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Um romance de geração

SANT’ANNA, Sérgio. Um romance de geração. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Igor Ximenes Graciano
Ilustração: Guilherme Franzoni

Terceiro romance de Sérgio Sant’Anna (Rio de Janeiro, RJ, 1941 – Rio de Janeiro, RJ, 2020), Um romance de geração (1980) traz uma mudança na forma como o escritor carioca constrói a prosa romanesca. As explorações estilísticas do autor, realizadas anteriormente no conto literário, ainda pareciam tímidas em seus dois primeiros romances – Confissões de Ralfo (1975) e Simulacros (1977) –, que desafiavam a noção mais corriqueira do gênero, sobretudo pela dimensão temática. Nas primeiras obras de Sant’Anna, a relação da literatura com o cenário político do Brasil se dá de modo indireto. Ao começar a publicar na década de 1970, período mais violento da ditadura (1964-1985), o escritor se esquiva tanto da ficção alegórica quanto do apelo documental de parte significativa e prestigiada da produção romanesca no período.

Um romance de geração apresenta uma abordagem mais prosaica da realidade, com personagens “comuns”, por assim dizer, mas a partir de um viés diferente dos romances anteriores. Investe-se na linguagem teatral a ponto de se tensionar a recepção do texto, que tem a palavra romance no título, mas se assemelha mais a uma peça teatral, ainda que não seja, de fato, uma obra eminentemente dramática. Se Sant’Anna já vinha trazendo elementos do teatro para a prosa ficcional, em Um romance de geração o texto ganha um caráter híbrido que culminará naquela que o próprio autor considera como sua obra mais bem realizada, o romance-teatro A tragédia brasileira (1984).

Em Um romance de geração, o escritor é colocado em cena, literalmente. Sua representação é crítica, de modo que nessa obra se configura um exemplo de antinarrativa, ou de narrativa problematizadora, na qual o fato narrado, contraditoriamente, apresenta-se sob o signo da incapacidade de narrá-lo. Um dos indícios desse entrave está na hibridez já apontada, afinal, está-se diante de um romance que se apropria da forma dramática e que carrega em seu corpo a poesia e o ensaio, gêneros que se entrechocam, mas que, ao mesmo tempo, entrelaçam-se na profusão discursiva que constitui esse “romance”. Narrar por si só não basta, deve-se também encenar, cantar e, principalmente, teorizar a prática literária. O fluxo narrativo é estancado para que assim se mostre a consciência do narrador diante dos temas possíveis: o Brasil no contexto do debate sobre a redemocratização, a escrita como ato político. Na obra, não poder narrar confunde-se com não poder representar. A (anti)narrativa indica certa descrença na escrita literária como meio eficaz de expressão.

Tendo como mote a entrevista do escritor Carlos Santeiro por Cléa, uma jornalista de caderno de cultura da cidade do Rio de Janeiro que pretende fazer uma matéria sobre a obra e as opiniões do autor na virada das décadas de 1970 e 1980, portanto no processo de abertura democrática do Brasil, a narrativa segue como uma “comédia dramática em um ato”, conforme o subtítulo. Em Santeiro, configura-se o estereótipo do escritor incapacitado, em crise de criatividade, que de tão sobrecarregado pela realidade se recusa, ou não consegue, expressá-la, como ele mesmo afirma ao discorrer sobre a popularidade das novelas de televisão: “Não escrevi o livro porque não era necessário. Bastava publicar a ideia. Se as novelas já estão aí, por que fazer mais uma ou reproduzir uma delas? Basta publicar a ideia que a obra está realizada”. O “romance de geração”, entendido como subgênero da prosa romanesca que almeja uma abordagem de certa coletividade em um período da história, apresenta-se como um projeto inviável, assim como é inviável a entrevista, confusa e inacabada, mas que compõe, por seu lado, o romance em si de Sant’Anna. 

Quanto ao narrador, é importante apontar o gênero que serve de moldura a Um romance de geração para o esclarecimento de sua posição na composição da obra. Ao escolher a forma dramática como meio expressivo, pretende-se evitar, em certa medida, a presença de um narrador e, logo, de uma narrativa, pelo menos nas acepções tradicionais desses termos.

Afinal, se o gênero dramático é aquele que dispensa o narrador, as ações se dão diretamente diante dos olhos do espectador, de maneira que se faz desnecessária uma voz que mostre os acontecimentos da trama. Porém, pelo seu próprio aspecto de farsa, e por ser uma peça que “jamais subirá aos palcos, por ultrapassar provavelmente o fôlego do intérprete masculino e, principalmente, o limite de paciência do público”, o texto é antes de tudo uma obra de caráter romanesco. Por ter sua prosa imbricada nas falas de Santeiro e nas marcações de cena, que por vezes se estendem para além daquilo que seria apenas uma marcação, é que o narrador salta aos olhos. Em narrativa disfarçada de entrevista, Santeiro é um narrador problemático por questionar a cada momento seu papel de escritor: “Não, não dá mais. Perdi o tesão. Perdi o tesão desde o dia em que percebi o quanto as palavras eram falsas, tão falsas como essa vodka aqui […] Que, uma vez descrito em palavras, um seio deixa de ser um seio”.

