Ir para o conteúdo

Vista chinesa

LEVY, Tatiana Salem. Vista chinesa. Rio de Janeiro: Record, 2021.

Eurídice Figueiredo
Ilustração: Manuela Dib

Tatiana Salem Levy (Lisboa, Portugal, 1979) publicou o romance Vista chinesa em 2021. A autora estreou em 2007 com o romance A chave de casa, que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de autor estreante. Publicou em seguida Dois rios (2011), Paraíso (2014) e Melhor não contar (2024), além de contos e obras destinadas ao público infantil. Tanto A chave de casa quanto Melhor não contar tem elementos autobiográficos bastante explícitos: no primeiro a autora trata de seu nascimento em Lisboa, onde os pais estavam exilados por causa da ditadura, da emigração do avô, judeu turco, para o Brasil; no último, aborda o abuso sexual que sofreu de seu padrasto. Em ambos os romances a presença da mãe é muito forte.

Muitas obras literárias de escritoras brasileiras contemporâneas tratam do estupro pelo viés ficcional, o que demonstra a necessidade de romper a barreira do silenciamento em relação a esse crime cometido contra as mulheres. O ineditismo do romance Vista chinesa reside no fato de ter sido baseado em fatos reais, revelado numa nota da autora no final do volume, na qual conta a genealogia do livro: em 2014, uma amiga foi estuprada nas proximidades da Vista Chinesa, no Rio de Janeiro; em 2018, ao se descobrir grávida de uma menina, Tatiana Salem Levy decidiu retomar algumas notas feitas desde então e prosseguir a escrita, pensando que as meninas têm de saber. Nessa nota, a amiga assume publicamente seu nome, Joana Jabace, com a frase: “Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade – e que aconteceu comigo, Joana Jabace” (em itálicos no original).

Numa entrevista ao jornal O Globo (19/02/2021), Tatiana Salem Levy declara que, aos dezoito anos, sua mãe lhe contou que havia sido estuprada durante um assalto nos anos 1980. Tatiana se pergunta, tanto no romance quanto refletindo sobre sua própria experiência, até que ponto os filhos percebem, intuitivamente, os sofrimentos dos traumas sofridos pelos pais.

Há muitos estudos sobre trauma e como ele, ao se tornar segredo de família, que não pode ser transmitido, dificulta qualquer relação familiar. Serge Tisseron afirma que o segredo deixa de ser normal para se tornar patológico quando a pessoa se torna prisioneira dele, atravessada pela melancolia e pela frustração, uma vez que, como observa Freud, a melancolia “se caracteriza por um desânimo doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima”. Como acentua Tisseron, o segredo como organização mental faz com que a personalidade de seu detentor seja cortada ao meio; essa clivagem repercute na vida dos que estão à sua volta.

Para elaborar o trauma é preciso passar pela verbalização, é por isso que a psicanalista da protagonista lhe recomenda que fale; contar para alguém de fora é que “institui o campo simbólico a partir do qual a narrativa pode se abrir para novas significações, rompendo o aprisionamento repetitivo da cena traumática”. Para a psicanalista Maria Rita Kehl, trabalhar a memória é transformar seus resíduos a fim de que eles possam ser incorporados à vida presente sem precisar ser recalcados. “É o trabalho da memória que permite o verdadeiro esquecimento, o desligamento das cargas libidinais fixadas às representações da cena traumática”.

É preciso romper a barreira do silenciamento em relação ao estupro. Existe um “silêncio cruzado”, nas palavras de Virginie Despentes: os homens não tratam do assunto e as mulheres não ousam contar, denunciar, escrever sobre isso. “É assombroso que nós mulheres não digamos nada às meninas, que não exista nenhuma transmissão de saber, de conselhos de sobrevivência, de conselhos práticos simples. Nada”. Ao romper o tabu, a autora mostra que é possível sobreviver, que é preciso falar para se abrir para a relação com os outros porque enquanto a pessoa traumatizada fica autocentrada e silenciada, ela não consegue superar o sofrimento que se repete ad infinitum.

