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Os dias do demônio

GOMES, Roberto. Os dias do demônio. São Carlos: Editora da Universidade Federal de São Carlos; Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.

Samara Lima
Ilustração: Graça Craidy


É sabido que muitos pesquisadores já buscaram investigar a relação entre os estudos literários e os estudos historiográficos. É isso que Beatriz Sarlo faz, por exemplo, em sua conferência “Literatura y Historia” (1990), ao comentar sobre a utilização da matéria histórica como tema de uma obra ficcional e os serviços que a literatura, enquanto um lugar privilegiado de produção de discurso, pode prestar a essa disciplina. Do argumento da autora, o que nos interessa é sua afirmação sobre a maneira como a obra literária, mais que oferecer uma representação direta do mundo social, pode se revelar um espaço fértil para que possamos refletir sobre essa mesma realidade. E isso não pelo que o texto nos mostra em termos de conteúdo, mas pela forma como ele articula e cria novos sentidos para aquilo que representa.

Cinco anos depois da apresentação de Sarlo, o escritor, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, eleito para a Academia Paranaense de Letras, Roberto Gomes  (Blumenau, 1944), publica seu quarto romance, Os dias do demônio, uma narrativa que imbrica fatos históricos e ficção para lançar um novo olhar para um dos maiores conflitos agrários armados do país: a Revolta dos Posseiros do Sudoeste do Paraná, que teve como objetivo expulsar as companhias de terra que afirmavam serem donas da região, contratando jagunços para afastar os colonos de suas propriedades.

A trama de Os dias do demônio está centrada nos últimos meses do levante, no ano de 1957. A região na qual se passam os acontecimentos da narrativa é delineada com precisão. Nomes de municípios e distritos com suas respectivas cidades e vilas (Beltrão, Pato Branco, Verê, Barracão e Santo Antônio) fazem um contraponto com a capital do Paraná e outras do país, retratadas como lugares distantes. Essa dicotomia evidencia a maneira como os centros, enquanto fontes das decisões políticas, estão afastados dos acontecimentos do resto do país e, no caso da narrativa, dos eventos cruciais que compõem o conflito no interior do Paraná.

O livro é dividido em quatro partes, “O paraíso”, “A guerra é sempre”, “De ferro e fogo” e “As portas do inferno”, compostas por pequenos capítulos com diferentes histórias de vida de personagens, muitos deles indivíduos reais, que vão aos poucos se cruzando, formando os três grandes conjuntos do enredo e os três acontecimentos explosivos que culminaram no levante.

Centrado nas perspectivas dos colonos e suas famílias, pequenos comerciantes e profissionais liberais, logo no início, em “O paraíso”, acompanha-se a chegada dos colonos no sudoeste do Paraná em uma realidade ainda informe, bruta, quando tudo era mato, alimentando a ideia de que a região era a terra prometida. Assim, entra-se em contato com a história de Elpídio Bello, que diante das dificuldades no Rio Grande do Sul e instigado pelas notícias de que o sudoeste do Paraná contém “muita terra, terra borra, dinheiro, trabalho”, abandona sua cidade natal junto com a esposa, Laura. Pode-se acompanhar também a saída de Seu Joanin de Santa Catarina para Beltrão, incentivado pela companhia colonizadora do governo, e como aos poucos foi se estabilizando e construindo sua família na região. O narrador descreve objetivamente todo o processo de deslocamento dos imigrantes, evidenciando as inseguranças dos personagens diante do desconhecido, os dilemas familiares e as adversidades enfrentadas durante a viagem, a partir de uma linguagem próxima à dos sujeitos retratados.

Por outro lado, é nessa primeira parte do livro que o leitor já tem notícia do crescimento do banditismo de “advogado e político” e jagunços na região, como também se depara com a primeira morte significativa da narrativa: o assassinato de Pedro José da Silva, o vereador do distrito de Verê, mais conhecido como Pedrinho Barbeiro. Pedrinho foi morto por dois jagunços na frente dos filhos e da esposa enquanto consertava o rancho onde vivia com a família. Ele era um dos líderes da resistência que ajudava os colonos menos instruídos a driblar as pressões das companhias e estava arrecadando assinaturas para um abaixo-assinado a fim de levar ao Presidente da República e resolver as questões das terras. É interessante notar que é a morte do jovem que abre o universo ficcional, ela é o acontecimento que dá início às ações dos colonos contra as companhias, no mundo histórico.

