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Vida ao vivo

ANGELO, Ivan. Vida ao vivo. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Théo Crisóstomo

Ivan Angelo (Barbacena, MG, 1936) é escritor e jornalista aposentado. Ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti, pelo romance A festa (1976) e pela novela Amor? (1995). Publicou também os livros de contos A casa de vidro (1979) e A face horrível (1986), além do romance Pode me beijar se quiser (1997). A experiência jornalística do autor tem influência no seu processo de escrita literária, embora ele já tenha afirmado não ver maiores qualidades ou profundidade no texto jornalístico. Em Vida ao vivo (2023), Ivan Angelo constrói uma narrativa que tem, em alguma medida, a objetividade e a clareza do texto jornalístico. A prosa, de estilo direto e marcada pela descrição detalhada do protagonista e do cenário, assume um tom factual ao abordar eventos sociais, históricos, políticos, questões familiares e subjetivas.

O romance está dividido em 35 capítulos que se alternam entre a confissão do protagonista — monólogo de Fernando Bandeira de Mello Aranha, proprietário de uma emissora de TV — e a reação dos espectadores — repercussão ao programa feito pelo comunicador e dono da Rede Nacional de Televisão (RNT). Os capítulos alternam entre os relatos autobiográficos de Mello Aranha, em TV aberta, e as repercussões do público, da imprensa e das pessoas envolvidas ou citadas pelo magnata no dia seguinte ao programa.

O monólogo do apresentador é interrompido, em alguns momentos, por um narrador de terceira pessoa que descreve o protagonista, sua vestimenta, sua respiração difícil — marcada por morbidades advindas da Covid-19 —, o corte da câmera no estúdio montado na própria casa e objetos como a fotografia de uma moça mostrada reiteradamente. Esse narrador secundário se pergunta sobre qual seria a exata reação ou sentimento do apresentador diante dos fatos apresentados. Mello Aranha havia mandado montar o estúdio de televisão em casa quando ainda estava na UTI devido à Covid.

Mello Aranha, dono de um império de jornais, rádios e televisões por todo o país, interrompe a programação de sua emissora — uma novela no horário nobre — para anunciar que gostaria de contar a história da fotografia dessa mulher com quem trocou um olhar há quase duas décadas. Diz que fará um exame de consciência de sua vida, dirigindo-se aos seus trinta milhões de espectadores para contar uma história pessoal, mas também coletiva. Trata-se de uma espécie de anti-herói que, ao longo dos acontecimentos, desperta empatia, repúdio, confiança, dúvida, afinidade, perplexidade, revelando não uma falsa dualidade entre bem e mal, mas apontando que a construção da identidade humana se dá por meio de elementos contraditórios, paradoxais, ambivalentes e incoerentes. Esse aspecto é anunciado já na epígrafe do romance: “Somos o que fomos, acrescentados de culpas”.

O empresário afirma conhecer seu público, sua rotina, suas vontades. Lembra que todos eles, ao decidir sentar no sofá para assistir à TV, acabam trabalhando para ele, Mello Aranha. A ascensão do seu império — a maior rede de televisão do país — se deve às oportunidades durante governos na ditadura militar, na redemocratização e na aproximação com o agronegócio. Ao vivo, ele demonstra uma saúde visivelmente debilitada e diz que são sequelas da Covid-19, vírus que contraiu porque supostamente alguém lhe contaminou intencionalmente. Faz insinuações e reclama ser vítima de uma conspiração. Após interromper a programação normal, ele passa a contar nas noites seguintes, às 21h, o seu dia a dia, sua história familiar, os dezoito anos que permaneceu sem sair de seu apartamento, o caso com a amante.

Os monólogos do protagonista são alternados com as reações do público e pessoas envolvidas nos desdobramentos do programa: mensagens da mídia, recortes de jornal, telespectadores reagindo, autoridades políticas tentando contato, patrocinadores cobrando ou propondo a divulgação de marcas, a suposta moça da fotografia que se identifica. O empresário monta um call center para receber pistas e sugestões da moça procurada. Tudo isso instiga o protagonista a voltar ao ar nos dias seguintes. Do outro lado da tela, os telespectadores e as pessoas citadas no programa reagem às manifestações do empresário. Pedem o retorno da novela, denunciam que ele se beneficiou do regime militar, que omite em sua apresentação os anos de tortura, resistência armada, censura, perseguição etc.

Jornalistas afirmam que a imprensa resistiu à censura, com partes do jornal em branco, trechos de Os Lusíadas ou receitas, menos os meios de comunicação de Aranha Mello, lenientes com o governo ditatorial e satisfeitos com as publicidades pagas. O protagonista, em resposta, defende-se dizendo que apenas cumpria a lei. Outros telespectadores o acusam de blasfêmia, em razão de suas colocações sobre o cristianismo e a origem do ser humano. Ele é criticado por passar uma imagem de progressista, mas manter uma linha editorial próxima da direita ideológica e do neofascismo. Ele rebate dizendo que uma coisa são os negócios — com seus compromissos — e outra coisa é ele no programa Vida ao Vivo. Ele é acusado de financiar a mineração na Amazônia e em terras indígenas.

