BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. Rio de Janeiro: Brasília, 1975.
Sandra Reimão
Ilustração: Théo Crisóstomo
A primeira edição brasileira do romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão (Araraquara, SP, 1936), foi publicada em 1975 pela Editora Brasília, uma pequena editora sediada no Rio de Janeiro. Em seguida, essa mesma editora lançou uma segunda edição.
Antes dessa edição nacional, houve uma edição em italiano pela Feltrinelli Editore, de Milão, em 1974. A decisão por publicar essa obra inicialmente no exterior ocorreu devido ao receio de editores de que, aqui no Brasil, ela fosse censurada. Esse temor era justificável, pois o país vivia sob a ditadura militar (1964-1985), e o tema central da narrativa pode ser descrito como uma representação imaginária da violência dos Estados autoritários sobre cidadãos comuns.
A narrativa de Zero é apresentada, no subtítulo, como um “romance pré-histórico”, e o texto antevê o dia de amanhã em um país imaginário da “América Latíndia” – uma nação que vai se tornando, ao longo do texto, cada vez mais irracional, descabida, brutal e violenta. O personagem José, um simples matador de ratos de um cinema poeira, mantém uma relação conturbada e tensa com a namorada/esposa Rosa. Ao longo da narrativa, ele vai sendo desrespeitado e violentado a cada dia em seus direitos básicos por parte do Estado autoritário desse país fictício e, por fim, se vê envolvido em fatos que ele não consegue compreender.
Zero é uma narrativa fragmentada, inclusive, graficamente. Há páginas com três ou quatro subtítulos em letras maiúsculas, outras divididas com traços verticais; além disso, há listas de itens, reprodução de listas de produtos de lojas, bilhetes, listagens de signos aleatórios, gráficos, desenhos e alusões a fatos recentes ocorridos no país. O próprio Brandão, em muitas entrevistas, destacou a origem de alguns desses fragmentos, afirmando: “Zero nasceu também da censura. Eu era secretário do jornal […] e aí as primeiras coisas proibidas eu fui jogando na gaveta […] tudo que está aí é coisa real e é o Brasil e aí eu falei dá para fazer um romance, dá para montar um romance”.
Analisando o caráter fragmentário da narrativa em Zero, Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves assinalam: “Zero, a princípio, se manifesta como uma grande alegoria do estado violentado e desagregado de um país que ainda espera por sua história […] o recurso ao fragmento […] promove um estilhaçamento da perspectiva naturalista do jornal”. Por fim, os autores destacam que “a técnica do fragmento aqui traduz a desagregação produzida pelo clima de opressão que acompanha, em todos os momentos, a narrativa de Loyola”.
Em novembro de 1976, Zero foi censurado pelo Ministério da Justiça, que ordenou a apreensão de seus exemplares sob a alegação de que a obra era “contrária à moral e aos bons costumes”. Na prática, como ocorreu com vários outros livros, não houve, de fato, essa apreensão, e o romance vendeu cerca de 6.000 exemplares nesse período.
A censura a livros durante a ditadura militar brasileira pode ser dividida em dois momentos: de 1964 a 1968, ou seja, entre o golpe militar de 1964 e a decretação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), e o período posterior à decretação do AI-5. No primeiro momento, a censura a livros no Brasil foi marcada pela falta de critérios claros, combinando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física. Em abril de 1965, foi inaugurado, em Brasília, um novo prédio para o Departamento Federal de Segurança Pública, onde funcionaria a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), evidenciando a intenção do governo de centralizar a censura. Quando o AI-5 foi decretado, as atividades censórias já se encontravam centralizadas no Ministério da Justiça.
A edição do AI-5 possibilitou a cassação de mandatos, a suspensão de direitos políticos e garantias individuais, além de criar condições para a censura à divulgação de informações, à manifestação de opiniões e às produções culturais e artísticas. Esse período ficou conhecido como os “anos de chumbo” ou, na terminologia de Elio Gaspari, a “ditadura escancarada”.
Durante os dez anos de vigência do AI-5 (13 de dezembro de 1968 a 31 de dezembro de 1978), segundo estimativas de Zuenir Ventura, 1.607 cidadãos foram diretamente punidos, seja por cassação, suspensão de direitos políticos, prisão ou afastamento do serviço público. No campo da produção artística e cultural, ainda de acordo com Ventura, foram censurados aproximadamente 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas.
Em 1979, após o fim da vigência do AI-5, Zero teve suas edições da terceira à oitava publicadas pela Editora Codecri. A partir de 1984, passou a ser editado pela Global. O livro foi traduzido para diversos idiomas, incluindo alemão, coreano, espanhol, húngaro e inglês.
Ignácio de Loyola Brandão publicou 45 livros e recebeu os prêmios Jabuti e Biblioteca Nacional pelo livro infantojuvenil O menino que vendia palavras, de 2007. É membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Zero foi o quinto livro publicado pelo autor.
O romance Zero se insere em uma literatura marcante de experimentalismo e resistência que emergiu no Brasil na década de 1970. Especialmente em meados desse período, a produção literária nacional, criada no calor do momento, teve um papel central na contestação e resistência ao regime. Para ilustrar sua relevância, inovação e impacto, vale destacar alguns dos livros mais vendidos no Brasil entre 1975 e 1976: Fazenda Modelo, de Chico Buarque de Hollanda; Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; As meninas, de Lygia Fagundes Telles; Dôra, Doralina, de Raquel de Queiroz; De notícias e não notícias, de Carlos Drummond de Andrade; Leão de chácara, de João Antônio; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; A travessia da via crucis, de Carlos Eduardo Novaes; Gota d’água, de Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes; Feliz ano novo, de Rubem Fonseca.
Para saber mais
LAVORATI, Carla (2015). Ditadura e violência em Zero, de Ignacio de Loyola Brandão: a literatura como resistência ao silenciamento. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 14, p. 41-50. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/LA/article/view/18511. Acesso em: 20 dez. 2024.
LIMA, Marcos Hidemi (2012). Zero: uma alegoria do Brasil. Signótica, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 87-101. Disponível em: https://revistas.ufg.br/sig/article/view/15013. Acesso em: 20 dez. 2024.
OLIVEIRA, Joaquim Adelino Dantas de (2017). A literatura com a tesoura na mão: sobre Brandão, Burroughs e Gysin. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 50, p. 488-512. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10191. Acesso em: 20 dez. 2024.
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