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Dias de luto

SILVEIRA, Joel. Dias de luto. Rio de Janeiro: Record, 1985.

Luciana Thomé
Ilustração: Espírito Objeto

Joel Magno Ribeiro da Silveira, conhecido como Joel Silveira (Lagarto, SE, 1918 – Rio de Janeiro, RJ, 2007) é considerado uma referência para o jornalismo brasileiro. Aos 26 anos, foi o repórter designado para acompanhar, pelo Diários Associados, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) à Itália e fazer a cobertura jornalística da Segunda Guerra Mundial. Ao novato, o empresário e dono do jornal, Assis Chateaubriand, disse: “Seu Silveira, me faça um favor de ordem pessoal. Vá para a guerra, mas não morra. Repórter não é para morrer, é para mandar notícias”.

Durante sua trajetória profissional, Silveira foi contemporâneo de intelectuais como Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, entre outros. Foi Chateaubriand quem lhe deu o apelido de “a víbora”, por seu estilo textual ferino e impactante.

Esta introdução se faz necessária porque Silveira foi pioneiro, no Brasil, do chamado “Novo Jornalismo”, uma vertente inspirada nos textos dos jornalistas estadunidenses Tom Wolfe e Gay Talese, caracterizada pela mescla da objetividade jornalística com o lirismo da literatura. Autor de cerca de quarenta livros, Silveira é amplamente reconhecido por títulos como O inverno da guerra (2005) e A feijoada que derrubou o Governo (2004), ambos de não ficção, reunindo crônicas e reportagens. Histórias de pracinha (oito meses com a FEB), lançado pela Cia. Editora Leitura, em 1945, é considerada sua obra-prima.

A partir de meados da década de 1980, Silveira investe ainda mais na ficção, consolidando-se também como escritor. Desta vez, inverte a lógica: utiliza a realidade como inspiração para a ficção. O romance Dias de luto é um exemplo dessa proposta. Lançada em 1985, a narrativa apresenta a jornada de Jorge Rodrigues Fonseca, dos oito anos de idade até o início da vida adulta, aos dezessete anos. A obra adota a estrutura do romance de formação, que explora o amadurecimento do personagem, abordando seu desenvolvimento físico, psicológico, moral, social e político.

O romance não cita detalhadamente fatos nem indica um período temporal. No entanto, é enfático ao situar o espaço geográfico onde a trama ocorre. Jorge, um menino franzino e com diversos problemas de saúde, avista pela janela da casa o Morro do Urubu, local conhecido da cidade de Aracaju (SE).

Na primeira parte do livro, intitulada “Desaparecimento de Aurora”, o narrador em terceira pessoa está focalizado em Jorge e traz suas percepções do mundo e a dificuldade em compreender a vida dos pais e dos outros adultos. É natural que o texto não contextualize época histórica ou outras informações, porque o menino não compreende esses aspectos. Assim, o leitor acompanha o desenrolar da história sob o olhar da criança.

Para se curar dos males crônicos, Jorge e seu irmão Gabriel, um ano mais novo, são enviados para Lagarto, um povoado da cidade de Salgado, localizado a 52 quilômetros de Aracaju. Essas são as primeiras pistas concretas sobre o quanto a história traz fatos reais e, mais importante, biográficos. Silveira nasceu em Lagarto e morou algum tempo por lá, antes de sua família se mudar para Aracaju. Jorge parece ter sido o personagem criado para mostrar aspectos da vida do próprio jornalista, que serviu de base para a construção de todo o texto ficcional.

A narrativa segue a cronologia da vida de Silveira, mas apresenta algumas cenas mais pungentes, como o abuso sexual sofrido por Jorge e a descoberta do impulso sexual a partir da proximidade com uma prima. Cenas que podem ser ficcionais, e é isso que precisa ficar evidente: os aspectos reais e ficcionais se misturam, e não é objetivo do autor que o leitor consiga distingui-los.

No entanto, episódios reais e históricos estão por todo o livro. Nascido em 1918, Silveira tinha oito anos quando ocorreu a segunda Revolta Tenentista em Sergipe, em 1926. O movimento foi inspirado pela passagem da Coluna Prestes no estado do Piauí. A revolta foi reprimida em apenas quatro horas, mas deixou um rastro de violência que não passou despercebido pelo menino Jorge, embora ele não compreendesse o episódio ou seu impacto na cidade. O personagem também nota a movimentação de seu pai, como se demonstrasse um possível envolvimento na proteção de revoltosos contra a retaliação do governo.

O leitor pode se sentir instigado a pesquisar todas as referências e pistas indicadas pelo menino Jorge e fazer uma reflexão que ligue os pontos e que desvende em que momento da história brasileira ocorreu um conflito em Aracaju que Silveira poderia ter testemunhado. A mesma pesquisa vai mostrar que, em alguns aspectos, o autor propositadamente decidiu por ficcionalizar a narrativa, especialmente no que se refere ao relacionamento entre Jorge e seu pai. No livro, ocorre o oposto do que aconteceu na vida de Silveira.

Na segunda parte, intitulada “Dias de luto”, a narrativa avança e Jorge está com 17 anos. O texto abandona o tom pueril e se aprimora, acompanhando o amadurecimento do personagem. Jorge já manifesta inclinação para a militância de esquerda e começa a escrever textos para o jornal A voz do operário, publicação dirigida e entregue aos trabalhadores da indústria têxtil de Aracaju – algo que também consta na biografia de Silveira.

É possível compreender o livro como uma reunião de duas novelas cuja inspiração é a vida do autor. Na orelha de Dias de luto, Luiz Antonio de Assis Brasil – um dos tantos intelectuais que falam sobre a obra e o autor – afirma: “[…] Desaparecimento de Aurora é uma novela bem realizada, num estilo vigoroso e limpo, um dos poucos bons livros de ficção que tivemos ultimamente”.

Silveira demonstra na narrativa o mesmo detalhamento e cuidado de uma reportagem, mas coloca os fatos históricos a serviço da ficção. E isso o destaca entre os autores brasileiros, especialmente aqueles que usaram a história do país e fatos determinantes para os processos sociais e democráticos como inspiração literária. O texto do autor contextualiza sua própria experiência, mas também desenha episódios marcantes do Brasil e de seus cidadãos. O “Desaparecimento de Aurora” mostra a perda da inocência de um menino, que quebra uma barreira metafórica no livro e descobre a vida sexual. “Dias de luto” anuncia a ideologia que o próprio Silveira adota posteriormente e dá sinais de que, assim como ele, o personagem Jorge também abandonará a Faculdade de Direito para tentar a vida no Rio de Janeiro. Os dias são de luta – uma referência à busca por justiça e igualdade social, focada primeiramente na difícil rotina dos operários da cidade. Mas os dias também são de luto, porque Jorge presencia a perda de pessoas queridas e familiares e constata que o tempo aflige a todos, sobretudo os mais vulneráveis. Esses temas são recorrentes e aparecem em diferentes obras de Silveira.

Para saber mais

LIMA, Cleverton Barros de (2023). Figurações do desespero na ficção de Joel Silveira. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 34, p. 275-294. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/maracanan/article/view/75338. Acesso em: 30 out. 2024.

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Como citar:

THOMÉ, Luciana.
Dias de luto.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

31 mar. 2025.

Disponível em:

4650.

Acessado em:

19 maio. 2025.