O protagonista, por sua vez, estimulado pelas reações públicas, reclama das figuras que, ao longo da história, afirmam andar com Deus: “a história da humanidade me diz que andam com ele muito más companhias, inquisidores, torquemadas, cruzados degoladores de sarracenos, queimadores de bruxas, exterminadores de índios, falangistas, fanáticos, supremacistas brancos linchadores, genocidas”. Ele aborda o impacto da televisão na década de 1970 e a modernização do país promovida pelos militares por um lado e a repressão por outro. Os anos 1970 promoveram a cultura, as artes, a moda, a liberdade sexual, mas também enfrentaram “os ditadores com seus atos, os censores com suas canetas, os torturadores com suas maquinetas… Podem me chamar de tudo, menos de cego ou inocente”. Aranha Mello não nega seu oportunismo jovem diante desse cenário.

O romance adentra histórias mal resolvidas do Brasil, que talvez se pretendam esquecer, para mostrar a incompleta e questionável regularidade institucional em que vive o leitor. Ditadura militar, escravização de três séculos, violência estrutural, desigualdades, apagamento histórico, garimpos ilegais, genocídio e estupro de indígenas, facções criminosas, corrupção, desmatamento, fundamentalismo religioso, milícias, título de herói atribuído a indivíduos como o coronel Ustra. O próprio Mello Aranha, numa dessas tomadas de consciência, lembra que o Brasil é marcado por violações sistemáticas de direitos, violência policial, negação do direito à moradia.

As contradições do protagonista vão se revelando ao longo da narrativa. Por um lado, a herança de família questionável — fortuna obscura, afirmam alguns —, acordos e parcerias duvidosas durante o regime militar, casos com amantes, a ênfase no fato de que seu conglomerado de comunicações é um negócio e se vale das oportunidades. Do outro lado, a ênfase no papel da ciência, a exigência em atender pessoas com máscara e vacinadas, a crítica ao fundamentalismo religioso e aos terraplanistas. Afirma com tranquilidade que toda família rica, de fato, sempre teve “alguém que passou a mão”. Critica o mercado financeiro que, num país desigual como o Brasil, é tratado como uma pessoa pelos jornalistas. Se de um lado reconhece que é um empresário das comunicações, que construiu seu império, também demonstra que a TV trouxe a domesticação das pessoas, a banalização da violência e o empobrecimento das linguagens.

Esses monólogos são marcados por recursos literários como a ironia, a metáfora, o pleonasmo, a antítese e o eufemismo, cujo objetivo é induzir a interpretação dos fatos apresentados por ele. “Toda narrativa é versão”, conclui. São recursos literários que lhe ajudam a construir sua própria verdade. Ele tenta criar uma relação de lealdade com o telespectador; ao responder às reações do público às suas colocações, pergunta-se o quanto do idealista arrogante da juventude e do oportunista do regime militar ainda está nele. “Eu sei que vocês precisam dos vilões para se sentirem bons, poder dizer ‘oh, quanta maldade, eu não seria capaz de fazer uma coisa dessas’”.

O domínio discursivo do protagonista é confrontado por sua antagonista, Mara, a moça da fotografia. Mello Aranha, de forma intencional ou não, cria condições para que o público se identifique com ele, buscando validar sua versão — que deixa claro ser apenas uma entre muitas possíveis. Ao longo do monólogo, o texto está repleto de referências literárias e artísticas: ele evoca um conto de Clarice Lispector e outros textos que exploram o olhar, sugerindo que, daquela fotografia, o único detalhe que permaneceu em sua memória foi o olhar da mulher anônima; faz alusão aos nomes que Machado de Assis dá a seus personagens; reflete sobre o amor a partir da visão de Camões; recorre a trechos bíblicos sobre traição e pecado; apresenta formulações do discurso de Lacan; cita um poema de Brecht sobre tempos sombrios; traz a interpretação do riso de Bergson como uma reação a uma quebra inesperada de ritmo e se remete aos círculos do inferno descritos na Divina Comédia, de Dante Alighieri. Essas referências oferecem a Mello Aranha uma base argumentativa e a capacidade de responder às diversas reações do público.

Mello Aranha, ao expor sua vida íntima numa espécie de confissão e autoanálise, formula ideias com honestidade ao falar de sua realidade, dos meios de comunicação, do país e da humanidade. Ele, que lia de tudo — de romance e poesia a política —, relata que não gostava de escrever, pois lhe é mais confortável comunicar-se pela TV, que alcança milhões de pessoas num curto espaço de tempo. Já a leitura… quantas cidades têm uma livraria? A televisão, ao contrário, dá a imagem pronta, sem autonomia ao telespectador. Ivan Angelo consegue colocar esses dois mundos um diante do outro, para provocar o leitor e instigar uma análise de sua própria compreensão da realidade sociopolítica e histórica brasileira, bem como da forma na qual se articula face a esse cenário a partir de interesses e projetos, muitas vezes, antagônicos, contraditórios e complexos.

Para saber mais

STYCER, Mauricio (2024). A mídia como ela é — Romance de Ivan Angelo faz um retrato do país que os grandes veículos de comunicação ajudaram a construir. Quatro cinco um, Edição #77. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/literatura/literatura-brasileira/a-midia-como-ela-e/. Acesso em: 07 fev. 2025

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Vida ao vivo.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

18 mar. 2025.

Disponível em:

4274.

Acessado em:

19 maio. 2025.