A mãe de Tatiana Levy, Helena Salem, ao revelar o segredo do estupro à filha, tira-o do lugar do horror total porque explicita para a adolescente o gesto de superação, a ponto de conseguir verbalizar o acontecimento do passado. Ao tornar público aquilo que pertencia à esfera do privado, a autora se pergunta até que ponto tinha esse direito. Sua resposta é que ela se coloca como herdeira da mãe e, nesse sentido, deve transmitir essa herança, inclusive para seus filhos. Se em seu primeiro romance a personagem-narradora recebia uma herança, que era difícil de carregar, neste livro ela se torna mãe e transmissora de uma herança, o que assinala que essa é uma questão central em sua obra.

Tatiana Levy adota a primeira pessoa, fala pela amiga, fundindo-se com ela; a narrativa toma a forma de uma carta escrita por Júlia, a protagonista-narradora, aos seus dois filhos, Antonia e Martim. Por outro lado, o romance é dedicado aos dois filhos da autora, Vicente e Esther, o que causa, até certo tempo, uma confusão entre as duas mulheres. A escrita de cartas é tematizada em A chave de casa como meio facilitador de se comunicar com a mãe quando a narradora sentia dificuldade de contar-lhe o segredo que lhe oprimia o peito: “Sinto o segredo me corroendo, me mutilando lentamente. É um segredo terrível, monstruoso, não tem um resquício sequer de coisa bonita”. No entanto, não entrega a carta à mãe, enterra-a na floresta, enterra o segredo, o que é um procedimento semelhante ao que a personagem-narradora faz em Vista chinesa enterrando o colar que havia sido arrancado pelo estuprador. Hoje presumimos que esse segredo que ela nunca ousou contar à mãe era o abuso sexual do padrasto, que a mãe amava tanto, e que é tematizado em Melhor não contar.

Todos os detalhes da violência sexual estão narrados, sem falsos pudores. O acerto na construção da intriga reside, talvez, na decisão de não contar o estupro de uma só vez, de maneira imediata e compacta; o acontecimento vem aos poucos, do mesmo modo como funciona a memória, um novo detalhe surge, um sentimento de raiva, opressão ou de medo. O romance é ousado na linguagem, usando todas as palavras necessárias para nomear os órgãos genitais e descrever o ato sexual. Além da arma, da violência física e sexual, destacam-se as sensações físicas e emocionais: cheiro, repugnância, medo, nojo. A vítima dominada tem de obedecer aos comandos do homem para fazer e falar o que ele deseja. O detalhe que chama a atenção é que ele usava luvas a fim de não deixar suas digitais no corpo e na roupa da vítima, apontando para a premeditação e o cuidado na preparação do ataque.

O que leva um homem a agredir uma mulher com socos e tapas, estuprá-la com uma arma na mão? Que prazer é este, prazer de fazer o mal, prazer do ressentido que se vinga sobre a mulher desconhecida que passa por acaso no lugar onde ele já se amoitou para dar o bote, como uma serpente. De onde vem esse ódio contra as mulheres? O ressentido considera que lhe devem algo, que ele é vítima da sociedade. Em dois momentos a narradora de Vista chinesa se refere à psique do estuprador: “Lembro de ter pensado, em que momento ele começou a ter tesão? Mas ele tem tesão em quê, exatamente? Em me ver perdida, com medo, nauseada, ansiosa? […] Estava paralisada. Aquele homem sem calça na minha frente, o pau duro, era incompreensível e assustador demais”.

A misoginia está bastante incrustada na nossa sociedade patriarcal, há inclusive grupos e associações antifeministas como o Men Going Their Own Way (MGTOW) e os Involuntary Celibates (INCELS), cuja visão distorcida se exprime na ideia do “privilégio feminino” quando todos sabemos que são os homens que têm privilégios. A masculinidade tóxica que se forma por disfunções de vários tipos se alimenta também da pornografia violenta em que as mulheres são torturadas, humilhadas.

