualdades de classe, mecanismos estruturais de exclusão, violência e silenciamento dessas e de outras minorias nos espaços públicos de representação e de disputa das diferentes narrativas são alguns dos elementos que marcaram a formação histórica do nosso país e que continuam a influenciar os eventos políticos, sociais, culturais, econômicos e identitários da atualidade. As formas de dominação e controle de um grupo hegemônico sobre outros no Brasil variaram desde a invasão portuguesa até os dias atuais, mas, sem dúvida, a base dessa dominação permanece a mesma ontem e hoje. Nesse sentido, a produção literária e acadêmica de Darcy Ribeiro é, sem dúvidas, uma ferramenta fundamental para estudar esses processos e seus resultados no presente.

Obras como Maíra (1976) e O mulo (1981) ajudam a compreender os aspectos estruturantes de um país marcado pela violência sistêmica e por desigualdades sociais e econômicas. Maíra é um romance que se desenvolve em torno das mitologias indígenas e seus reflexos sobre o movimento de resistência histórico e sociopolítico que integra a trajetória dos povos indígenas no país. Essa é uma narrativa que revela um duplo trabalho do autor: estético e etnológico. De um lado, um conjunto de elementos estéticos que refletem o trabalho artístico e literário de Darcy. De outro lado, uma análise etnográfica geral a respeito dos povos indígenas é elaborada na obra por meio de histórias de luta e resistências desses povos, suas mitologias, suas culturas, suas relações com a natureza e com o mundo ocidental.

O encontro entre Isaías e Alma é o elemento central de Maíra. O autor, conhecendo profundamente tanto a história das comunidades indígenas quanto a história da civilização ocidental responsável por dominar e explorar essas comunidades, consegue conectar esses dois mundos, apresentando suas problemáticas e deslocamentos. “Darcy Ribeiro soube, portanto, escolher os bons critérios para fundir o real documentário, o socialmente válido e o transcendente, por meio do ficcionalmente expressivo” (Candido, 2014). Isaías é um indígena que, ao retornar da Itália, decide abrir mão de sua vida como membro da Igreja Católica, atividade que começou ainda na juventude. Nesse retorno à sua comunidade, ele reflete sobre seus processos constitutivos identitários, a sobreposição de outras culturas e o apagamento de sua própria cultura e identidade.

O povo Mairum, comunidade à qual pertence o personagem, representa muitos povos indígenas ameaçados pelo extermínio cotidiano, precisa lutar, construir redes de solidariedade e sobrevivência, como conclui-se num dado momento: “Nosso dever, nossa sina, não sei, é resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais”. O próprio Avá, nome originário de Isaías, é uma vítima do processo de dominação histórica, cultural e identitária. Muito cedo, ele deixou sua comunidade para promover e difundir os ensinamentos de uma cultura e de uma religião dominante – a Igreja Católica – que também tem sua parcela de responsabilidade na dizimação dos povos indígenas. No romance, Isaías lança um olhar de fora para dentro, como alguém que, de alguma forma, experienciou os dois lados. Isaías se vê cercado por diversas dualidades, especialmente a tensão entre sua comunidade indígena e a vida ocidental. Ele, que cresceu na aldeia, frequentou seminário em Goiás e depois viveu em Roma, reflete sobre o seu próprio eu – seu lugar – em diversos momentos. Ele engaja-se em um processo reflexivo que se abre para diversas possibilidades de leitura e apreensão da narrativa.

No retorno ao Brasil, Isaías Mairum encontra uma missionária em um hotel em Brasília e passa a conversar com ela. Ao caminhar pela Esplanada dos Ministérios, os dois personagens refletem sobre a constituição de Brasília, que se levantava naquele momento. Ela arrisca dizer: “O terrível de Brasília é que já nasceu velha. Só a roupagem é nova. Olhando pra dentro dos apartamentos, o que se vê é aquela mesma classe média lá do Rio: funcionários, burocratas, só preocupados com o salário, a aposentadoria e o retorno ao Rio. Ninguém é daqui”. Isaías, no entanto, em um contínuo movimento de deslocamentos espaciais e temporais, enxergava algo de permanente que se erguia com a cidade, algo com força de transformação. “Brasília é o mundo mairum que se transfigura. O pior do nosso mundo aqui se converte”. Um mundo que se ergue sobre outros mundos, anulando-os e apagando-os.

O tempo registra a mobilização humana em torno de interesses divergentes, frequentemente descontínuos, e as inúmeras possibilidades de deslocamento no espaço. Cada espaço funciona como um elemento que passa a integrar a experiência histórica – individual e coletiva – de cada indivíduo inserido no mundo, marcado por disputas, silenciamentos e apagamentos. Essas são algumas das reflexões que se desenvolvem em torno da construção das personagens no romance.

Esses processos de disputa histórica e identitária que marcam Maíra são características de toda a produção literária e intelectual de Darcy Ribeiro. O povo brasileiro (1995), por exemplo, discute os movimentos históricos, culturais e identitários dos povos indígenas desde a invasão portuguesa. Diferentemente dos invasores, advindos de uma civilização urbana e classista, os povos originários do Brasil eram estruturados em tribos autônomas e não estratificadas em classes. Um dos elementos mais marcantes é que, desde o primeiro contato entre os povos indígenas e a civilização europeia, há a imposição de um grupo sobre o outro. O extermínio e a escravização dos povos indígenas constituem a própria sociedade brasileira. E são justamente os dilemas desse processo sócio-histórico que o autor apresenta em Maíra, potencializando as chaves de leitura e de interpretação por meio das próprias aberturas que a linguagem literária oferece.