Cabe ressaltar que os jagunços são vistos pelos colonos como “bicho do demônio”, que deixam “como rastro o cheiro do enxofre”. Então, o título não só faz referência aos dias dos jagunços na região, mas também à mudança de perspectiva em relação ao sudoeste do Paraná que, se antes era visto como o paraíso e o lugar das oportunidades, diante da “mortandade organizada, com endereço certo”, tornou-se a encarnação do inferno.

O segundo plano do livro é constituído pelo ponto de vista dos funcionários da CITLA (Clevelândia Industrial e Territorial Ltda.) ou da Comercial (Companhia Comercial Agrícola), com seus advogados, jagunços e corretores, que apenas tinham como projeto “explorar rápido as terras, transformar as florestas em madeira, vender, devastar, se fartar”. É em “A guerra é sempre”, por exemplo, onde se acompanham as discussões sobre o processo de colonização por parte dos políticos e a organização dos grupos de jagunços, como o grupo de Zé Lara, que escapou da prisão com a ajuda dos deputados, os quais queriam alguém que soubesse “lidar com os colonos” e “que ele comandasse na região do sudoeste”. Também é nessa parte onde se encena a segunda morte significativa da narrativa: a morte de um cidadão com várias rajadas de metralhadora, enrolado na bandeira do Brasil, enquanto saía em direção à companhia de terra, onde os jagunços estavam reunidos em protesto.

Já o último conjunto se volta para o universo da política, como o mundo dos delegados, os juízes, a polícia e os deputados, e é o momento em que os leitores podem reconhecer a completa omissão das instituições: “a justiça era representada na região por alguns delegados não muito corretos e por alguns juízes que ficavam do lado das companhias”. Tendo de lidar com tantos ataques sofridos e com uma “justiça injusta”, a gota d’água vem com o espancamento de três crianças pelos jagunços. A partir daí, os colonos de diversas partes da região se organizam para expulsar os jagunços e as companhias de terra, como acompanhamos detalhadamente na última parte do livro, “As portas do inferno”.

Embora seja necessário reconstruir certa linearidade da narrativa para fins de resenha do romance, cumpre assinalar que os breves capítulos que compõem as quatro partes da trama são escritos, muitas vezes, recorrendo a uma desorganização da ordem causal dos acontecimentos. Isso quer dizer que, à medida que o leitor avança na leitura, ele é convidado a ir conectando as mortes, as tensões políticas e as disputas entre colonos e a companhia de terras. Se a obra como um todo se organiza em torno dos três conjuntos apresentados, é também verdade que eles se intercalam, se corrigem e se completam.

Ao final da leitura, o que fica evidente é que Roberto Gomes oferece a quem lê seu romance uma compreensão mais ampla e sensível do conflito, promovendo um olhar crítico sobre a história de todos e, assim como muitos autores engajados em resgatar a memória do passado, colabora para que a memória de tantas lutas não caia no esquecimento. Nesse sentido, o problema abordado na trama ressoa em obras mais recentes como, por exemplo, Torto Arado (2020), de Itamar Vieira Júnior, que, por meio da história de vida das protagonistas Belonísia e Bibiana, expõe o passado escravagista que perdura no território brasileiro e as relações de um grupo social com a terra. Contudo, talvez o mais importante seja o fato como Os dias do demônio torna coletivo o conflito romanesco que representa. A partir do momento em que aborda múltiplas histórias de personagens que se entrelaçam, ela dá forma a uma existência coletiva, permitindo ao leitor entrever sujeitos unidos pelo desejo de vingança, mas, principalmente, pela amizade, pelo direito à propriedade, pelo trabalho e pela liberdade.

Para saber mais

FÜHR, Tatiane Cristina (2017). História, ficção e memória em Os dias do demônio, de Roberto Gomes, e 1957: a revolta dos posseiros de Iria Gomes. TCC (Graduação em Letras Português e Espanhol) – Universidade Federal da Fronteira Sul, Realeza.

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Como citar:

LIMA, Samara.
Os dias do demônio.

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crítico 

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

13 mar. 2025.

Disponível em:

3281.

Acessado em:

19 maio. 2025.