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Nossos ossos

FREIRE, Marcelino. Nossos ossos. Rio de Janeiro: Record, 2013.

Carmem de Jesus Garcia
Ilustração: Cláudio Rodrigues

Marcelino Freire (Sertânia, PE, 1967) é escritor premiado e dramaturgo, promotor de oficinas literárias, ativista cultural, criador das Baladas Literárias e editor. Sua obra desponta nos anos 2000, quando o campo literário brasileiro se abriu a novos escritores, a temática da violência se acentuou e os novos meios de divulgação das obras e de seus autores se firmaram.

Seu primeiro livro de contos, Angu de sangue (2000), e sua inclusão na antologia de contos Geração 90: Manuscritos de computador (2001) o projetaram na cena literária com o distintivo de uma escrita performática que aproxima prosa e verso pela presença de ritmo e rima, traz as marcas da oralidade e, ao mesmo tempo, é dotada de uma linguagem concisa, sem floreios, forte, às vezes até chula, quase sempre impactante.

Nos anos 2000, Freire ingressou definitivamente no rol de escritores reconhecidos pela crítica literária e acadêmica. Publicou mais quatro coletâneas de contos, com destaque para os premiados Contos negreiros (2005), vencedor do Prêmio Jabuti de 2006, e Rasif: mar que arrebenta (2008), finalista do Prêmio Jabuti de 2009.

Nossos ossos (2013), até o momento, é o primeiro e único romance de Freire publicado. Em 2014, essa “prosa longa”, conforme o próprio autor prefere denominar sua obra, foi finalista do Prêmio Jabuti e também vencedora do Prêmio Machado de Assis, na categoria de “melhor romance”. O seu segundo romance, Escalavra, foi lançado em novembro de 2024, 11 anos após a publicação de Nossos ossos (2013). O público, todavia, teve contato anterior com a estória e a poesia de Escalavra, uma vez que um experimento de dramaturgia e cinema baseado no romance e intitulado “Processo Escalavra, foi publicado no YouTube em 2021.

Nossos ossos conta a história de um dramaturgo bem sucedido profissionalmente. Retirante nordestino, o dramaturgo vive na metrópole paulista e se propõe a levar de volta à terra natal o corpo de um michê, abandonado como indigente no necrotério, depois de ter sido assassinado. Essa é a história de fundo do romance, cenário à frente do qual se desenvolve o enredo de Heleno. O livro tem 120 páginas e é dividido em “Parte Um” e “Parte Outro”, partes nas quais se desenrolam 23 capítulos curtos, cujos títulos fazem referência ao corpo e à anatomia humana, como, por exemplo, “Os Ligamentos”, capítulo que inicia o romance, e “As Carcaças”, capítulo final.

O dramaturgo é o narrador-protagonista Heleno de Gusmão, que também assina a orelha do livro, num depoimento ao escritor Paulo Lins. Um carro funerário atravessa o país com o corpo de Cícero, com destino a Poço do Boi, lugarejo nordestino próximo à Sertânia, localidade de origem de Heleno. Ao mesmo tempo em que busca descobrir quem são e onde estão os pais de Cícero, com o objetivo de entregar o corpo e os bens que deixará para o morto, Heleno vai preparando a sua viagem final, narrando sua história de glórias e fracassos, conquistas e perdas em suas passagens não apenas pelos salões em que foi premiado, mas principalmente pelas duras e deselegantes esquinas da capital paulista.

Heleno se envolveu em encontros casuais homoafetivos, em que busca sexo sem compromisso, e assim conheceu Cícero, com quem trocou afeto em várias ocasiões. O rapaz era michê, fazia sexo por dinheiro, mas Heleno identificou afinidades com o amante por serem eles naturais de cidades próximas, terem sotaque semelhante, estarem “unidos na saudade” e no interesse de “partilharem suas histórias”.

Os capítulos alternam relatos da história atual e das memórias, sem a preocupação cronológica de uma linha do tempo da vida de Heleno. Cícero chega a seu destino, e também Heleno, em um final que surpreende o leitor tal qual acontece nos contos de Freire. E “Cai o pano”, frase final do romance, tal como em uma peça de teatro. “Nossos ossos esperam os vossos”, declaração que está na última página do romance e destaca o retorno de ambos.