Maíra é, nesse sentido, uma obra central da literatura brasileira porque traz para o campo literário possibilidades de leitura desse movimento contraditório e violento que constitui a sociedade brasileira. Os deslocamentos históricos, geográficos e culturais que influem sobre esses povos indígenas também ganham ênfase em várias passagens do romance. “Termina o dia na vila de Corrutela. A gente que volta dos roçados, dos currais, da pesca, vai se juntando à sombra da igrejinha. É uma capela velha, construída por padre Vecchio. Já não abre. Agora quase todos são crentes”. O romance marca esse tom de denúncia da sobreposição de culturas e identidades hegemônicas em relação aos povos indígenas, mas sem perder a essencialidade do texto literário.

Em Maíra, esses processos aparecem como elementos para pensar a própria condição desses personagens em seus contextos temporais e geográficos. É interessante observar também como o narrador se vale de alguns recursos linguísticos para dar ênfase à vivência e à experiência desses povos e comunidades. Isso se revela nos momentos em que o romance busca apontar a humanidade desses personagens no mais corriqueiro, habitual e supostamente irrelevante gesto humano. A passagem do tempo e as transformações do espaço cultural e geográfico contribuem para reafirmar não só o valor do texto literário em si, mas igualmente para revelar um projeto de país, de coletividade, de sociedade. Os dias e as noites desses personagens são atravessados pelo que comem, bebem e arrotam, riem e choram, andam, dançam e cantam. Suas relações reconfiguram-se e permanecem continuamente.

No romance, Isaías fala de mitos e histórias dos Mairum e de outros povos indígenas. Entre eles, Maíra e Micura, gêmeos da mitologia dos Mairum responsáveis pela constituição biológica e histórica desses povos. Um desses mitos diz que Maíra passou a guerrear com seu pai, Mairahú, e é daí que o mundo tem sua origem. Esse mito é uma versão indígena do surgimento dessa comunidade, uma espécie de Gênesis. Há outros personagens emblemáticos ao longo da narrativa, como Juca, que tem intenções de explorar toda a região. Interesses, valores, ideais, noções de solidariedade e coletividade, ou a falta delas, implicam na forma como o mundo e cada personagem se constituem no romance.

Antonio Candido (2014), no texto Mundos cruzados, sugere que, em Maíra, Darcy Ribeiro conseguiu passar “do trabalho de campo e das sínteses interpretativas para a transfiguração ficcional do índio brasileiro”. O conhecimento etnológico do autor é uma ferramenta central na construção estética e estilística dessa narrativa que reúne e representa um conjunto de mitos e histórias indígenas, inclusive, histórias de luta e resistência em meio ao genocídio indígena implementado pelas forças dominantes no nosso país. A posição que o próprio Isaías alcança no romance revela essa proximidade com o mundo ocidental, que adentra em todos os âmbitos dessas comunidades indígenas, para colonizá-las e destruí-las. Isaías Mairum, como indica o próprio Darcy Ribeiro, reflete o encontro de dois mundos que não se encontram de forma paritária nem consensual. Não é estabelecida uma relação minimamente simétrica. Esses mundos se interpenetram mediante o tensionamento de relações desiguais entre diferentes atores sociais (brancos x indígenas; dominantes x dominados; exploradores x explorados; violentadores x vítimas).

Nesse sentido, Maíra é um romance que consegue reunir um conjunto de práticas, experiências e histórias de comunidades indígenas. Por isso, podemos falar aqui em um texto literário que sublinha seu caráter estético e histórico/identitário. Um texto que retoma um conjunto de vivências originárias e as traz para o campo da representação literária. E o autor soube realizar com êxito esse trabalho artístico a partir de elementos constitutivos de diversos povos. A riqueza dessa narrativa é perceptível por meio da observação de alguns fatores: um deles é que Darcy Ribeiro não procura fazer uma leitura reducionista do lugar histórico do indígena na sociedade brasileira. A complexidade e a profundidade desses mundos que permanecem em tensão são tratadas por meio de uma perspectiva de quem domina essa temática. Esse romance permeia diversos elementos da nossa cultura, história e identidade. Maíra não reflete uma comunidade indígena de forma imediata nem reducionista. E, por isso mesmo, é uma obra literária que permite uma compreensão ampla e profunda dos aspectos de tensionamento e conflito que formam nossa sociedade.

Para saber mais

CANDIDO, Antonio (2014). Mundos cruzados. In: RIBEIRO, Darcy. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. 19. ed. São Paulo: Global.

RIBEIRO, Darcy (2014). Maíra. 19. ed. São Paulo: Global.

RIBEIRO, Darcy (2015). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Global.

SOUZA, Elise Aparecida de Oliveira (2013). Transculturação em Maíra, de Darcy Ribeiro. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros.

VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (2001). Cacos de espelho: uma leitura de Maíra, de Darcy Ribeiro. In: AGUIAR, Flávio; CHIAPPINI, Ligia (Orgs.). Civilização e exclusão: visões do Brasil em Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro. São Paulo: Boitempo Editorial. p. 199-210.

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Maíra.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

31 mar. 2025.

Disponível em:

3227.

Acessado em:

19 maio. 2025.