Numa exacerbação discursiva que beira a prolixidade, o romance/peça assemelha-se a um monólogo que, entrecortado pelas intervenções da jornalista, revela mais de Santeiro por ele próprio do que a entrevista em si, inconclusa, poderia revelar. Ao narrar-se narcisisticamente, Santeiro, além de discutir sua trajetória e perspectiva de escritor, desvela os bastidores da escrita, sua “casa das máquinas”, como diria Adorno, e revela também o contexto histórico-literário do pós-64, que é onde se situa a geração de Santeiro, e, claro, de Sérgio Sant’Anna. O narrador, ora sob a pele de um personagem (Santeiro), ora pela voz das marcações de cena na segunda parte do romance, aponta constantemente para o caráter metaficcional da obra.

Em meio a um debate sobre a prática literária, Um romance de geração propõe-se a discutir o papel da literatura como meio expressivo das representações do Brasil, pelo menos no que toca à legitimidade dessas representações. O narrador problematizado entra na literatura nacional pelo viés dessa discussão, no sentido de que, para ele, a inclusão de grupos sociais marginalizados tornou-se “inviável”, em parte porque os modelos para sua representação desgastaram-se, em parte porque a literatura, como meio de inclusão desses grupos, parece cada vez mais obsoleta, quando não inútil.

Devido à contestação da prática literária, o realismo é criticado e enaltecido. Essa contradição advém da consciência de que a escrita não pode abarcar as paisagens sociais, apesar de elas serem uma de suas principais motivações. Ao utilizar-se da forma dramática, expõe-se o quanto possível o aspecto encenado não só da representação literária, mas de qualquer modalidade artística. Sant’Anna, sob a máscara de Santeiro, preocupa-se justamente em desnudar o texto para que avulte sua abstração. As personagens perdem a dimensão humana ao serem expostas como artefatos discursivos, fantoches de um narrador que, se não as sufoca ou cala, restringe seus movimentos com o intuito flagrante de desvelar sua dimensão ficcional.

A despeito, contudo, de uma representação que se pretende atrelada diretamente às formas pré-constituídas do mundo, tem-se um “realismo falso, aparente, simbólico”, ou seja, um realismo que, se não busca o fantástico, também não se apega ao real (ao mundo sensível) como fonte absoluta da prosa de ficção. O ato de representar não significa reflexo ou espelhamento do mundo, mas a maneira pela qual o indivíduo nele se constitui como sujeito e assim se coloca. Em Um romance de geração, o “real” se confunde com o ficcional, pois ambos são entendidos como representações. A ideia do “grande palco da existência” subjaz em toda a narrativa como para dizer que a vida também é uma ficção, mas uma ficção que não se apresenta como tal. Os papéis representados no texto são como os que se representam na vida. O texto seria uma extensão da vida, não sua imitação.

Daí porque o realismo não é absolutamente negado. Pelo contrário, o que se pretende é a “enunciação do mundo”, porém em outros termos. O escritor não consegue escrever seu romance por procurar uma fórmula que fuja da representação tida como natural, não ideológica, em que a expressão literária pretende-se “fiel” aos fatos, como um espelho impoluto a refletir o mundo. “Só consigo ler livro antigo, livro clássico. Eles também são falsos, mas de uma falsidade que convence, porque no contexto em que foram escritos essa falsidade era autêntica. Uma falsidade repleta de condes e marquesas conversando à hora do chá”.

O protagonista Carlos Santeiro questiona se há ainda razão para a falsidade realista, sobretudo se ela não se revela como falsa. A recusa em narrar advém, portanto, da crise criativa desse escritor-personagem, a partir da qual se conflagra uma especulação vívida sobre o papel da arte e da escrita literária. Mesmo que bastante atrelada ao seu momento histórico, a obra de Sérgio Sant’anna mantém-se atual tanto pela discussão sobre o artesanato literário, no que toca aos limites e estratégias da representação, quanto pelas implicações éticas e políticas dessas representações. Um romance de geração é um romance controverso e parcial da geração a que faz alusão, mas as questões que lança ainda reverberam o problema da literatura e sua relação com a vida social.

Para saber mais

GONGORA, Anderson Possani; ENEDINO, Wagner Corsino. (2024). Um romance de geração: o teatro-ficção de Sérgio Sant’Anna. Anuário de Literatura, [S. l.], v. 29, p. 01-20. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/100375. Acesso em: 10 dez. 2024.

PORTO, Ana Paula Teixeira. (2013). Um romance de geração: narrativa de violência e opressão. Revista Literatura em Debate, v. 7, n. 12, p. 213-229. Disponível em: https://revistas.fw.uri.br/literaturaemdebate/article/view/1059. Acesso em: 10 dez. 2024.

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Como citar:

GRACIANO, Igor Ximenes.
Um romance de geração.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

18 mar. 2025.

Disponível em:

4260.

Acessado em:

19 maio. 2025.