A potência do romance reside no ritmo encantatório da linguagem vertiginosa, às vezes sem pontuação, numa sofreguidão para esgotar todos os detalhes do evento traumático: apesar de desejar o esquecimento, não é possível, nada foi esquecido, a cena do estupro volta com novos detalhes, como o ritornelo de uma música: “Mas há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer porque se repetem todos os dias”. A escrita da carta-testemunho-testamento se dá cinco anos depois do acontecido, e a procura pela palavra certa a faz repetir seis vezes numa mesma frase a palavra estuprada, chegando a escandi-la: es-tu-pra-da. Essa reiteração vem preencher uma quase ausência do seu uso na literatura; ainda que haja estupro, poucas vezes se emprega a palavra exata.

A viagem ao México durante a qual a personagem toma peiote é parte do processo de superação do trauma: “Mastigar o peiote é uma maneira de mergulhar numa realidade tão desconhecida quanto íntima, uma viagem por dentro de cada um de nós”. Depois de muitos delírios, depois de enterrar o colar da avó, que havia sido arrancado do pescoço dela e encontrado, posteriormente, pela polícia, depois de todo o ritual do peiote que a ajuda a fazer o luto, a personagem está preparada para engravidar e ter seus filhos gêmeos. Escrever a carta e narrar a história do trauma também faz parte dessa tentativa de elaborar o luto.

Vista chinesa termina com uma chuva torrencial que provoca o deslizamento de terra na Floresta da Tijuca, arrastando o sutiã, o celular, o fio de cabelo que nunca foram achados, levando embora aquele pedaço de terra que assistiu ao crime. Se uma mulher foi profanada, essa profanação é também a da Floresta da Tijuca e, em última instância, da Terra, que sofre tantos ataques dos homens. E o romance fecha com uma frase enigmática: “e digo a mim mesma que a salvação virá da terra ou não virá, a floresta invadindo e devorando a cidade, a mata comendo o asfalto, a salvação para o Rio é, sempre foi, sempre será, a sua própria morte”.

Para saber mais

ARANTES, Taís Turaça; SANTOS, Victoria Azevedo Lima dos (2021). Abordagens psicológicas no romance Vista chinesa de Tatiana Salem Levy: um olhar sobre o trauma do estupro. Revista Athena, Cáceres (MT), v. 21, n. 2, p. 81-93.

DALTE, Pedro (2023). A memória como lugar da dor em Vista chinesa de Tatiana Salem Levy e n’o Plantador de abóboras de Luís Cardoso. Rascunhos culturais, 14 (27). Coxim (MS):UFMS, p. 117-134. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/rascunhosculturais/article/view/18342. Acesso em 16 set. 2024.

FIGUEIREDO, Eurídice (2022). Escrever contra o silenciamento do estupro: Vista chinesa de Tatiana Salem Levy. In: A nebulosa do (auto)biográfico: vidas vividas, vidas escritas. Porto Alegre: Zouk.

SCHMAEDEL, Michaela Von (2021). Imaginar, apesar de tudo. Elle View. Disponível em: https://elle.com.br/cultura/tatiana-salem-levy-vista-chinesa?srsltid=AfmBOorv788dQyX7h5dLRaKJMUVWiLpjIKsy4g67oHb6jqp4y5ZpVGVZ. Acesso em: 16 set. 2024.

SILVA, Sandro Adriano da (2022). Literatura e violência: entrevista com Tatiana Salem Levy. Associação Internacional de Lusitanistas. Revista Veredas, n. 37, p. 148–155.

Iconografia

Tags:

Como citar:

FIGUEIREDO, Eurídice.
Vista chinesa.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

18 mar. 2025.

Disponível em:

4279.

Acessado em:

19 maio. 2025.