Ficção e realidade se entrelaçam nesta prosa “autopornográfica” como a ela se referiu Freire. O nome do motorista que conduz o carro funerário, Lourenço, é também o nome do escritor amigo de Marcelino Freire e responsável pela ilustração da capa do romance Nossos ossos. O próprio narrador afirma que “se tivesse que escrever na vida uma outra peça de teatro seria a narrada no livro, e que ela não é ficção, mas a pura verdade”. Heleno é natural de Sertânia, tal como Freire.

O uso de metáforas e elipses narrativas está presente no texto. No importante capítulo inicial, “Os Ligamentos”, são apresentadas as ações em curso necessárias para a viagem final de Cícero e de Heleno, introduzindo-se a ligação entre as duas, apesar de o título sugerir os ligamentos do corpo humano para se manter de pé, ereto, até ele se transformar em “As Carcaças”, capítulo final do romance. A alternância entre o presente e o passado explica, por exemplo, o fato de Heleno sacar todo o seu dinheiro do banco antes de narrar que o saque será para custear a longa viagem. Há, portanto, uma elipse narrativa ao não se divulgar a informação, mesmo quando se sugere implicitamente o que se possa arguir: longa viagem de quem?  Logo adiante dessas cenas em que se faz presente a elipse narrativa, também se observa uma metáfora da morte: Heleno passa a noite arrastando caixas e livros, rasgando papéis, para nunca mais voltar.

A violência é temática presente na obra contística de Freire e de outros escritores brasileiros. Muitos são os relatos de situações cotidianas de violência sofrida pela população marginalizada, quaisquer que sejam os fatores: seja pela pobreza e desigualdade social, seja em razão da luta pela sobrevivência, seja em virtude da discriminação racial, sexual e social, seja pela prostituição. Assim sendo, a presença da violência na literatura brasileira da primeira década dos anos 2000 é objeto de reflexão de muitos autores, dentre os quais se destacam Schollhammer (2013) e Pelegrini (2008).

Nos textos de Freire, os marginalizados têm a voz narrativa, os relatos são em primeira pessoa e tornam o autor um “editor de vozes”, como o apontou Castello (2008). Mas isto não acontece em Nossos ossos: a violência não está na fala do narrador do romance, mas é bastante expressiva nas relações homoeróticas, no convívio de Heleno com e nos locais em que vive a população marginal de michês, travestis e gigolôs das esquinas, becos e quartos de hotéis baratos da capital paulista. Em muitos destes encontros há troca de afeto, como na relação de Heleno com Cícero, o que leva o narrador à ideia de buscar um enterro digno para o amigo.

Chama-se atenção para a ambiguidade do termo “Parte” nos títulos “Parte Um” e “Parte Outro”: como substantivo, refere-se a “pedaço”, “divisão”; como verbo, à ação de ir embora, de “partir” — parte o primeiro e depois, o outro. A marca de oralidade, diferencial da escrita para teatro, faz-se presente ao longo de todo o romance. Freire já afirmou, inclusive, que escreve seus textos em voz alta. A forma de narrar é breve, são inúmeras as rimas, as assonâncias, as aliterações por toda a narrativa, às vezes, em demasia.

Nossos ossos é uma obra de reflexão sobre a vida e a morte: a vida difícil de um retirante nordestino homossexual na metrópole, mesmo que seja ele bem-sucedido profissional e financeiramente; a morte pelo desencanto e a morte pela violência sexual vivida pela população homoafetiva no centro da capital paulista. É um romance instigante, escrito por um reconhecido e premiado contista.

Para saber mais

CARNEIRO, Flávio (2005). Marcelino Freire: Contos de Improviso. In: No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, p. 175-178.

CASTELLO, José (2008). O editor de vozes. O Globo, 16 ago.

OLIVEIRA, Nelson (2001). Geração 90: manuscritos de computador. São Paulo: Boitempo.

PELEGRINI, Tânia (2008). As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. In: Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume; FAPESP, p. 177-206.

PROCESSO Escalavra. Direção: Emilio de Mello. Produção: Complementar Produções. 1 vídeo (20 min48s). YouTube, 28 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dGcogZC_H-Y. Acesso em: 25 set. 2024.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik (2013). A violência como desafio para a literatura brasileira contemporânea. In: Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 39-102.

VASCONCELOS, Liana Aragão Lira (2007). Estratégias de atuação no mercado editorial: Marcelino Freire e a Geração 90. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.

Iconografia

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Como citar:

GARCIA, Carmem de Jesus.
Nossos ossos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 mar. 2025.

Disponível em:

3946.

Acessado em:

19 maio. 2025.